domingo, 29 de setembro de 2019

A farra dos desembargadores, Elio Gaspari. FSP

A menos de um quilômetro de distância do pedaço do Vale do Anhangabaú onde as filas de desempregados se formam ao amanhecer, o Tribunal de Justiça de São Paulo quer construir duas torres de 24 andares com seis subsolos para 1.300 vagas de estacionamento. Coisa estimada em R$ 1,2 bilhão.
Imagem de anteprojeto de arquitetura do prédio que o Tribunal de Justiça de SP quer construir
Imagem de anteprojeto de arquitetura do prédio que o Tribunal de Justiça de SP quer construir - Reprodução
Esse assunto rola desde 1975 e por ora o tribunal trata do projeto executivo da obra, que poderá custar até R$ 26 milhões. Deve-se à desembargadora Maria Lúcia Pizzotti o bloqueio da farra. Se ninguém mais puser a boca no mundo, esse negócio vai adiante. Vai aos poucos, mas vai.
Quem ouve falar em duas torres para o Tribunal de Justiça pode até achar que um país rico, em regime de pleno emprego, precisa de uma boa sede para o tribunal de São Paulo. Não é nada disso. Os edifícios destinam-se a abrigar apenas os gabinetes dos 360 desembargadores. Todo mundo pagará pela farra, mas as torres terão 28 elevadores e 12 serão privativos para desembargadores e juízes. Os doutores terão também um andar exclusivo para seu restaurante. Isso e mais um posto bancário só para desembargadores.
Uma das razões dadas pelos faraós seria a economia de R$ 58 milhões/ano que são gastos com aluguéis. Conta outra, doutor, sobretudo porque o Tribunal de Justiça já gastou R$ 141 milhões em projetos e estudos em torno dessa obra.
São Paulo tem 360 desembargadores com carro, motorista, um salário de R$ 35,5 mil, para começar, mais auxílio-moradia. (Um dos doutores recebia o penduricalho mesmo sendo dono de 60 apartamentos.)


Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Ruy Castro País de maus bofes. FSP

Não sei bem o que significa perder as estribeiras, mas, seja o que for, o Brasil parece estar perdendo as suas. Pelo que podemos ver no noticiário e em nós mesmos, tornamo-nos 200 e tal milhões de sujeitos que passam o dia chutando baldes, rosnando ameaças e usando toda espécie de canal para destratar os inimigos, os adversários e até os simples desafetos. Ninguém mais tolera ninguém, ninguém admite um pensamento contrário. A continuar assim, vamos passar a nos esbofetearmos ou cuspir uns nos outros à guisa de bom-dia. 
O exemplo vem de cima. Num país em que o presidente é o primeiro a não perder uma oportunidade de ejacular desaforos e descompor pessoas, inclusive ao microfone da ONU, como esperar moderação de seus chefiados? E, se esse presidente exerce a política da terra arrasada, da desarmonia entre os poderes e do desmantelamento das instituições, por que seus seguidores, dentro e fora do governo, fariam diferente? 
ministro da Educação, por exemplo, mesmo incapaz de tomar um ditado, não abre mão da arrogância. E dá-lhe de corte de verbas, desamparo a órgãos centenários e desprezo por funções que ele nem é capaz de entender, como a de professor universitário. E é contagioso. Uma autoridade escoiceando à solta estimula a que um esbirro do quarto escalão agrida uma heroína da cultura brasileira e fique por isso mesmo.
Da mesma forma, uma pistola à mostra num cinto, mesmo nos ambientes mais impróprios, pode levar o povo a achar que o país só se resolverá à bala. Mas, nesse caso, os valentões no poder que se cuidem —a massa de maus bofes que eles estão gerando pode se voltar contra eles.  
Um dia, de um jeito ou de outro, talvez o Brasil volte à sanidade. Só então saberemos quem serão os mais aptos a contar a história de nosso tempo —se os historiadores propriamente ditos, os apresentadores sensacionalistas da televisão ou os humoristas.
O presidente Jair Bolsonaro com o filho Eduardo, que carrega uma arma na cintura, após cirurgia - Flávio Bolsonaro no Twitter
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

O drama da indústria, OESP

Affonso Celso Pastore, O Estado de S. Paulo
29 de setembro de 2019 | 05h00


Há algum tempo tive a ousadia de classificar como depressão o ciclo econômico que ainda está em desenvolvimento no Brasil. Recebi críticas de (poucos) colegas de profissão. Afinal, dizem eles, depressão é o que ocorreu nos Estados Unidos em 1929. Deveria tê-los recordado de que o ocorrido em 1929 não foi uma depressão qualquer, mas sim “A Grande Depressão”, com o artigo definido “a” sendo usado para afirmar a natureza singular daquele episódio. Uma depressão é uma queda significativa da atividade seguida de uma estagnação, mas para não entrar em disputas em torno de adjetivos eu havia, até aqui, decidido deixar de lado essa discussão. 
Produção industrial
As alterações na NR 24 trazem uma série de mudanças nas exigências feitas hoje às empresas Foto: Fotos Públicas
Quando olho para o comportamento da produção industrial brasileira, no entanto, somente posso defini-la como uma depressão. Querem saber por quê? Coloquem em um gráfico, na mesma escala, as produções industriais do mundo e do Brasil. Veremos que entre 1990 e 2007 ambas cresciam juntas, a taxas muito parecidas, com uma queda quase igual à da Grande Recessão de 2008/2009, recuperando-se em velocidade próxima até o fim de 2012. 
No entanto, em 2013, a produção brasileira perdeu força, literalmente despencando 15 pontos porcentuais entre 2014 e 2016, passando a flutuar daí em diante próximo do “fundo do poço”. Já a produção mundial voltou a crescer persistentemente, e atualmente está 40 pontos porcentuais acima da brasileira. 
O que há de errado com a nossa indústria? Durante os governos Lula II e Rousseff o setor foi premiado com uma ajuda sem precedentes. A narrativa dos industriais era de que, com isso, o governo estaria compensando a penalização imposta ao setor pelo Banco Central, que olhando apenas para os rentistas mantinha a taxa de juros muito acima do necessário e, para conter a inflação, deliberadamente valorizava o real. O “pecado” da autoridade monetária justificaria o aumento de seus contatos com o “poder”, ao qual transmitiam seu diagnóstico sobre como consertar as consequências dos desmandos monetários e cambiais. 
Assistimos atônitos o ressurgimento do protecionismo; a recriação da falida indústria naval; uma sucessão de renúncias fiscais cujo total sobe a 4% do PIB, dos quais a desoneração da folha de salários direcionada a setores escolhidos é apenas uma faceta; e cresceu o uso do BNDES para financiar a taxas subsidiadas os projetos que iriam “turbinar” o crescimento. Além da carga direta dos subsídios sobre o Orçamento, o governo transferiu ao BNDES, por fora do Orçamento, mais de 8% do PIB. Foram os anos gloriosos da “bolsa empresário”. Em vez de o governo formular um diagnóstico sobre as causas do baixo crescimento, aprendendo com a história dos países bem-sucedidos qual seria o caminho, dobrou-se à visão míope e distorcida dos empresários, para os quais a gestão da economia brasileira é uma coisa muito parecida com a de suas empresas, acreditando que “o que é bom para a minha empresa é bom para o Brasil”. Sabíamos que poderia não dar certo, como de fato não deu. 
Mas o passado está morto e acabaram-se os anos de juros altos e de câmbio valorizado. Por muitas razões – domésticas e internacionais –, estamos entrando em um longo período de juros reais baixos e de real persistentemente mais fraco. Se a visão errada de nossos industriais fosse correta, deveríamos iniciar um período de crescimento acelerado da indústria, mas não é isso que se vê à frente. Mesmo considerando as defasagens, que são longas, os quadros – monetário e cambial – benignos já estão conosco há algum tempo – seguramente mais de um ano –, e até agora não há nem sequer um pequeno sinal da esperada recuperação industrial. Segundo, porque o crescimento da indústria é algo muito mais complexo, que requer o aumento da eficiência, e se inicia com a correção de distorções e a exposição do setor à competição. 
É bom que as atenções se voltem aos verdadeiros problemas que causaram a depressão à nossa indústria. Um bom começo seria o apoio irrestrito da indústria à aprovação de um verdadeiro IVA, absorvendo todos os impostos – federal, estaduais e municipais – sobre bens e serviços, cobrado no destino e não na origem, decretando a morte das enormes distorções geradas pela guerra fiscal entre Estados. Seria um enorme passo na direção de corrigir distorções que inibem as exportações, além de tirar da nossa frente uma das razões – a carga tributária – frequentemente usadas pelos que se opõem a uma maior abertura comercial, que é fundamental para o crescimento.

*EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE