terça-feira, 17 de março de 2020

A leitura em tempos de coronavírus, Alvaro Costa e Silva, FSP

Obras de Camus, Saramago, Defoe e García Márquez não têm contraindicações

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Você conhece o "Decameron", de Giovanni Boccaccio, que está na origem do conto como gênero literário. No flagelo da peste bubônica na Florença de 1348, dez nobres, durante dez dias, se confinam e decidem contar histórias. Na Itália de hoje, país europeu mais atingido pela pandemia de coronavírus, a situação se repete. Uma espécie de efeito colateral que bate nas pessoas obrigadas a ficar em casa: a leitura. As vendas online de dois romances "A Peste", de Albert Camus, e "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago"“ dispararam.
O de Camus é uma peça de resistência: a cidade de Oran, infestada de ratos, se transforma em alegoria da Europa ocupada pelo nazismo. O de Saramago é um thriller de terror: a epidemia de cegueira branca mostra a que ponto se pode chegar diante de uma situação de caos. Invadir supermercados para esvaziar prateleiras com papel higiênico e álcool gel é só o início.
Há outras indicações na literatura, a competir com a maratona de séries e flash mobs sonoros. Num conto de Edgar Allan Poe, "A Máscara da Morte Vermelha", o príncipe Próspero despreza as alusões à peste negra e resolve dar uma festança, trancando mil amigos num castelo e deixando a miséria lá fora.
Qualquer semelhança com o Brasil atual é mera coincidência.
O tema era caro a Gabriel García Márquez: em "Cem Anos de Solidão", a peste da insônia contamina os habitantes de Macondo; o título "O Amor Nos Tempos do Cólera" dispensa explicações. Nas duas obras, revela-se a admiração do autor por "Um Diário do Ano da Peste", de Daniel Defoe. Há quase 300 anos este livro é um modelo, não só para abordagens sobre epidemias como também do registro de informações jornalísticas utilizando-se da narrativa ficcional. Suposto relato de uma testemunha ocular, a ação se passa no verão londrino de 1665, quando o autor tinha quatro anos de idade.
Lave as mãos depois da leitura.
Alvaro Costa e Silva
Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

Pablo Ortellado Está na hora de discutir o impeachment, FSP

Participação do presidente em protesto e negligência com coronavírus deveriam nos levar a discutir o impeachment

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As insensatas manifestações do último domingo, 15, foram a gota d'água. Num só gesto, Bolsonaro mostrou, para quem ainda tinha dúvidas, que está ativamente conspirando contra os outros Poderes; além disso, ao participar do convescote autoritário, contrariando recomendação sanitária, mostrou que não tem autoridade para liderar o país na crise do coronavírus. Está na hora de discutirmos seu impeachment.
Além de celebrar a manifestação e pessoalmente participar dela, Bolsonaro tem reiteradamente minimizado a crise do coronavírus, chamando as medidas que estão sendo implementadas de "extremismo", "histeria" e "superdimensionamento", quando sua missão seria a de colaborar com as ações que podem reduzir o número de óbitos.
A taxa de mortalidade de quem se contaminou com o coronavírus é de 3,74%. Assim, se o vírus contaminar 10% da população, o que pode acontecer em alguns meses, deve matar 785 mil brasileiros. Isso é 15 vezes o número de brasileiros mortos na Guerra do Paraguai.
O presidente Bolsonaro está preparado para conduzir o país durante uma epidemia dessa magnitude? O que pode acontecer caso, incomodado com alguma atitude do ministro da Saúde, Henrique Mandetta, resolva substituí-lo por um fanático ignorante como Weintraub, Araújo ou Damares?
Mas isso não é tudo. A estratégia da confusão pela qual Bolsonaro tenta dissimular seu ataque à independência dos Poderes não deveria enganar mais ninguém.
O presidente ao mesmo tempo estimulou as manifestações e disse que eram espontâneas; permitiu que atacassem o Congresso e o Supremo e disse que não compartilha dessas posições; fez pronunciamento pedindo que as manifestações não acontecessem e, quando aconteceram, divulgou vídeos dos protestos e compareceu à manifestação em Brasília; disse que respeita Maia e Alcolumbre, mas que quem deveria prevalecer é o povo nas ruas.
Como Bolsonaro quer confundir, devemos sempre tomar como sua a posição mais grave que não foi desmentida por uma negativa firme e inequívoca. Por esse motivo, precisamos ter clareza: Bolsonaro convocou e participou de manifestações que pediram o fechamento do Congresso e do STF.
É bem verdade que o impeachment deveria ser evitado, porque o instituto não pode ser abusado e já está bastante desgastado depois do controverso impedimento de Dilma Rousseff. Mas a crise é grave e parece cada vez mais que a inação pode levar a um comprometimento permanente das instituições.
Podemos nos dar ao luxo de manter Bolsonaro no poder por mais dois anos?
Pablo Ortellado
Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.