quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Vendo de longe e de fora, Roberto DaMatta, OESP

O observador é um tradutor entre o olhar habitual, íntimo e absoluto de dentro, e a visada fria, cautelosa e distante, de fora. O olhar da casa implica fidelidade e amor. Já o ponto de vista da rua tem a moldura da lei que fundamenta a vida coletiva. Vivemos entre esses olhares que se interpenetram e segmentam. Quando a rua vira casa, há a corrupção onipotente e deslavada do “tudo é nosso” e do “está tudo dominado”, e quando a casa vira rua, há o congelamento dos despotismos sem atenuantes. 
Descobrir quando os laços de família devem ser contidos relativamente aos elos públicos é exercitar-se no igualitarismo e na solidariedade da democracia, conciliando uma liberdade fraterna. A solidariedade que está ausente neste Brasil no qual testemunhamos um Executivo patologicamente agressivo, um Legislativo tendendo ao equilíbrio reacionário e um Judiciário defensivo dos seus privilégios.
Todo “fato novo” revela um aspecto pouco conhecido, desejado ou não, das estruturas elementares da vida cotidiana. “Fatos novos” são sinais de mudança ou, como falamos coloquialmente, de “fim de mundo”. De coisas não rotineiras que anunciam os estertores e a reconstrução de um modo de existência. Todo observador é, querendo ou não, um profeta ou um fofoqueiro porque olha o mundo de fora para dentro quando o trivial é observá-lo de dentro para fora.
O novo revela a alma das coletividades. No Brasil, o novo remete a erros e ausências. Em outros lugares, ele indica a necessidade de aprendizado. Em vez de culpa, erro e ressentimento (dos quais nós não seríamos culpados, pois o erro foi dos outros...), o novo surge como um caminho a ser trilhado por todos, já que todos somos atores (e autores) daquilo que é visto como vergonhoso ou negativo. Nas polarizações, um lado insiste em não ter culpa. Nelas, há a tentativa de exclusão de um lado e a óbvia inclusão do outro como responsável absoluto da novidade lida ou não como negativa. 
Vejamos um exemplo. Quando o rei e a Corte portuguesa vieram para o Brasil em 1808, ficando do lado dos ingleses, a elite local ficou em dúvida sobre essa desmesurada novidade. Era maravilhoso o Rio de Janeiro virar a capital do reino de Portugal e Algarve, mas era também terrível ver Lisboa e o reino desintegrados e sem a Corte e o rei e, além do mais, invadidos pelos franceses. A um fato novo correspondiam dilemas e problemas. Penso que poucos países viveram etapas históricas com pouca ambiguidade como foram, apesar da Guerra Civil, os Estados Unidos, cujo espírito ideológico – pelo menos até agora – tem sido vencedor conseguindo ganhar mais do que perder. 
*
Quando adquiri consciência da vida e descobri fatos que me causavam confusão sofri, mas não desisti. Muito pelo contrário, busquei entrar na vida pelo lado de fora. Primeiro, pela religião, depois pelos livros – pela luz fraca, mas persistente, como diz Thomas Mann, do intelecto. 
O mundo é duro e injusto. Não precisei de nenhum partido político ou ideologia para me ensinar o que a minha própria experiência já me havia duramente informado, a começar pelo fato de ser canhoto e ter sido estigmatizado pelos que haviam me fabricado e com os quais eu amorosamente vivia. 
*
Nem sempre se acusa por maldade ou atraso. Na maioria dos casos quem discorda e corrige o faz por cuidado. O significado emocional que leva à reação antecede a compreensão. Falamos uma língua sem saber e somente quando aprendemos outro idioma é que descobrimos o modo pelo qual nossa língua nos controla. O mesmo ocorre no nosso ambiente histórico e cultural. O político pensa que “faz política”, mas é justamente a “política” que o faz ou desfaz. Ele, a despeito de seus planos secretos, está sujeito às circunstâncias – à sorte ou ao azar de quem olha de fora...
Devemos desistir? Claro que não. Devemos assumir que somos parte de uma coletividade à qual podemos ser indiferentes e até mesmo traí-la, mas dela não escapamos. O básico para mudar não é distinguir-se ou assumir que há um “sistema imutável”, ou colocar a responsabilidade exclusivamente nos outros. É saber que papel desempenhamos nesse lugar que nos cabe, neste aqui e agora que nos obriga a enxergar de perto e, com ajuda do cronista, também de longe...

Sob pressão, CSN retoma obras da Transnordestina, Valor

  12/09/2019
person Valor Econômico
  
Sob pressão, CSN retoma obras da Transnordestina
Sob forte pressão do governo federal e da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) se prepara para retomar nas próximas semanas a construção da ferrovia Transnordestina, que ligará o interior do Piauí aos portos de Pecém (CE) e Suape (PE). No entanto, o resgate do projeto, paralisado desde 2017, não garante que o empreendimento será concluído.
A meta da companhia é entregar, até 2022, ao menos parte da obra - provavelmente, o trajeto entre Piauí e Ceará, que está mais avançado, segundo fontes próximas à CSN. A entrega da ferrovia ainda neste mandato seria uma vitória para o governo federal.
Além de destravar um empreendimento importante para a logística da região, a obra, que geraria cerca de 6,5 mil empregos diretos, seria uma vitrine para Jair Bolsonaro (PSL) no Nordeste, região em que sua popularidade é mais baixa. Uma visita do presidente às obras já estaria sendo articulada para outubro.
Para a CSN, a conclusão da ferrovia, após mais de uma década de imbróglios, também representaria um alívio.
Primeiro, porque a operação passaria a gerar caixa e dar retorno financeiro, após anos de investimentos e esforços. Além disso, o grupo se veria livre das atuais ameaças envolvendo o projeto: a possível caducidade do contrato, em análise pela ANTT, e a possibilidade de um vencimento antecipado das dívidas bilionárias contraídas para a obra, e que estão em grande parte garantidas pela companhia.
Nesta nova etapa de construção do projeto, a CSN se comprometeu com o governo a investir R$ 257 milhões. Os recursos seriam suficientes para construir mais 177 quilômetros de infraestrutura até fevereiro de 2020, sendo ao menos 20 quilômetros com a colocação de superestrutura (dormentes e trilhos). Ao todo, a ferrovia terá 1.753 quilômetros, dos quais cerca de metade já foram construídos.
As obras deverão recomeçar em outubro, segundo fonte ligada à empresa. Outra pessoa que acompanha o projeto afirma que parte dos trabalhos, no Piauí, já tiveram início no fim da semana passada.
A construção da Transnordestina, inaugurada em 2006, começou a sofrer paradas a partir de 2016, em meio a problemas de engenharia, escassez de recursos e entraves jurídicos com quilombolas impactados pelo empreendimento em trajeto da ferrovia no Piauí.
A paralisação final veio em 2017, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) bloqueou qualquer repasse de dinheiro público à construção. À época, o órgão identificou um "alto risco de não conclusão" da obra, cujo custo real "nem sequer é sabido", apontou o relatório. Pelo acórdão, a retomada dos desembolsos ficou condicionada à apresentação de novos projetos pela CSN, que possibilitem definir o custo total, além da aprovação da ANTT aos estudos.
Esse bloqueio de recursos públicos persiste até hoje e é considerado o maior imbróglio do projeto, que dificilmente será concluído sem uma liberação, afirmam pessoas envolvidas.
Ao todo, o mega empreendimento já consumiu R$ 6,5 bilhões em recursos públicos e privados, mas ainda deverá demandar outros R$ 6,7 bilhões, segundo cálculo da companhia - o valor exato ainda não foi validado pela ANTT. Também não está claro quem arcará com qual parcela das despesas.
A CSN compartilha o controle da Transnordestina Logística S.A. (empresa responsável pelo tramo da ferrovia) com a estatal Valec e com a BNDESPar, braço de participações do banco de fomento. A empresa detém 46,3% das ações totais, e 92,6% das ordinárias (que dão direito a voto).
Para poder destravar os aportes públicos, a CSN já enviou diversos projetos executivos de partes da ferrovia para análise da ANTT. Em agosto deste ano, o órgão pediu que a companhia consolidasse todos os documentos em um só, para que pudesse fazer uma análise final, afirma o superintendente de transporte ferroviário da agência reguladora, Alexandre Porto.
A partir desse projeto executivo consolidado, a área técnica poderá dar seu parecer, diz ele - o processo costuma levar uma média de 90 dias, mas poderá demorar mais devido à complexidade do caso. Em seguida, o documento seguirá para a diretoria da ANTT e, depois, para o aval do TCU.
Mesmo com toda a incerteza sobre a liberação da verba, a CSN decidiu retomar as obras com os R$ 250 milhões de recursos próprios, como uma mostra concreta ao governo de que o grupo está disposto a terminar o projeto, segundo fontes que acompanham a negociação. Mas terá de buscar mais recursos para dar continuidade: fontes previstas são o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e o fundo Finor.
A decisão de retomada, porém, não foi de todo espontânea - a companhia teve incentivos determinantes, como a possibilidade de uma caducidade do contrato, cujo processo está em tramitação na ANTT, e a ameaça do governo de uma execução antecipada de dívidas bilionárias do projeto, garantidas pela CSN. Como há um descumprimento contratual do cronograma de obras, os financiadores públicos poderiam acionar a garantias financeiras.
Além dos recursos próprios colocados por CSN e Valec, o financiamento da construção foi feito principalmente pelo BNDES, BNB e com debêntures subscritas pelo Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (FDNE). Outra solução em estudo pela CSN para viabilizar o projeto é uma possível associação com parceiros internacionais.
Ainda está em negociação uma eventual entrada da agência italiana de crédito à exportação Sace, que se dispôs a fazer um empréstimo em troca da entrada de companhias italianas no projeto. A CSN também mantém conversas com outros dois grupos chineses, segundo fonte próxima à empresa.
Para a companhia, poderia haver parcerias estratégicas de grupos interessados em transportar carga na via. A principal carga prevista é o minério de ferro, mas também há a projeção de movimentação de grãos, como milho e soja, e combustíveis e fertilizantes. A entrada de um sócio, porém, dificilmente terá avanços enquanto não houver uma solução do imbróglio em torno da liberação de recursos.
Procuradas, a Transnordestina Logística S.A. e a CSN não quiseram comentar. O Ministério de Infraestrutura afirmou, em nota, que "as negociações entre a concessionária e governo federal estão avançando" e que ainda não havia definição sobre "um eventual acordo ou retomada das obras".

Após Dersa, Doria quer acabar com outra estatal alvo de investigação em SP, FSP

Carolina LinharesJosé Marques
SÃO PAULO
Após ter conseguido aprovar na Assembleia a extinção da Dersa, estatal paulista sob suspeita de corrupção em obras viárias em gestões tucanas, o governador João Doria (PSDB) estuda acabar também com outra empresa pública citada em delação premiada e alvo de CPI.
A Furp (Fundação para o Remédio Popular) será incluída em uma leva de desestatização e extinção prevista para este ano e que inclui outras entidades da área de saúde, como a Fosp (Fundação Oncocentro de São Paulo) e a Sucen (Superintendência de Controle de Endemias).
Atualmente, o governo Doria tem maioria folgada na Assembleia para aprovar seus projetos. Principalmente quando esse tratam de enxugar o estado, pauta que tem respaldo de partidos que se declaram independentes, como Novo e PSL (maior bancada da Casa, com 15 dos 94 deputados).
[ x ]
No começo deste ano, a base do governo conseguiu barrar a instalação de uma CPI que investigasse a Dersa. Como "plano B", oposicionistas e deputados independentes pretendiam usar a CPI da Furp para levantar eventuais irregularidades dos governos do PSDB no estado. 
A Furp, que é a maior fabricante pública de remédios do país, tornou-se um imbróglio para a gestão Doria por causa de uma PPP (parceria público-privada) desvantajosa e por suspeita de pagamento de propina.
Como a Folha mostrou, mesmo antes de ter sua extinção aprovada pelos deputados, a Dersa já vinha sendo esvaziada pela gestão Doria. A Furp também é alvo de desmonte. Seus funcionários temem demissões e a paralisação da produção de medicamentos importantes.
Em delação firmada com o Ministério Público de São Paulo, mantida sob sigilo, os executivos da Camargo Corrêa Martin Wende e Emílio Eugênio Auler Neto afirmaram, em 2017, que houve pagamento de propina a representantes do governo de 2008 a 2013, relativa à obra da fábrica de Américo Brasiliense (SP).
Segundo eles, o ex-secretário de Saúde Luiz Roberto Barradas Barata (morto em 2010) recebeu ao menos R$ 1 milhão, em 2008, pela assinatura de um aditivo na obra. Ele atuou nas gestões de José Serra (PSDB) e Geraldo Alckmin (PSDB). 
Já o ex-superintendente Flávio Vormittag teria recebido em 2013, segundo os relatos, R$ 1,8 milhão para que o governo não recorresse de uma sentença que condenou o estado a pagar mais R$ 22 milhões pela obra à construtora. A obra custou R$ 124 milhões e foi concluída em 2009. À CPI Vormittag reconheceu que o estado não recorreu do pagamento.
Em 2013, sob Alckmin, o governo concedeu a gestão, operação e manutenção da fábrica de Américo Brasiliense à iniciativa privada por meio de PPP por 15 anos. A Concessionária Paulista de Medicamentos (CPM), controlada pelo laboratório EMS, seria responsável por investir R$ 130 milhões e produzir 96 tipos de remédios.
Atualmente, a fábrica opera com 25% da capacidade, produz 14 medicamentos e recebe R$ 90 milhões anuais do governo. A Secretaria de Saúde, porém, calcula que gastaria R$ 34 milhões para comprar os mesmos remédios no setor privado, ou seja, há um prejuízo de R$ 56 milhões todos os anos para o Tesouro.
Reunião de instalação da CPI da Furp na Assembleia Legislativa de SP, com o presidente Edimir Chedid (DEM) à mesa
Reunião de instalação da CPI da Furp na Assembleia Legislativa de SP, com o presidente Edimir Chedid (DEM) à mesa - Carol Jacob/Divulgação Assembleia Legislativa de São Paulo
Desde 2015, quando a fábrica de Américo Brasiliense começou a operar, os cofres públicos já cobriram R$ 70 milhões de dívidas da Furp, que ainda deve cerca de R$ 110 milhões, segundo a CPI. No início do mês, a CPI aprovou a quebra do sigilo telefônico de três ex-dirigentes da Furp, incluindo Vormittag.
Para o governo Doria, a extinção ou privatização da fundação, cuja proposta será enviada à Assembleia, é uma forma de sanar esses problemas que recaem sobre gestões tucanas. Já deputados que fazem parte da CPI da Furp defendem a manutenção da entidade, que tem mil funcionários.
“O governo paulista tem promovido, ao longo dos anos, e esse governo aprofundou isso, um sucateamento dessas instituições. Há casos de remédio que está pronto, mas não vai porque não tem a caixa ou a bula”, diz a deputada Beth Sahão (PT), que faz oposição a Doria.
Embora a petista considere a situação da Furp diferente daquela da Dersa, pois há mais problemas de gestão do que escândalos de corrupção rumorosos, ela diz que, nos dois casos, “tem convicção de que é conveniente para o governo acabar com os órgãos”.
Já o deputado Edmir Chedid (DEM), que preside a CPI, não acredita que o governo Doria esteja tentando empurrar a Furp para debaixo do tapete. “Há um esforço da nova diretoria. Uma movimentação para tentar produzir e vender mais”, diz.
Chedid, porém, considera que a PPP foi um erro. “É um grande problema que o estado tem na mão faz tempo e não resolveu até agora. Queremos saber o porquê”, diz. 
A oposição a Doria na Assembleia também se organiza para resistir a mudanças no Oncocentro e na Sucen. No Oncocentro, os cerca de 90 funcionários já foram avisados de que o órgão será desmobilizado. A direção da Sucen já admitiu a deputados que a intenção é extinguir a autarquia e transformá-la num departamento subordinado à Secretaria de Saúde. 

OUTRO LADO 

Em nota, a Secretaria de Saúde diz que está à disposição para colaborar com as investigações em relação à Furp. 
A respeito da desestatização, o governo afirma que "estuda a extinção e/ou privatização de empresas e fundações estatais, considerando tecnicamente a necessidade de otimizar recursos do estado com eficiência e sem nenhum prejuízo na prestação dos serviços públicos para a população". 
A pasta diz buscar alternativas para as fábricas da Furp. "Qualquer medida que venha a ser adotada priorizará a garantia do fornecimento gratuito dos medicamentos à população e, até o momento, não há qualquer definição quanto a mudanças."
O ex-superintendente Vormittag não foi localizado pela reportagem.