terça-feira, 24 de março de 2020

Vera Iaconelli Uma mão lava a outra- FSP

Temos as tragédias garantidas e as bem prováveis

  • 5
A última vez em que me senti tão assolada por um acontecimento foi na eleição do atual presidente —é duro usar um termo tão nobre para nomear esse senhor.
Lembro da desolação geral, da sensação de perigo eminente, da impotência diante da escolha que a maioria da população fazia, mas também do sentido de urgência para tentar se contrapor ao pior.
Bolsonaro prometeu em campanha desmontar o que mais se precisa construir neste país: inclusão social, igualdade de gênero, preservação ambiental, fortalecimento da saúde pública, investimento na educação.
As claras intenções de desmonte do serviço público foram justificadas pela virada econômica que nos
tiraria do buraco.
Parte de seus eleitores o elegeu por se identificar com sua agenda antidemocrática —pró torturadores, ditadura e horrores afins—, mas grande parte o apoiava em favor de uma certa agenda econômica que não pensa no bem comum —demonstração clara do histórico desapreço brasileiro pela coletividade.
Antonio Prata escancarou, em sua última e brilhante coluna, a escolha que se fez naquele momento: “levar os filhos num pediatra sabidamente pedófilo porque é um médico competente”.
Sem a desculpa, no entanto, de supor que ele seria competente. Afinal, são 30 anos de vida pública a provar o contrário.
Por fim, vivemos a combinação de uma presidência vexatória, de resultados pífios na economia e de uma pandemia.
Nas relações íntimas, essa combinação nos obriga a repensar o efeito psíquico da privação de alguns laços sociais e do excesso de outros.
Essa é a hora de rever nossa relação com familiares e com o espaço doméstico, que costuma ser terceirizado no Brasil.
Crianças e adolescentes precisam ser informados do que acontece de maneira a se engajarem na nova situação, fazendo sua parte e ajudando dentro de casa.
Prometo falar mais sobre isso oportunamente. No artigo de hoje, opto por pensar nas relações entre cidadãos, pois os acontecimentos obrigam a sociedade civil, as instituições democráticas e os políticos que fazem jus ao título assumirem protagonismos inéditos.
Algumas ameaças são incontornáveis: muitos morrerão, o sistema de saúde não dará conta de tratar a todos e a economia ficará profundamente abalada.
Mas temos a ameaça imprevisível, cuja probabilidade de ocorrer aumenta a cada gesto de sandice presidencial: o colapso social decorrente do absoluto desamparo a que está submetida a maior parte da nossa população.
É impossível falar em isolamento social e higiene das mãos para quem não tem espaço físico e saneamento básico; é impossível pedir que se aguente a fome até que dias melhores venham. Entre o inevitável e o provável, é hora de virar o jogo.
Gilson Rodrigues, líder comunitário de Paraisópolis, lembra que a palavra favela ainda não entrou na agenda dos governos.
Ele descreve a organização emergencial que está sendo criada pelos moradores desse bairro precarizado, que poderá servir de modelo a ser replicado.
As lideranças de Paraisópolis estão identificando 420 voluntários, que ficarão responsáveis por acompanhar as condições e necessidades de 50 casas, cobrindo 21 mil domicílios que abrigam 100 mil habitantes.
Sua missão é orientar as famílias, tentar prover o necessário, identificar quem precisa ser levado ao hospital e lutar por conseguir uma ambulância que os transporte. O nome desses líderes voluntários
é “presidente da rua”.
É em casos como esse que encontramos um uso a altura do termo.
Vera Iaconelli
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

DEISY VENTURA Fique em casa, mas defenda o SUS, FSP


Deisy Ventura
SÃO PAULO
A pandemia de coronavírus é uma dor aguda que escancara as nossas dores crônicas. É sabido que nem o mais rico entre os países estaria preparado para o afluxo súbito de milhares de pessoas acometidas por uma doença até então desconhecida, para a qual não há vacina nem tratamento específico. Porém, há uma larga diferença entre os pontos de partida, entre as nações que contam com estruturas construídas ao longo de décadas e as que precisam partir quase do zero.
Logo, os brasileiros não cansam de perguntar se o SUS (Sistema Único de Saúde) está preparado para a pandemia. Poucos sabem que temos o maior sistema de acesso universal à saúde do planeta, referência internacional não só por seu alcance mas pela excelência de diversos de seus programas, entre eles os que são capazes de prevenir as doenças, como os Agentes Comunitários de Saúde.
No entanto, em sua própria casa, como um gigante inacabado e maltratado, o SUS costuma ser percebido mais por seus tombos do que pela grandeza. Somos bombardeados há anos com imagens de equipamentos de saúde que fecham, longas esperas, atendimentos sumários, casos de corrupção e má gestão, filas e mortes evitáveis. Enquanto as causas raramente são vistas, os efeitos nefastos são amplamente propalados.
Daí resulta que somos um dos mais bem preparados países em matéria de resposta às pandemias, mas justamente as nossas maiores virtudes estão sendo enfraquecidas ou eliminadas.
 Corredor da UTI (Unidade de terapia intensiva) da Santa Casa de São Paulo
Corredor da UTI (Unidade de terapia intensiva) da Santa Casa de São Paulo - Folhapress
Ao longo dos anos, o Brasil desenvolveu capacidades decisivas para fazer frente às emergências. Contudo, políticas de austeridade, ausência de prioridade política, privatização desafortunada, propaganda ideológica, fundamentalismo religioso e outras mazelas vêm comprometendo programas que outrora foram florões da saúde pública brasileira. A indiferença quanto à dilapidação deste patrimônio nacional explica-se pela existência de duas saúdes: uma para os pobres e a outra para os remediados e ricos. Essa dualidade, além de indecente, compromete a segurança de todos nós.
[ x ]
Justamente quando se vê convertido em grande laboratório global do avanço do novo coronavírus — por ser um país em desenvolvimento com dimensão continental e população que ultrapassa os 200 milhões de habitantes—, o Brasil descobre o tesouro que está por perder. Além de sua estrutura complexa que envolve as três dimensões federativas, existe a massa crítica oriunda de um potente sistema público de formação e pesquisa, fruto do investimento dos recursos dos contribuintes brasileiros e hoje ameaçado.
Ao enfim perguntar-se como de fato anda o SUS, a parte mais aquinhoada dos brasileiros descobre o heroísmo do pessoal de saúde do sistema público, que inclui a pouco valorizada excelência de nossa pesquisa científica em diversas vertentes, mas descobre também a penúria de recursos humanos, de equipamentos de proteção individual, de leitos e dos mais variados insumos.
As disfunções estão longe de ser novidade para quem conhece o sistema. Há anos os profissionais do SUS padecem de fadiga crônica, baixos salários, ausência de incentivo à progressão na carreira ou precarização absoluta de seu trabalho via privatização de serviços. Muitos atuam em condições degradantes, com falta de material e equipamentos, e se sentem sufocados pelos limites que a escassez de meios impõe ao sistema. Os casos de violência física ou moral contra profissionais de saúde somam-se à sua penosa impotência diante dos fatores econômicos, políticos e sociais que determinam a saúde das pessoas, ou a ausência dela.
Entre os milhares de brasileiros ora pendurados nas janelas para aplaudir o pessoal da saúde, poucos mobilizaram sua voz e seu voto em favor do SUS. Oxalá não se trate de uma paixão passageira movida pelo temor. Somos todos beneficiários dos programas de imunização, dos serviços de vigilância sanitária e epidemiológica, das estratégias de prevenção de doenças, entre tantas outras missões que somente um sistema público, com ação baseada em evidências científicas, pode cumprir.
Que esta pandemia deixe um legado construtivo apesar da imensa dor. Que cada brasileiro entenda a diferença entre ter e não ter o SUS, sabendo que sua segurança depende, de forma decisiva, do grau e da qualidade do investimento público em saúde.
Deisy Ventura é professora titular da Faculdade de Saúde Pública e coordenadora do programa de doutorado em Saúde Global e Sustentabilidade da USP