segunda-feira, 9 de março de 2020

Marcus André Melo Política é descompostura, FSP (definitivo)

Política é descompostura

Um século depois da frase de Gilberto Amado, os problemas reaparecem em nova roupagem

“No Brasil, desaforo é que é combate. Luta política é descompostura.” A afirmação é de Gilberto Amado, em “Presença na Política”, de 1958. Ele se referia aos anos 1920, quando chamava a atenção dos colegas congressistas para os graves problemas do processo orçamentário do país —mas era solenemente ignorado.
Suas denúncias não tinham efeito mesmo que reproduzisse o diagnóstico alarmista da Missão Inglesa de 1924, que  apontava dois problemas principais: as “caudas orçamentárias” (abertura de créditos adicionais para cobrir despesas sem previsão de receita, aprovadas por parlamentares nos últimos dias de votação) e o endividamento externo brutal de alguns estados. A questão a ser enfrentada era como impedir que o Legislativo desfigurasse o Orçamento, em processos tipo tragédia dos comuns que discuti aqui.
O presidente do Congresso Nacional senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) explica a deputados e senadores o acordo feito para a votação do veto presidencial à lei das emendas impositivas
O presidente do Congresso Nacional senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) explica a deputados e senadores o acordo feito para a votação do veto presidencial à lei das emendas impositivas - Pedro Ladeira/Folhapress
Parte dos problemas foram resolvidos com a reforma constitucional de 1926, proibindo a inclusão de emenda sem previsão de receita. E seguiram-se outras medidas: a lei 4320/1964, a Constituição de 1988, e a LRF (lei 101/2000). Um século depois, os problemas reaparecem em nova roupagem. Vários estados estão quebrados, e o equacionamento do problema é federal, o que equivale a dizer que passa pela socialização de custos.
Mas não se deve pensar em duas agendas, a do Executivo e a do Legislativo. Quando há governo de coalizão estável e coordenação forte, alinham-se os interesses, malgrado os incentivos distintos com que se deparam Executivo (que é premiado eleitoralmente pelo controle da inflação e emprego) e Legislativo (que é premiado pelos benefícios que trazem para suas bases de sustentação política). Os partidos da base beneficiam-se do sucesso do governo de que fazem parte, embora sempre exista incentivos para o comportamento oportunista de parlamentares. Se há coalizão estável e coordenação forte, os parlamentares pensam em termos de fluxo de benefícios que poderão auferir ao longo do mandato.
Quando não há alinhamento de interesses, instaura-se um curto-prazismo generalizado, pelo qual a preocupação com a sustentabilidade fiscal diminui e os parlamentares focam o ganho imediato.
O conflito em curso sobre o controle do Orçamento reflete um quadro criado pela ausência de coalizão estável. Trata-se de um dilema criado pelo governo ao atar as próprias mãos: a rejeição à velha política de montagem de coalizões formais de apoio foi uma das razões do sucesso eleitoral do presidente. Tem que fingir que a rejeita mesmo quando a pratica.
O país fez progressos na área orçamentária em cem anos, mas o discurso político como descompostura e desaforo adquiriu inédita estridência.
Marcus André Melo
Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

Ruy Castro Rir é o melhor remédio, FSP

Encher um estojo com pílulas é um exercício que pratico semanalmente

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Um amigo me perguntou ao telefone: “E aí, vendendo saúde?”. Respondi: “Não. Comprando saúde. Vou mais a farmácias do que a botequins”. Ele suspirou, “Eu também”, e me contou suas aventuras com o estojo de remédios que, uma vez por semana, os maiores de 200 anos têm de encher —um quadradinho para cada dia e hora, com a maior atenção, para não se tomar o remédio errado. Sei o que é isso. Encher esse estojo é um exercício que também pratico semanalmente.
O segredo é esquecer por algumas horas os nomes dos personagens de Dostoiévski, se o estivermos lendo —Raskolnikov, Smerdyakov, Razumikhin, Marmeladov, Svidrigaïlov—, para nos concentrarmos nos nomes dos remédios que temos de organizar. Alguns são fáceis de aprender, como a lamotrigina, a espironolactona, o ácido acetilsalicílico. Mas o que dizer do succinato de metoprolol? E da rosuvastatina cálcica? E da levotiroxina sódica? E do bissulfato de clopidogrel? Meu amigo contou que, precisando de uma caixa de cloridatro de metformina, pediu, por força do hábito, uma de citrato de sildenafila —nome sob o qual se esconde o viagra.
E esse é um dos problemas. Podemos conhecer um remédio pelo nome de guerra —aspirina, synthroid, plavix—, mas, ao pedi-lo, as farmácias nos sugerem o genérico e informam que, por uma dessas coincidências, ele está em oferta naquela semana e que tal levarmos três caixas em vez de uma? Acontece que os genéricos, como o nome indica, são chamados por sua complexa composição química. E, com isso, entra em nossa vida, de repente, o esomeprazol magnésico tri-hidratado.  
Um laboratório fabrica certo remédio em pilulinhas brancas e redondas. Em outro, o mesmo remédio vem em pilulonas amarelas e quadradas. E, num terceiro, em forma de ameba e azuis. Se você se distrai ao compor o estojo, candidata-se a uma overdose.
Ler Dostoiévski é mais seguro.
Estojo com medicamentos
Estojo com medicamentos - Heloísa Seixas
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Vinicius Mota Maré fascista faz 100 anos, FSP

No romance 'M', Mussolini conta como ergueu sua catedral de violência

Na Itália após a Primeira Guerra, a vitória sobre o império austríaco pesa como um fardo. Veteranos do conflito das trincheiras vagam pelo país sem perspectiva de coisa nenhuma.
Entre eles estão os “arditi”, jovens que nas batalhas se especializaram em penetrar as linhas do inimigo e assassinar sentinelas a golpes de punhal, a arma que, entre os dentes de um crânio, estampa as suas camisas escuras.
O ditador italiano Benito Mussolini
O ditador italiano Benito Mussolini - Reprodução
Gabriele D’Annunzio, gigante da poesia italiana, aviador e herói de guerra, arrebata os desnorteados. Em 1919 comanda uma ação tresloucada e toma o território do Fiume, hoje na Croácia.
Inspirados nos bolcheviques russos, os socialistas revolucionários avançam nos campos e nas fábricas do vale do Pó, no norte italiano. Festejam a engorda nas eleições parlamentares de 1919 e anunciam para logo a derrubada do Estado burguês.
Em Milão, em março daquele ano, o militante enxotado do Partido Socialista Benito Mussolini agrega renegados nos Fasci di Combattimento, cuja estreia nas urnas é um fiasco.
Na alcova, a magnata Margherita Sarfatti ensina bons modos e o gosto pelas artes ao amante Benito. Apresenta-o a D’Annunzio, que insiste para que os fascistas apoiem a resistência utópica do Fiume e ainda mais: uma marcha sobre Roma.
Depois das greves de 1920, empresários financiam e a política coonesta as expedições punitivas de fascistas contra socialistas. A pequena-burguesia engrossa os fasci, e a maré muda.
A governança da Itália apodrece, e em dois anos Mussolini dá o blefe com a ideia roubada a D’Annunzio. Uma multidão de maltrapilhos mal armados se desloca rumo à capital em meio a tempestades. O rei se recusa a decretar o estado de sítio que poderia esmagar em poucas horas aquela boçalidade.
Em “M” (ed. Intrínseca), o soberbo romance de Antonio Scurati agora traduzido no Brasil, Mussolini e seu círculo de escroques contam como transformaram a violência numa catedral.

M, O FILHO DO SÉCULO

  • Preço R$ 79,90 (816 págs.)
  • Autor Antonio Scurati
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Marcello Lino
Vinicius Mota
Secretário de Redação da Folha, foi editor de Opinião. É mestre em sociologia pela USP.