sábado, 27 de abril de 2019

A debacle pintada e pensada, Mario Sergio Conti, FSP

T. J. Clark critica a queda de Ícaro para propor uma esquerda sem futuro

O historiador e crítico de artes plásticas T. J. Clark, professor de Berkeley e Harvard, publicou em 2012 um ensaio que deu o que falar. Em "Por uma Esquerda sem Futuro", ele diz que os adversários radicais do capitalismo devem desistir de mudar a sociedade de alto a baixo.
Para ele, não basta trocar o tropel esbelto do pégaso da revolução pelo pocotó tacanho do jegue da austeridade. Ou desistir da épica messiânica do dia que virá em favor do toma lá da cá do dia a dia da política. Clark põe até o tempo no freezer: quer que o presente se perpetue futuro afora.
Ele escreveu: "Não haverá um futuro sem guerras, pobreza, pânico malthusiano, tiranias, crueldade, classes, horas improdutivas e todos os males que constituem a natural herança da carne, pois não haverá futuro nenhum". É só admitindo a debacle que a esquerda poderá "encarar o mundo".
No Brasil, o ensaio derrapou assim que a editora 34 o lançou, no motim de junho de 2013. Uma esquerda como a que Clark queria —algemada ao presente, que não falava em socialismo nem no 1º de Maio— soçobrava sem choro nem vela, sem fita amarela gravada com o nome dela (Dilma).
Num debate em Paraty, Clark advogou que se lutasse para o Brasil não sediar a Copa. A plateia se entreolhou, boquiaberta. Talvez tivesse vibrado se ele repetisse a frase mais arguta do livrinho: "O gás lacrimogêneo é colírio no olho dos investidores".
O ensaio ganha agora vida nova no Reino Unido com a edição de "Heaven on Earth - Painting and the Life to Come" (Thames & Hudson, 288 págs.). "Esquerda sem Futuro" virou um adendo fútil aos cinco ensaios que fazem com que o livro fique de pé.
"Céu na Terra" começa no século 14 e vai até o 20, mas trata só de um punhado de pinturas de Giotto, Bruegel, Poussin, Veronese e Picasso. Nos quatro primeiros, a aspiração ao paraíso, frustrada, é indissociável do húmus humano. Em Picasso, há queda também, mas não tem dimensão mística.
Uma imagem recorrente é a de Ícaro. Na mitologia grega, ele constrói um labirinto, se perde lá dentro e, para escapar, faz asas e as cola nos braços. O engenho funciona. Mas, inebriado pelo húbris, ele voa alto demais e roça o sol. A cola esquenta, derrete e —cataplam!— bye, bye, Ícaro.
Ícaro rendeu poemas de Baudelaire ("o abismo me servirá de tumba") e Auden ("o mais horroroso martírio precisa seguir seu curso"), bem como pinturas de Bruegel, Matisse e Picasso. Analisá-los em conjunto é operação arriscada: a inanidade filosofante e a-histórica ronda a crítica.
Quanto mais antigas as pinturas, mais convincentes são as análises de Clark. Porque aí, na ausência de informações, ele destrincha formas e volumes, pinceladas e nuances, limitando-se a projetar as pinturas contra um pano de fundo histórico abrangente. O estético predomina.
Não se sabe, por exemplo, quando Bruegel pintou "Queda de Ícaro". Também se ignora se é cópia ou original. Mas a tragédia está ali, evidente: de pernas para o ar, Ícaro cai no mar sem que ninguém o veja; a dor da queda é incompartilhável; as gentes têm mais o que fazer.
O "Ícaro" de Matisse (que inspirou a ilustração de Bruna Barros) é uma colagem de papel e guache. O azul inconfundível do artista é abalado por astros amarelos que estouram ao redor da figura com um círculo rubro no coração. Para Clark, a chave da obra está no ano em que foi feita: 1943.
Ilustração
Bruna Barros/Folhapress
Em plena Segunda Guerra, bombas choviam do céu e dizimavam milhões de anônimos. Foi quando, ao cair do Paraíso, Ícaro tomou um tiro no coração. Era o máximo de terror —e politização— que Matisse se permitia registrar na sua arte.
O Ícaro seguinte de "Céu na Terra", o do mural de Picasso na Unesco, em Paris, tem como fontes a colagem de Matisse e "Guernica", do próprio Picasso. A diluição, porém, é palpável. O trabalho não tem nem a garra desesperada de "Guernica" nem a singularidade ímpar de Matisse.
Segundo Clark, isso ocorre porque, feito em 1958, o mural registra o compromisso do stalinismo com o capitalismo para a manutenção do status quo. O combate de dezenas de milhões contra o fascismo não levou a humanidade a uma sociedade superior —muito menos ao Paraíso.
Ícaro continua a cair? Sim, mas só para quem acredita na existência de uma natureza humana imutável. É o caso de T. J. Clark. "Por uma Esquerda sem Futuro" explicita o seu desencanto com a chance de mudanças radicais.
O seu conformismo é uma queda, à la Ícaro, nos impasses contemporâneos --sobretudo os da esquerda.
Mario Sergio Conti
Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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