quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

ROSEBUD - Resenha crítica sobre o filme “Cidadão Kane”, de Orson Welles, Recanto das Letras


         A presente resenha visa comentar sobre o filme “Cidadão Kane”, de 1941, baseado na obra de Orson Welles, que conta a história de vida do jornalista fictício Charles Foster Kane, papel interpretado pelo próprio Orson Welles. Como observação, esta resenha contém um resumo do filme e descreve o seu final.

         O filme tem início com a morte do milionário jornalista Charles Kane, que em seu leito de morte pronuncia sua última palavra antes de expirar: “Rosebud”.
         Um grupo de jornalistas inicia, assim, uma investigação sobre a vida pessoal de Kane a fim de descobrir o significado da palavra. São os relatos dos velhos conhecidos da vida de Kane que levam o espectador a conhecer a história do empresário. O espectador tem conhecimento da vida de Kane através dos fragmentos de momentos de sua história, desde sua infância, quando morava com sua mãe em um humilde pensionato no interior, até seus últimos momentos em sua luxuosa e opulenta mansão.
         É relatado que a mudança na vida pacata de Foster Kane ocorre subitamente, quando sua mãe recebe como pagamento de um pensionista as escrituras de uma mina supostamente sem valor. Mas o fato era que a mina estava cheia de ouro e isso rende à família uma fortuna incalculável. Kane, então, é tirado do convívio de seus pais e levado para ser educado por um grupo de empresários, que o moldam para a vida pública dos magnatas do poder. Cedo Kane compra um modesto jornal e passa a se tornar um jornalista implacável e impetuoso. Sua vida se torna recheada de jogos de interesse, luxo e fama. Em sua velhice, Kane manda construir para si uma enorme e esplendorosa mansão, batizada de Xanadu, em homenagem à mítica cidade asiática, conhecida por seus poetas como a capital do prazer. É lá que, isolado de tudo e de todos, morre, deixando para os personagens do filme o enigma de sua última palavra.
         O filme termina e ninguém revela o mistério de “Rosebud”. Somente ao espectador é revelado o significado da palavra, aos últimos segundos do filme, o que o leva à reflexão não durante, mas após o término do filme. A crítica tomou esta obra de Welles não só como um marco na história do cinema, quanto ao roteiro, filmagem e cenário, como a considerou mais tarde como o melhor filme da história do cinema de todos os tempos. Pretendo ponderar sobre alguns dos elementos que fazem deste filme realmente uma obra-prima do cinema.

         A trama em “Cidadão Kane” tem início com uma palavra: “Rosebud”. A mídia especula que tal palavra deva ter um sentido muito importante na vida do magnata, por ser justamente sua última palavra. A pergunta é: O que passara pela mente de um homem como Foster Kane, que teve tudo em sua vida, para pronunciar uma única palavra, tão misteriosa, em seu leito de morte? A palavra é intrigante porque nenhum dos seus amigos íntimos ouviu em toda sua vida a menção desta palavra, e não fazem a menor idéia do que isto possa significar. Toda a vida de Kane é passada diante dos olhos do espectador e com isso, em toda sua vida pública, repleta de escândalos e luxo, em nenhum momento é demonstrado claramente o que a palavra “Rosebud” poderia significar, embora, para quem já tenha assistido ao filme, o vínculo com a palavra pareça mais claro.
         Quase no fim do filme, o mordomo de Kane revela ao repórter investigativo que já ouvira uma vez Kane pronunciar a palavra, e o fora após um acesso de raiva, onde se depara com seu antigo peso de papel – que consiste em um globo de vidro com uma maquete de uma casa dentro, coberta de uma imitação de neve, e que conforme o globo é movido é promovido um efeito de neve dentro dele. O velho magnata o sustenta na mão e pronuncia: “Rosebud”. Em seu leito de morte, Kane está segurando novamente o globo, pronuncia sua misteriosa palavra, e suspira, deixando cair o globo, que termina por se quebrar no chão.
         Mesmo este último relato não revela coisa alguma ao repórter investigativo. E ninguém resolve o último mistério de Kane. Porém, nas últimas cenas, quando todos os objetos sem valor do magnata estão sendo incinerados, ao espectador é permitido conhecer o significado da palavra. Em meio aos pertences está um trenó, o mesmo modelo de trenó com o qual a criança Charles F. Kane estava brincando na neve, diante da pensão de sua mãe e é interrompido pelo empresário que o retira de sua família. A marca do trenó: “Rosebud”. Um operário pega o trenó e joga-o no incinerador. O trenó queima, é a última cena do filme.
     
          Semanticamente, “Rosebud” se traduz do inglês por “Botão de Rosa”, e é uma referência poética clara ao órgão genital feminino do prazer: o clitóris. A anatomia da genitália feminina é freqüentemente associada à forma de um botão de rosa pelos poetas. Assim, “Rosebud” simboliza aquilo que há de mais íntimo, de mais misterioso, mais escondido, mais particular, mais encoberto. Neste sentido, o autor Orson Welles reservou a palavra “Rosebud” para associar poeticamente àquilo que o personagem possuía de mais íntimo, de mais particular. “Rosebud” era o seu lugarzinho especial de prazer, onde só ele podia tocar, era seu refúgio particular onde ninguém, em toda sua vida conturbada, tinha acesso.
         Outra curiosidade é o fato de o sentimento de fuga ao seu lugar especial, seu “Rosebud”, que, como vimos, é uma referência romântica ao órgão sexual feminino do prazer, só tenha sido pronunciada dentro de Xanadu, simbolicamente a capital do prazer.
         Ainda sobre a referência ao clitóris, vale lembrar que o filme fora produzido em 1941, época em que o corpo feminino ainda era um mistério sexual dentro do universo masculino. O próprio Freud, que viveu até o início do século XX, e que tanto atribuiu a questão sexual como influente na vida particular das pessoas, ele mesmo acreditava que a mulher só possuía o prazer vaginal, ignorando por completo a função do clitóris. Portanto, quando Welles coloca a analogia “Rosebud” elegantemente em uma tela de cinema, em 1941, só por isso já é possível ter uma idéia da grandeza literária de sua obra.
         Por fim, vemos que “Rosebud” é imediata e simplesmente a marca do trenó de sua infância. Ou seja, o seu lugar íntimo especial é o último momento de sua vida em que o personagem é ingênuo. Lá, na neve, sendo retirado de sua família, não só sua brincadeira é interrompida, como também sua vida, sua infância. É lá onde tudo começa a se perder. O trenó é enterrado ali, e sua vida também. E então percebemos que ao homem que tudo teve, na verdade, tudo se perdeu. Kane, em sua vida, só perdeu, sua vida toda é uma perda, apesar de toda sua opulência. Sua vida é um absurdo, uma ironia. E a cena da neve nos mostra que o que Kane mais perdeu foi o rumo de sua vida, aquele é o ponto chave onde tudo começa a ser perdido. Os próprios personagens da trama indicam isto durante o filme: “Rosebud” foi aquilo que Kane mais perdeu. O próprio personagem admite em um outro momento revelador que, sem o dinheiro, ele seria uma pessoa melhor. E é através dessas declarações, e da manutenção pelo personagem do seu estimado peso de papel durante o filme, que vamos percebendo que “Rosebud” acompanha a mente de Kane em toda sua vida, até o fim. Em toda sua vida recheada de luxo, Kane é vazio, incompleto, porque ele perdeu sua vida. Ele lota sua vida material de coleções nostálgicas, sua mansão é um museu de seus desejos não realizados porque ele é vazio, e no fim tudo se perde.
         A cena final é, na verdade, a cena principal do filme. Kane está morto, extinto, e seus objetos particulares também. Quando o espectador assiste, impotente, à queima do trenó, onde está a chave de todo o mistério ao redor do qual a trama gira, percebe que não só ninguém descobrirá jamais o significado da última polêmica do magnata como também que seu “Rosebud” é extinto junto com o personagem. A vida de Kane finalmente se foi por completo, e o trenó também. Tudo acabou, e o que realmente importava para o rico jornalista se extingue com ele para o esquecimento, para o nada.
         Em “Cidadão Kane”, deste modo, Welles faz com que o espectador seja o grande privilegiado, porque só este descobre o verdadeiro sentido da vida de Kane, enquanto ninguém na trama jamais descobrirá. Isso também significa que é preciso estar fora da história para compreendê-la por completo. A vida só ganha sentido após a morte, mas não para os participantes da história, mas para o espectador, que é também o único a ser totalmente excluído da trama, e é por isso que ele está privilegiado. Aliás, quando o espectador assiste ao filme pela primeira vez ele ainda está participando da trama, em seu papel de espectador. Porém, o mistério só é revelado no final, quando a trama acaba, e o espectador só ganha o conhecimento quando o filme também já está consumado, junto com o personagem e seu segredo. Desse modo, o próprio filme, assim como o sentido da vida, só é revelado e só pode ser compreendido e refletido quando se está consumado.
Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 11/06/2007
Reeditado em 11/06/2007
Código do texto: T522126
Classificação de conteúdo: seguro

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05/02/2020 | 05h00
 Por Bruno Capelas - O Estado de S. Paulo

Alberto Fernando Becker - Na contramão do raso, OESP

Alberto Fernando Becker*
05 de fevereiro de 2020 | 08h00

Alberto Fernando Becker. FOTO: DIVULGAÇÃO
A maioria das pessoas não está preparada para ouvir coisas profundas. Sequer sabe que precisa ouvir sobre isso. Sabe por quê? Porque a maioria das pessoas está completamente viciada em coisas rasas.
Buscam naquilo que é superficial uma distração, um anestésico para aliviar a sua dor e a sua angústia diante de uma vida vazia de sentido e de significado. É assim nos relacionamentos, nos hábitos, nos negócios, na vida social e na arte.
Falando nisso, lembro de um filme que, quando criança, eu adorava assistir em VHS e pelo qual nutro uma memória afetuosa: A história sem fim. Este filme infantil de meu tempo traz uma importante lição para os adultos de hoje. Vale a reflexão! O menino Bastian – o protagonista – descobre, por meio de um livro especial, um mundo novo, extraordinário, chamado Fantasia. Lá tinha de tudo, dragão da sorte, imperatriz menina, tartarugas gigantes que espirravam, comedores de pedra, entre muitas outras criaturas fantásticas. Tudo muito lúdico, muito lindo. Ainda que o livro que inspirou o filme seja de uma riqueza de conteúdo, detalhes e poesia infinitamente maiores (sempre é assim, não é mesmo?), o cinema buscou transmitir uma mensagem às crianças sobre o direito de sonhar, fantasiar e imaginar, o direito de transcender e crer em coisas para além da matéria. Mas o meu ponto é o grande antagonista, o grande vilão e inimigo de tudo isso, bem como de seu nome poderoso: o Nada.
E o que isso tem a ver com o objetivo desta crônica? Tudo! Explico. Hoje em dia, cada vez mais, a maioria das pessoas não sabem como reagir ao Silêncio e ao Vazio em suas vidas. Parecem perdidas, muitas vezes. Não sabem como se comportar diante do Nada. Assim, desesperadamente, usam qualquer coisa para preencher o vácuo e para abafar o som ensurdecedor que o silêncio grita.
Seguidamente me pego observando as pessoas – não só a juventude, a qual, naturalmente, passa pelo momento de buscar seus próprios referenciais e identidade – e percebo que muitas têm uma existência vazia, não tem muita coisa a dizer, não sabem exatamente a que vieram, não fazem a menor ideia de por que fazem o que fazem, qual sua missão de vida, de que forma podem contribuir para fazer do mundo um lugar melhor. A coisa mais comum é encontrar pessoas para as quais, ao que tudo indica, a vida se resume a pagar a prestação do celular com a última tecnologia (o carro, o aluguel etc.), postar fotos em redes sociais e ir para a próxima balada.
É pouco, é triste, mas é o que vejo. Raros são os afortunados que questionam o Status quo, que ousam viver por um propósito, por uma causa, com clareza de sua missão de vida, que não seguem a manada, fazendo as coisas do seu jeito e desafiando o paradigma vigente. E isso se deve à ameaça crescente e constante do vazio, do Nada.
Na música, o Nada parece ter tomado conta. Proponho um exercício: pesquisar no Google as 10 músicas mais tocadas do Brasil. Leiam as letras com atenção. É sofrível, um show de horror, um culto ao Nada existencial e a tudo que existe de mais raso. Paradoxalmente, há por aí verdadeiras ilhas de resistência ao Nada. Por exemplo, tem uma música (dessas mais modernosas, que a rapaziada deve conhecer), do The Avener, chamada “Fade out lines”, que diz assim: The shallower it grows / The fainter we go / Into the fade out lines. Numa tradução bastante livre: “Quanto mais o superficial cresce, mais fracos ficamos, para linha do desaparecimento”. Adaptando, é exatamente isso: quanto mais rasos nos tornamos, mais rapidamente nós desaparecemos em direção ao Nada. E a vida vai imitando a arte.
Então, eu paro e me pergunto: há esperança? Do que o mundo precisa, afinal?
Respondo: sim, mas precisamos – e precisamos como nunca – de exemplos melhores!
Só que melhores exemplos não brotam espontaneamente na atmosfera. Muito menos nascem de coisas rasas, superficiais. Carecem muito mais de discernimento, de bons conselhos, que geram boas escolhas, boas decisões, que repercutem melhores ações, as quais, em última análise, se convertem em melhores exemplos. Tudo isso reclama profundidade, conhecimento, capacidade de pensar com competência, sensibilidade para perceber o outro e a vida. Tudo cuja matéria prima é constituída de sabedoria, de reflexão, de valores e de significado.
Eu não quero mudar o mundo sozinho. Quero fazer a minha parte, dar a minha contribuição, na contramão do raso, e combater o avanço do Nada. Sempre que posso, como neste texto, busco despertar em vocês a consciência. Isso fará com que a gente suba a régua da vida, de nossas condutas, de nossa postura. E, aí sim, nós podemos reaver o direito de sonhar em mudar o mundo juntos!
*Alberto Fernando Becker, advogado