quinta-feira, 19 de março de 2020

Em solo virgem - Aos poucos, os infectados desenvolvem defesa, mas fica a devastação


O historiador norte-americano Alfred W. Crosby foi um observador de pássaros e apreciador de jazz, mas principalmente um pesquisador reconhecido por seus estudos em história, geografia, biologia e medicina. Para muitos, adicionou a biologia no processo de exploração humana, com vários estudos e observações dos movimentos de conquista europeus. Entre suas diferentes contribuições, Crosby conseguiu entender o impacto da pandemia de gripe espanhola de 1918. Entretanto, ele deixou sua marca na história da ciência pela explicação de como algumas epidemias conseguem ser tão devastadoras.
Seu conceito se fundamenta na entrada de um germe completamente desconhecido por uma população e capaz de causar doença. Talvez um dos melhores exemplos tenha sido a conquista das Américas pelos europeus nos séculos 15 e 16. Embora com poder militar muito superior às populações americanas, o que mais matou os locais foram doenças que já eram comuns na Europa, como varíola, tifo e sarampo. Outros exemplos são a introdução da peste bubônica por mongóis na Europa e no Oriente Médio no século 14 ou, ainda mais antigo, a varíola pelos romanos, nas mesmas regiões, no século 2.

O infectologista Esper Kallas em entrevista para a TV Folha sobre o coronavírus. Reprodução de vídeo da TV Folha. Foto: Jasmin Endo Tran/Folhapress
O infectologista e professor da USP Esper Kallás em entrevista para a TV Folha - Jasmin Endo Tran - 15.mar.20/Folhapress
Todos nós temos um sistema de defesa que tenta nos proteger contra germes desconhecidos, inclusive vírus. É denominado de sistema imune. Uma das chaves de seu funcionamento é ensinar nossas células a produzir substâncias protetoras (os anticorpos são o melhor exemplo) e a destruir diretamente alguns desses germes. É um processo construído ao longo de nossa vida, pois vamos guardando na memória imune as melhores armas contra cada agressor. Isso significa que cada um de nós pode participar da proteção coletiva, servindo de obstáculo de transmissão para os demais.
O novo coronavírus é um exemplo, que encontra toda a população desprovida de defesa. É o que Crosby denominou de epidemia em solo virgem. Sem obstáculo, sua transmissão é muito rápida, afetando muitas pessoas ao mesmo tempo, sequer impedido por proteções parciais, que poderiam ter sido construídas pelo contato de germes parecidos. Seu ineditismo faz o coronavírus completamente desconhecido do sistema imune dos seres humanos. Nosso sistema imune precisará de tempo para nos proteger.
A pandemia de Covid-19, portanto, é reflexo dessa fragilidade. Uma quantidade grande de pessoas será infectada. Aos poucos, os que tiveram contato com o coronavírus vão desenvolvendo defesa, ficando imunes. A pandemia vai perdendo força. Mas fica uma devastação. Alguns dos mais velhos e com problemas de saúde sofrerão o impacto.
Ao estudar a resposta ao novo coronavírus, podemos encontrar soluções, mas o tempo é curto. Com o ciclo de poucos meses até perder a força, precisamos encontrar formas de tratar nossos doentes. São vários remédios em estudo. Não podemos perder tempo. Outra forma seria criar meios de prevenir. Quer seja a infecção pelo germe, quer sejam as consequências da Covid-19. Aqui, a saída é ensinar o nosso sistema imune a combatê-lo. Seja com uma vacina ou dando as armas que o sistema imune produz para lutar contra o vírus (um anticorpo produzido em laboratório).
O conhecimento da resposta imune é elemento fundamental. Como o vírus entra no organismo? Quais células ele infecta? Qual é o mecanismo dos danos? Por que os idosos e as pessoas com outras doenças sofrem tanto com a Covid-19? As respostas serão fundamentais para traçar nossa melhor estratégia e mitigar o impacto da pandemia.
O solo de propagação do vírus está virgem. Mas, diferentemente dos séculos 2 e 14, ou em 1918, temos a arma da ciência ao nosso lado. Com ela, podemos entrar na batalha com mais confiança de encontrar soluções. A sociedade pode participar deste combate. Na linha de frente estão grupos de pesquisa como o Instituto de Investigação em lmunologia, da Faculdade de Medicina da USP, que conta com o fundamental apoio da Fapesp (agência de fomento à pesquisa do governo estadual de São Paulo).
Que as soluções venham a tempo.
Esper Kallás
Professor titular do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias - Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
TENDÊNCIAS / DEBATES
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Maria Hermínia Tavares - Lição de francês, FSP

Enquanto Bolsonaro disparava desatinos, Macron informava os franceses

  • 19
No último domingo, milhões de brasileiros estavam preocupados com as consequências do coronavírus para suas vidas: onde deixar os filhos pequenos e como alimentá-los, agora que as escolas começam a fechar; como proteger os idosos da família; como evitar o contágio no aperto do transporte coletivo; o que vai acontecer com o meu emprego, o meu bico, o meu pequeno negócio ou com a minha empresa quando a economia parar.
Todas essas inquietações passaram longe do Palácio do Planalto, de onde o presidente, desprezando todas as recomendações das autoridades sanitárias, saiu para confraternizar com a minoria fanática que, a seu chamado, bradava contra o Congresso e o Judiciário. Se dúvida ainda restava sobre a incurável incapacidade de Bolsonaro de exercer a função, foi enterrada com a sua aparição diante dos manifestantes e, mais tarde, na entrevista dada à CNN, que inaugurava a sua sucursal brasileira.
Em tempos normais, a democracia até que suporta governantes medíocres, pois, como ensinou o pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004), ela é a expressão consumada do governo das leis, e não do governo dos homens. Mas, quando os tempos são de crise, líderes democráticos são fundamentais para criar solidariedade entre as pessoas, mobilizar o país e decidir políticas.
Alguns, contra todas as previsões, se revelam sob a adversidade. Foi o que ocorreu na semana passada com o presidente da França, Emmanuel Macron. Enquanto Bolsonaro disparava desatinos a torto e a direito, começando por desdenhar do impacto da virose, seu homólogo gaulês dirigiu-se à nação.
Emmanuel Macron em pronunciamento na TV francesa - Ludovic Marin/AFP
Impecável, a sua fala trouxe informações objetivas sobre a gravidade do surto, reconhecimento e empatia com as angústias dos cidadãos comuns, além de detalhar um roteiro não só das medidas sanitárias já em curso como das iniciativas para sustentar a economia e atender às necessidades das pessoas. Apelou à solidariedade contra o individualismo e pelo apoio continuado ao projeto europeu contra o nacionalismo.
Mas, sobretudo, fez ardente defesa do Estado do Bem-Estar, que ali se chama Estado-Providência, lembrando que os serviços públicos de saúde não representam custos ou encargos, "mas trunfos indispensáveis quando o destino bate à porta". E ressaltou: "Essa pandemia revela que existem bens e serviços que não devem estar submetidos às leis de mercado."
O que vale para a França próspera deveria valer, com mais razão, para o Brasil pobre e desigual, pelo menos como horizonte de ação do chefe do governo. Mas o atual só tem a oferecer ódio, despreparo e ignorância.
Maria Hermínia Tavares
Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras.

Mariliz Pereira Jorge - Acabou, Bolsonaro, FSP

No coração de parte da população, seu governo acabou

  • 71
Jair Bolsonaro tem um longo mandato, mas no coração de parte da população seu governo acabou, como sentenciou o haitiano em frente ao Palácio da Alvorada. O presidente, que disse que a pandemia de coronavírus era "fantasia", talvez deva se preocupar com outra epidemia mais contagiosa, o de gente insatisfeita, que começa a gritar de suas janelas que "acabou".
Acabou, Bolsonaro. Políticos e personalidades já dão as costas ao governo. A última foi Janaína Paschoal, autora do pedido de impeachment de Dilma e quase vice da chapa Bolsonaro. Da tribuna da Assembleia paulista, a deputada disse ter se arrependido do voto e defendeu que o presidente seja afastado.
Acabou, Bolsonaro. Ídolo máximo do presidente, Donald Trump recuou, admitiu que a crise de saúde pode durar meses, anunciou ajuda financeira aos americanos e seu atual discurso é o de que previu que o coronavírus seria uma pandemia, deixando Bolsonaro isolado na retórica negacionista.
Paulo Guedes, Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta falam sobre o coronavírus - Sergio Lima/AFP
Acabou, Bolsonaro. Os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal parecem cada vez mais unidos para combater as aspirações golpistas de Jair. Juntar-se a manifestações que pediam o fechamento dos Poderes e AI-5 e depois dizer que valoriza as instituições não cola mais.
Acabou, Bolsonaro. Até o empresário Luciano Hang, bolsonarista apaixonado, cansou de bater palma para maluco. Recomendou que o presidente não fosse à manifestação e cobrou "serenidade".
Acabou, Bolsonaro. O tiozão do pavê e a tia do zap já demonstram incômodo frente ao desempenho do governo, às irresponsabilidades do presidente, à quantidade de tretas desnecessárias e de piadas sem graça até para os padrões pavê e zap.
O governo vai até o final de 2022, mas a gritaria que vem das janelas é altamente contagiosa e pode tomar as ruas. Anote aí, Bolsonaro: acabou. Mesmo que seja só o sossego.
Mariliz Pereira Jorge
Jornalista e roteirista de TV.