domingo, 28 de abril de 2019

O circo, Janio de Freitas, FSP


A aparência intempestiva das atitudes dos Bolsonaros é farsante. Estamos diante de uma trupe como são tantas famílias circenses. Grosserias, desobediências, postagem nas redes e logo a retirada, os alvos e temas escolhidos, nada disso é espontâneo. Tudo está combinado, como nos picadeiros. Com funções distribuídas entre os diferentes estilos entre os protagonistas. E para uma plateia aparvalhada.
O pai desobedecido e, no entanto, incentivador de novas sandices do filho tido como o mais destrambelhado, seria bastante para se duvidar de condutas divergentes. Bolsonaro pai, afinal de contas, se sujeita aos desgastes de uma situação ridícula e, em país com algum autorrespeito, desmoralizante. O próprio Bolsonaro pai, porém, dá indicações explícitas de que o jogo de acusações e o divisionismo pelo insulto são combinados. E articulados com objetivos ocultos, capazes de justificar o alto custo político e pessoal para seus persistentes praticantes.
No começo da semana passada, Bolsonaro soltou pequena nota para dizer que "as recentes declarações" (só as recentes, pois) de um dos seus guias, Olavo de Carvalho, não contribuíam para "a unicidade de esforços" do governo. A notinha foi propagada como crítica. Quem difundira dois dias antes, sábado à noite, "as declarações" de virulência ensandecida, contra as escolas militares e "os milicos" em geral, foi o próprio Bolsonaro, no YouTube. Para maior difusão, replicado pelo filho Carlos.
Apesar de possíveis dificuldades, Bolsonaro por certo entendeu "as recentes declarações" e tornou-as públicas por vontade sua. Não foi ingenuidade. Assim como havia um propósito na remessa, houve no passo seguinte de Bolsonaro e do filho. O desagrado de Carlos com a retirada da postagem de Bolsonaro, consta que por pressão, não foi mais do que outra ceninha. Seus ataques não cessaram.
Exemplos nessa linha são numerosos. Já é tempo de se encerrar o papel de tolos manipulados pelas farsas dos Bolsonaros.
Os condenadores de Lula não ficam bem, dos pontos de vista jurídico e ético, ante a redução da pena do ex-presidente no Superior Tribunal de Justiça. Sergio Moro condenou-o a 9 anos e 6 meses, pelo alegado recebimento da cobertura; no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o relator João Gebran (pretendente à nomeação para o Supremo) aumentou a pena para 12 anos e 1 mês, mais a multa de R$ 29 milhões em valor atual. Foi apoiado pelos outros dois desembargadores da turma.
A quinta turma do STJ não examinou o mérito do processo, os fundamentos da acusação. Apreciou e recusou as irregularidades reclamadas pelo recurso da defesa. Mesmo à margem do mérito, porém, no confronto entre a acusação e as sentenças cabíveis, decidiu por unanimidade que as penas foram superdimensionadas: fixou em 8 anos e 10 meses o que eram 12 anos e 1 mês; e baixou para R$ 2,4 milhões a multa que estava aumentada em mais de dez vezes.
Juízes são dispensados de dar explicação. Quando sentenças e política se misturam, explicações não fazem falta, mesmo.
Nem notícia se teve, no Brasil, do Dia Internacional do Livro, na terça (23). Só na Catalunha, com a festa centrada na feira de livros de Barcelona, 400 autores autografando, os espanhóis estimam a venda em 7 milhões de exemplares. Entre nós, de janeiro a março a venda caiu 1,2 milhão de livros. O que a diferença significa no presente é quase nada se comparada ao que diz do futuro por aqui.
Convidado em 1980 para escrever na Folha uma coluna diária sobre política, no espaço vertical da página 2, preferi fazê-la só às quintas e domingos, e sobre poder em geral. Desconhecido em São Paulo, e ainda por cima com prenome inconveniente, quis primeiro me testar. Estudei todos os jornais paulistas por uns três dias, e decidi pela crônica, em vez de artigos engravatados. Por desejo da pessoa extraordinária que foi Octavio Frias, pai, passei à coluna diária na quinta página, mantida por muito tempo e mudando os seus gêneros ao compasso das novas circunstâncias. Nos últimos anos, a coluna passou a três vezes semanais e, mais para cá, a duas —as velhas quintas e domingos. Aos 39 anos quase completos, a de quinta, valha a rima, está extinta. A de domingo ainda sai.
Janio de Freitas
Jornalista

sábado, 27 de abril de 2019

A debacle pintada e pensada, Mario Sergio Conti, FSP

T. J. Clark critica a queda de Ícaro para propor uma esquerda sem futuro

O historiador e crítico de artes plásticas T. J. Clark, professor de Berkeley e Harvard, publicou em 2012 um ensaio que deu o que falar. Em "Por uma Esquerda sem Futuro", ele diz que os adversários radicais do capitalismo devem desistir de mudar a sociedade de alto a baixo.
Para ele, não basta trocar o tropel esbelto do pégaso da revolução pelo pocotó tacanho do jegue da austeridade. Ou desistir da épica messiânica do dia que virá em favor do toma lá da cá do dia a dia da política. Clark põe até o tempo no freezer: quer que o presente se perpetue futuro afora.
Ele escreveu: "Não haverá um futuro sem guerras, pobreza, pânico malthusiano, tiranias, crueldade, classes, horas improdutivas e todos os males que constituem a natural herança da carne, pois não haverá futuro nenhum". É só admitindo a debacle que a esquerda poderá "encarar o mundo".
No Brasil, o ensaio derrapou assim que a editora 34 o lançou, no motim de junho de 2013. Uma esquerda como a que Clark queria —algemada ao presente, que não falava em socialismo nem no 1º de Maio— soçobrava sem choro nem vela, sem fita amarela gravada com o nome dela (Dilma).
Num debate em Paraty, Clark advogou que se lutasse para o Brasil não sediar a Copa. A plateia se entreolhou, boquiaberta. Talvez tivesse vibrado se ele repetisse a frase mais arguta do livrinho: "O gás lacrimogêneo é colírio no olho dos investidores".
O ensaio ganha agora vida nova no Reino Unido com a edição de "Heaven on Earth - Painting and the Life to Come" (Thames & Hudson, 288 págs.). "Esquerda sem Futuro" virou um adendo fútil aos cinco ensaios que fazem com que o livro fique de pé.
"Céu na Terra" começa no século 14 e vai até o 20, mas trata só de um punhado de pinturas de Giotto, Bruegel, Poussin, Veronese e Picasso. Nos quatro primeiros, a aspiração ao paraíso, frustrada, é indissociável do húmus humano. Em Picasso, há queda também, mas não tem dimensão mística.
Uma imagem recorrente é a de Ícaro. Na mitologia grega, ele constrói um labirinto, se perde lá dentro e, para escapar, faz asas e as cola nos braços. O engenho funciona. Mas, inebriado pelo húbris, ele voa alto demais e roça o sol. A cola esquenta, derrete e —cataplam!— bye, bye, Ícaro.
Ícaro rendeu poemas de Baudelaire ("o abismo me servirá de tumba") e Auden ("o mais horroroso martírio precisa seguir seu curso"), bem como pinturas de Bruegel, Matisse e Picasso. Analisá-los em conjunto é operação arriscada: a inanidade filosofante e a-histórica ronda a crítica.
Quanto mais antigas as pinturas, mais convincentes são as análises de Clark. Porque aí, na ausência de informações, ele destrincha formas e volumes, pinceladas e nuances, limitando-se a projetar as pinturas contra um pano de fundo histórico abrangente. O estético predomina.
Não se sabe, por exemplo, quando Bruegel pintou "Queda de Ícaro". Também se ignora se é cópia ou original. Mas a tragédia está ali, evidente: de pernas para o ar, Ícaro cai no mar sem que ninguém o veja; a dor da queda é incompartilhável; as gentes têm mais o que fazer.
O "Ícaro" de Matisse (que inspirou a ilustração de Bruna Barros) é uma colagem de papel e guache. O azul inconfundível do artista é abalado por astros amarelos que estouram ao redor da figura com um círculo rubro no coração. Para Clark, a chave da obra está no ano em que foi feita: 1943.
Ilustração
Bruna Barros/Folhapress
Em plena Segunda Guerra, bombas choviam do céu e dizimavam milhões de anônimos. Foi quando, ao cair do Paraíso, Ícaro tomou um tiro no coração. Era o máximo de terror —e politização— que Matisse se permitia registrar na sua arte.
O Ícaro seguinte de "Céu na Terra", o do mural de Picasso na Unesco, em Paris, tem como fontes a colagem de Matisse e "Guernica", do próprio Picasso. A diluição, porém, é palpável. O trabalho não tem nem a garra desesperada de "Guernica" nem a singularidade ímpar de Matisse.
Segundo Clark, isso ocorre porque, feito em 1958, o mural registra o compromisso do stalinismo com o capitalismo para a manutenção do status quo. O combate de dezenas de milhões contra o fascismo não levou a humanidade a uma sociedade superior —muito menos ao Paraíso.
Ícaro continua a cair? Sim, mas só para quem acredita na existência de uma natureza humana imutável. É o caso de T. J. Clark. "Por uma Esquerda sem Futuro" explicita o seu desencanto com a chance de mudanças radicais.
O seu conformismo é uma queda, à la Ícaro, nos impasses contemporâneos --sobretudo os da esquerda.
Mario Sergio Conti
Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".