sexta-feira, 13 de março de 2020

Ruy Castro O cerco se fecha, FSP

Woody Allen tem seu livro recusado por um grande grupo editorial com sede na Europa

Como faz há anos, Woody Allen continua tocando sua clarineta às segundas-feiras no Café Carlyle, em Nova York. Durante a hora e meia em que se apresenta, acompanhado por jazzistas tradicionais, é como se aquela música —temas de quase cem anos, como "Rosetta", "Heebie Jeebies", "Potato Head Blues"— o levasse a uma Nova Orleans que talvez nunca tenha passado de lenda, melhor que sua áspera realidade de hoje. O próprio Carlyle Hotel, em cujo térreo fica a boate, também é, desde 1930, um endereço mágico. Onde mais um presidente dos EUA, John Kennedy, poderia receber às escondidas a mulher mais famosa do mundo, Marilyn Monroe?
O Carlyle deve ser dos poucos lugares em que Woody Allen está a salvo de Ronan Farrow, seu filho com Mia Farrow e que não descansará enquanto não acabar de destruí-lo. O motivo é a acusação, nunca provada, de que Woody abusou da irmã dele, Dylan, filha adotiva do cineasta. Ao saber que Allen estava para publicar um livro de memórias, "Apropos of Nothing" (a propósito de nada), pela Hachette, mesmo grupo editorial que acabara de lançar o seu próprio livro, "Operação Abafa - Predadores Sexuais e a Indústria do Silêncio", Farrow incitou uma rebelião dentro da editora e cerca de 50 funcionários desta intimaram seus patrões a cancelar o livro de Woody.
Surpreendentemente, foi o que a Hachette fez na sexta última (6). A decisão de vergar-se a pressões e negar voz a quem deveria ter tanto direito de se expressar quanto seu inimigo mancha os 194 anos de existência da Hachette.
O mundo está se fechando para Woody Allen. Não sei se ele ainda pode andar pelas ruas de sua amada Nova York sem ser ofendido por ativistas. Restava-lhe a Europa. Agora, uma instituição francesa lhe fecha as portas.
Só falta Ronan Farrow ir para a porta do Café Carlyle a fim de impedir Woody de tocar. Mas deixe-o tentar --o Carlyle saberá o que fazer.

Covid-19, a solução darwiniana, Hélio Schwartsman, FSP ( filósofo em campo)

Até o ponto de inflexão, epidemias progridem em ritmo avassalador

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Respondo hoje à provocação do leitor Claudio Rangel: "Começo a achar cada vez mais que há um dramático exagero na reação ao coronavírus. Talvez dar 'shutdown' no mundo como estamos fazendo acarrete muito mais externalidades (mortes) do que se 'deixássemos a coisa rolar'. Numa visão utilitarista, não seria melhor assumir que o vírus é um elemento de seleção natural e levar a vida (quase) normalmente? Haveria um colapso maior nos sistemas de saúde por 1, 2, 3 meses, mas depois voltaria ao normal e o resto do mundo seguiria funcionando".
Eu penso que não. Mesmo na visão utilitarista, é importante que nos esforcemos para reduzir o ritmo dos contágios. O problema de fundo aqui é que, na fase inicial da epidemia, nós lidamos com uma função exponencial —algo que a intuição humana tem dificuldade em processar. Se você lembrou da história do grão de trigo e o tabuleiro de xadrez popularizada por Malba Tahan, acertou.
Até atingir o ponto de inflexão, epidemias progridem em ritmo avassalador. Um exemplo calculado por Grant Sanderson, do canal 3Blue1Brown, dá bem a dimensão do problema. Se você tem 21 mil infectados e a epidemia cresce a uma taxa de 15% ao dia, haverá, dentro de 61 dias, 105.873.570 infectados.
Se, porém, você baixar o ritmo de crescimento de 15% para 5% durante esse período "inflacionário" —o que não é impossível com a adoção de medidas duras de afastamento social—, seu total de pacientes ao cabo de 61 dias despencará de mais de 100 milhões para 411.876.
Obviamente, essa escala de diferença faz toda a diferença para um sistema de saúde. Como, devido a outra armadilha matemática, a taxa de mortalidade da covid-19 varia muito em função da sobrecarga a que os hospitais estão submetidos, eu não recomendaria a solução darwiniana. Detalhe, não é só a mortalidade da covid-19 que aumenta quando o sistema entra em colapso, mas a de todas as doenças.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".