terça-feira, 17 de março de 2020

‘Todo pessimista é um grande vagabundo’, diz Cortella, SOnia Racy , OESP

Sonia Racy
16 de março de 2020 | 00h30

Ricardo Chicarelli/Estadão


Aos 66 anos, “mais de 60 dedicados à leitura”, como faz questão de ressaltar, Mario Sergio Cortella é professor, filósofo, escritor, palestrante, youtuber e, por causa disso tudo, digital influencer, embora não aprecie muito o termo. “Antigamente, multitarefa era impressora; agora, todos nós somos um pouco.”
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Mas com limites. Ele ignora o WhatsApp, “pois não teria tempo para responder nem para ver todos os GIFs de gatinhos e cachorrinhos”. Também não usa Twitter, porque se considera um pouco paranoico: “Não gosto de seguir nem de ser seguido”, disse ele à coluna. Por outro lado, coleciona likes e corações de uma legião de fãs no Facebook (pouco mais de 1,7 milhão) e no YouTube (cerca de 877 mil). Homem devotado às letras e à educação, Cortella, que já foi secretário da pasta durante a gestão da prefeita Luiza Erundina, em São Paulo, se deu como missão de vida traduzir a filosofia e o pensamento literário para uma forma mais simples, “mas jamais simplória”. E tem conseguido.
Autor de mais de 40 livros (solo ou na companhia de nomes, como Luiz Felipe Pondé, Mauricio de Sousa, Leandro Karnal e a monja Coen), acaba de lançar Ainda Dá!: A Força da Persistência, em parceria com o jornalista Paulo Jebaili, “amigo quase desde o século passado”. O livro aborda a busca da excelência, “aquele esforço de ir além, de ultrapassar limites, de avançar, de fazer melhor”, como ele explica. Seria a receita para o Brasil?
Talvez. “Mas precisamos ser mais otimistas”, avisa. “Não o otimista ingênuo, mas o otimista crítico, aquele que, em vez de amaldiçoar a escuridão, tenta acender uma vela”, explica, citando a Bíblia. Leia abaixo a entrevista com o professor que quase se tornou monge na juventude.
O que dá mais trabalho: estudar, ensinar ou escrever?
Só é possível ser um bom escritor se você é um bom leitor. O livro mais difícil de publicar não é o primeiro, é o segundo. Porque o primeiro pode ter sido uma coincidência de fatores, algo que aconteceu de maneira casual, encontrou o momento e a época certos. Os mais de 60 anos como leitor me deram serenidade para escrever. Estudar e ensinar são atividades menos complexas do que escrever.
Basta se sentar e começar?
Como eu sou uma pessoa da fala, um docente, muitas vezes eu “falo” o texto e gravo. Há cerca de 13 anos, o Paulo Jebaili se senta comigo para me entrevistar. Alguns livros saíram assim, como Qual é a Tua Obra e A Sorte Segue a Coragem. Porque, quando você tem um interlocutor, as ideias vêm com mais facilidade. O Oscar Wilde dizia que, ao viajar, carregava sempre um diário escrito por ele mesmo, para ter alguma coisa boa para ler. Mas eu não sou sempre uma ótima companhia para mim mesmo.
Finalmente alguém que admite isso abertamente…
Sou muito limitado quando estou sozinho. Só quando temos outras pessoas por perto, a convivência, o enfrentamento de ideias, a discussão, o afeto, é que conseguimos crescer. Para quem escreve, existe uma regra geral que é “deixar dormir”, “deixar descansar”, para que você possa olhar para o trabalho de outra forma mais tarde.
Isso possibilita que se faça escolhas melhores?
Sim, embora toda escolha seja uma abdicação. Quando escolho algo, estou “desescolhendo” todo o restante. Mas você só faz escolhas se tiver critérios claros, senão não é escolha feita por você, é acaso. Atualmente, estamos tendo de fazer mais e mais escolhas. E algumas são muito perigosas.
Mas quem julga se as escolhas são boas ou ruins?
O resultado. Estamos em um impasse, uma encrenca: a natureza segue com sua forma de ação e nós somos vitimados sem que ela tenha uma intenção malévola. Incêndios, secas, nevascas, isso tudo sempre aconteceu, a natureza independe de nós. A questão é que escolhemos um modo de viver, de consumir, de produzir, que é altamente biocida. As escolhas das pessoas que estão na liderança política, econômica e social dos grandes grupos humanos (e também as escolhas individuais) têm efeitos sobre o mundo.
Que tipo de efeitos concretos?
Hoje vivemos uma crise de condições de vida, de condições ambientais, de convivência, gerada por nós. Ela não veio de uma divindade ou de um deus lá de cima.
Foi essa compreensão que o fez trocar Deus pelo ser humano?
Do ponto de vista religioso, não houve troca. Não mudei de lado, mudei de lugar dentro do mesmo lado. Tinha acabado de entrar na universidade, em Filosofia, e resolvi ter uma experiência religiosa mais densa. Não queria ter uma visão superficial da religião. Fui para um convento, a Ordem dos Carmelitas Descalços, e fiquei três anos lá, enquanto estudava. E decidi que aquela não era a rota que eu queria seguir. Foi uma escolha. Será que eu teria sido mais feliz como religioso? Não sei, porque não fiz essa escolha. O “se” em relação ao passado é apenas poesia.
Mas o que é ser feliz?
Ser feliz é você ter a percepção de que não está descartando a vida. De que, quando ela terminar, não a terá jogado fora. A vida é única, é estupenda, um mistério maravilhoso. Mas também é circunstância. A felicidade não é um fato contínuo, é uma ocorrência. A questão é que o ser humano tende a viver ou no passado ou no futuro, porque o momento presente é muito difícil.
Você faz esse exercício?
Como todo ser humano, tenho dificuldade de fazê-lo. Até porque inventamos parte de nossas memórias, temos a nossa avaliação própria sobre o que aconteceu. Porque o estar agora no tempo nos leva à pergunta: “Isso que estou fazendo, nesse momento, me levará aonde?”. E essa é uma ação muito importante, porque é preciso cautela para não se levar uma vida automática, robótica, em que eu simplesmente vou existindo. A felicidade não vem sempre, não vem o tempo todo, ela vai embora.
O projeto dos dinossauros era melhor do que o do ser humano?
Não, os dinossauros não tinham um projeto. Simplesmente executavam uma ordem que podemos chamar de instinto, e nós, humanos, não temos instintos que não possamos controlar.
E o instinto de sobrevivência?
Nós somos capazes de nos matar, somos capazes de comer picanha com gordura. Instinto sexual? Não, sexo sem consentimento é brutalidade, violência.
Mas, às vezes, a gente tem o instinto de matar o outro.
Isso não é instintivo, é uma reação possível. Tanto que a lei considera um atenuante se você, ao atirar em alguém, estiver movido por súbita e violenta emoção. A ideia das estradas de ferro – pare, olhe e pense – continua valendo. Os dinossauros não podiam escolher, porque o instinto conduzia sua conduta. Mas nós temos de escolher. Sartre dizia que somos obrigados a ser livres.
Mas a pessoa tem mesmo controle sobre isso? Ela escolhe?
Santo Agostinho, lá no século 5, dizia que, quando você tem dois prisioneiros em uma cela, provavelmente um deles ficará o tempo todo olhando para o chão, e o outro ficará olhando além das grades, pensando “eu vou sair daqui, há um sol lá fora”. Para ambos é questão de escolha. Ou senta e chora ou levanta e enfrenta.
E quem define o que é ser bom caráter, o que é ser ético?
Para mim, não é a ocasião que faz o ladrão, a ocasião apenas o revela. Ser ladrão ou não é uma decisão anterior à ocasião. Como a gente é livre, tem coisa que eu quero mas não posso, coisa que eu posso mas não devo, coisa que eu devo mas não quero. Ora, isso é ética: como fazer com que aquilo que eu quero seja aquilo que eu posso e aquilo que eu devo. É assim que se consegue ter harmonia.
O poder revela ou o poder transforma?
As duas coisas. Pode me transformar em uma pessoa mais generosa, mais amável, mas pode me transformar também em um déspota, alguém que gosta do poder pelo poder. A pergunta é: será que já nasci como sou, com todas as minhas virtudes, qualidades, defeitos? Se eu não acreditasse que somos capazes de nos transformar para melhor, não seria professor, não seria educador.
O senhor é um otimista.
Ainda bem! Acho que todo pessimista é um grande vagabundo. Porque a melhor maneira de não precisar fazer nada é acreditar que não adianta tentar fazer alguma coisa. E a melhor maneira de não precisar se mexer e deixar tudo parado é achar que não adianta se mexer.
Então, o otimista não é um pessimista mal informado?
Eu quero ser um otimista crítico, não ingênuo. O otimista crítico é aquele que, para usar uma frase bíblica, em vez de amaldiçoar a escuridão, tenta acender uma vela.
Hoje, com as redes sociais, existe uma vigilância constante, parece que temos uma câmera sobre as nossas cabeças o dia inteiro. Isso inibe ações antiéticas?
Ah, inibe bastante. A gente fica mais cauteloso em relação ao que faz, fica bem mais vigilante.
E mais humilde…
E também fica mais humilde, que é uma característica excelente. Porque a pessoa humilde é aquela que sabe que não sabe tudo, aquela que abre a cabeça para as coisas que ainda não conhece. Humildade é a capacidade de entender que eu sou bastante, mas não sou tudo. Que eu sou muito, mas não sou o resto. Meu filósofo predileto, René Descartes, propõe a dúvida metódica. Não duvidar por duvidar, mas duvidar para ter clareza da certeza que poderá vir. Por isso, a humildade é a capacidade também de acolher a dúvida.
Mas o excesso de dúvida não impede a pessoa de decidir? Não paralisa?
Se você só tiver dúvida, não decide. Mas, se não tiver dúvida alguma, também vai correr o risco de decidir errado. A dúvida metódica é sinal claro de inteligência e humildade.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Moisés Naím Somos todos vizinhos, OESP

Moisés Naím*, O Estado de S.Paulo
16 de março de 2020 | 03h00

É interessante analisar os grandes debates dos nossos tempos à luz do que está acontecendo com o coronavírus. Quão aberto para o restante do mundo um país terá de ser? Até que ponto devemos acreditar nos especialistas? Esta pandemia estimulará o individualismo ou o altruísmo?
Os que defendem a integração econômica, política e cultural entre os países chocam-se com os partidários do nacionalismo e do protecionismo. “Rechaçamos o globalismo e abraçamos a doutrina do patriotismo”, afirmou o presidente Donald Trump em seu discurso na ONU em 2018.
E também recomendou aos líderes mundiais que adotassem sua própria versão do nacionalismo e protecionismo. Trump deixou clara ainda a sua antipatia pelo multilateralismo, ou seja, pelas iniciativas baseadas em acordos que incluem um grande número de países. O multilateralismo levou à criação de organismos como as Nações Unidas e o Banco Mundial, por exemplo.
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O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump Foto: Yuri Gripas/EFE/EPA
Também é a ideia que anima os acordos em que os países participantes se comprometem a empregar esforços conjuntos para lidar com problemas que nenhum país pode enfrentar sozinho, independentemente de quão grande, rico ou poderoso ele seja. A mudança climática, a imigração ou o terrorismo são exemplos disso.
O presidente Trump não gosta destes acordos multilaterais. “Os Estados Unidos sempre escolherão a independência e a cooperação em lugar do controle e da dominação da governança global”, prosseguiu o presidente. Embora Trump seja um dos críticos mais visíveis da globalização, não é o único. Inúmeros líderes políticos, assim como intelectuais de fama mundial, rechaçam a globalização.
É neste contexto que faz a sua revolucionária aparição o coronavírus. Se a globalização se baseia no movimento internacional de produtos, ideias, pessoas e tecnologia, então esse vírus é um poderoso exemplo da globalização de fluidos biológicos. E também confirma como é míope pensar na globalização somente como um fenômeno comercial, financeiro ou midiático.
Ocorre que alguns fluidos biológicos, por exemplo, viajam mais rapidamente, a distâncias maiores, têm efeitos mais imediatos e impactos maiores do que os demais fluidos que caracterizam a globalização. Mas a reação ao coronavírus também revela quão tentador seja o isolacionismo. Um número cada vez maior de governos está tratando de fechar as fronteiras e isolar as cidades e as regiões mais afetadas, bloqueando o livre trânsito de pessoas e as comunicações aéreas.
Estamos vivendo em tempo real o choque entre o globalismo e o isolacionismo. Mas ao mesmo tempo em que estão fechando suas fronteiras, estes governos estão descobrindo quanto eles necessitam do apoio de outros países, e de organizações multilaterais como a Organização Mundial da Saúde.
O coronavírus também está servindo para renovar o cenário e conceder um papel de protagonistas a especialistas e cientistas. Uma das surpresas deste jovem século 21 foi a perda de credibilidade dos especialistas e o auge dos charlatães e demagogos. Essa tendência teve um momento icônico quando, em 2016, Michael Gove, o então ministro da Justiça da Grã-Bretanha, reagiu a um estudo no qual renomados especialistas criticavam o Brexit, projeto que ele promovia.
O ministro afirmou descaradamente: “As pessoas deste país já aguentaram suficientemente estes especialistas”. Outro que rotineiramente deprecia os especialistas é Donald Trump. Ele afirmou que a mudança climática é uma farsa montada pela China, que ele sabe mais a respeito da guerra do que os seus generais, ou que entende deste vírus melhor que os cientistas.
Não mesmo. Ocorre que, na “questão do vírus”, os cientistas devem ser – e felizmente estão sendo – os principais protagonistas. Aliás, muitos deles são funcionários públicos, outra categoria de profissionais em geral menosprezada pelos líderes populistas que conseguiram chegar ao poder avivando as frustrações e ansiedades do “povo” que eles dizem representar.
Os populistas convivem mal com os especialistas e com os dados que contradizem os seus interesses. Detestam os organismos públicos que abrigam especialistas e produzem dados inquestionáveis. Mas a crise do coronavírus demonstrou que estas burocracias públicas, cujos pressupostos e capacidades costumam ser minados por líderes que as depreciam, são a nossa principal linha de defesa contra a ameaça inédita de uma pandemia.

Altruísmo

pandemia não só faz com que os especialistas e seus organismos desempenhem um papel maior, como também faz com que adquira renovada urgência e relevância prática o velho debate entre altruísmo e individualismo. O altruísta está disposto a beneficiar os outros – mesmo desconhecidos – ainda que em detrimento dos próprios interesses. O individualista, ao contrário, tende a agir independentemente dos efeitos que suas decisões possam ter para o bem-estar dos demais.
Nas próximas semanas e meses descobriremos quais são – tanto as pessoas quanto países – os mais dispostos a atuar tendo em mente também os demais que pensam somente em si mesmos. E isso será mais fácil de descobrir uma vez que o coronavírus deixou patente que somos todos vizinhos. Até mesmo os países e pessoas que adotam uma posição diametralmente oposta à nossa.
* É ESCRITOR VENEZUELANO E MEMBRO DO CARNEGIE ENDOWMENT

Miguel Reale Júnior defende que junta médica avalie sanidade mental de Bolsonaro, OESP

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo
16 de março de 2020 | 12h04
Um dos autores do pedido de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff, o jurista Miguel Reale Júnior defendeu que o Ministério Público peça que o presidente Jair Bolsonaro seja submetido a uma junta médica para saber se ele teria sanidade mental para o exercício  do cargo. 
Jurista Miguel Reale Júnior
Jurista Miguel Reale Júnior Foto: Andre Dusek/Estadão
Ex-ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso, Reale disse ao Estado que o presidente deve ser considerado "inimputável" por ter participado de uma manifestação no domingo, 15, contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) em Brasília em plena pandemia de coronavírus. "Seria o caso de submetê-lo a uma junta médica para saber onde o está o juízo dele. O Ministério Publico pode requerer um exame de sanidade mental para o exercício da profissão. Bolsonaro também está sujeito a medidas administrativas e eventualmente criminais. Assumir o risco de expor pessoas a contágio é crime", afirmou o jurista. 
O presidente ignorou a orientação de sua equipe médica e diretrizes do Ministério da Saúde para tratar a epidemia do coronavírus e participou, ontem, de ato a favor do seu governo. Ele deixou o isolamento que deveria fazer por ter tido contato com pelo menos 11 pessoas que estão infectadas. 
Segundo Reale, a participação de Bolsonaro no ato fere a Lei 13.979, que foi sancionada pelo Executivo e regulamenta as ações para enfrentar a pandemia. O ex-ministro não defendeu, porém, o impeachment do presidente. "O impeachment é um processo muito doloroso". 

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