domingo, 24 de março de 2019

Golpe de 1964 atingiu mais de 6.000 militares com prisões, demissões e mortes, FSP

Reapresentado nos últimos anos por militantes da direita no Brasil como movimento cívico contra a esquerda que pretendia instituir uma ditadura comunista no país, o golpe militar de 1964também atingiu ao menos 6.300 integrantes das próprias Forças Armadas, com prisões, cassações e demissões. 
Muitos eram legalistas que temiam o rompimento da ordem constitucional e não tinham ligação com a esquerda.
Há quase 55 anos, em 31 de março de 1964, tropas lideradas pelo general Olímpio Mourão Filho (1900-1972) se deslocaram de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro a fim de forçar a queda do presidente João Goulart (1919-1976), o Jango. 
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Decidido a não resistir ou sem condições de fazê-lo, Jango deixou Brasília na noite do dia 1º de abril e, na madrugada do dia 2, o Congresso declarou vago o cargo de presidente, embora Jango ainda estivesse em território nacional. Do Rio Grande do Sul, ele seguiu para o exílio no Uruguai.
O general reformado Bolívar Meirelles, que foi preso após o golpe de 1964
O general reformado Bolívar Meirelles, que foi preso após o golpe de 1964 - Ricardo Borges/Folhapress
As punições da ditadura que vieram em seguida atingiram militares de todas as patentes, segundo dados da CNV (Comissão Nacional da Verdade), encerrada em 2014, incluindo oficiais —entre eles, foram 354 do Exército, 150 da Aeronáutica e 115 da Marinha. 
Todos tiveram suas carreiras bruscamente interrompidas, muitos foram presos e torturados e alguns até mesmo mortos a tiros ou declarados suicidas em circunstâncias suspeitas. A Força mais atingida foi a Aeronáutica, com 3.340 militares perseguidos, seguida pela Marinha (2.214) e pelo Exército (800).
“Não havia estado de guerra quando ocorreu o golpe. A guerra foi suscitada pelo golpe. Fomos legalistas, eles [da direita] é que foram os subversivos”, disse o general reformado Bolívar Marinho Soares de Meirelles, 79, um dos atingidos em 1964 quando era segundo-tenente, aos 24 anos. 
“Os esquerdistas eram a minoria. Tinha nacionalista, gente defendendo o petróleo, gente contra a guerra na Coreia. A própria filosofia do Partido Comunista era nacionalista, não era revolucionária para criar um Estado comunista”, afirmou Meirelles, que ficou preso por 11 dias e acabou expulso do Exército seis meses depois do golpe. 
Só 40 anos depois ele conseguiu que os tribunais de Brasília reconhecessem seu direito à patente de general de brigada. Meirelles se disse próximo de uma concepção de esquerda, o que, segundo ele, era minoria nas Forças Armadas.
Professor da Unesp e livre docente em ciência política, Paulo Ribeiro da Cunha, 58, estima que só 3% dos militares perseguidos pela ditadura optaram pela luta armada. “Havia constitucionalistas, democratas, comunistas, socialistas. Boa parte poderia ser colocada no arco nacionalista, com viés legalista. Muito poucos eram comunistas”, disse.
“Não que fôssemos uns fanáticos da legalidade, mas formávamos do lado antigolpista”, disse em 1983 o brigadeiro da Aeronáutica Francisco Teixeira (1911-1986) em depoimento ao CPDOC, centro de história contemporânea brasileira da FGV (Fundação Getulio Vargas). 
No dia do golpe, Teixeira comandava a 3ª Zona Aérea, no Rio. “Em 1964, nós não pegamos em armas para defender o governo, apenas nos manifestamos ao lado de um governo legal, constituído. Fomos todos para a rua.”
Havia um “setor militar” no Partido Comunista que remontava a 1929. O número de seus integrantes era um segredo entre eles próprios, mas com certeza muito inferior aos 6.300 punidos ao longo dos 21 anos de ditadura militar (1964-1985). 
“Eram minoria. Conversei com uma pessoa da Aeronáutica que integrava esse ‘setor militar’ e ele achava que não eram mais do que 150, mas ele não conhecia todos. Quem conhecia um núcleo não conhecia outro, até por razões de segurança”, disse Cunha.
Para a procuradora regional da República e presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Augusta Gonzaga, entre os militares perseguidos houve muitos que se recusaram a participar de sessões de tortura e sequestros de militantes da esquerda e, por isso, entraram na mira da repressão.
“Eram pessoas não afeitas às práticas violentas, não foram consideradas duras o suficiente contra os esquerdistas e acabaram pagando um alto preço por isso. O que essas punições revelam é uma limpeza ideológica que o Exército promoveu para garantir que as pessoas fossem alinhadas a essa ideologia, a essa violência”, disse Eugênia.
A repressão desde o primeiro momento também se voltou contra militares. “Meu marido foi preso na noite de 31 de março, era comandante aqui da Zona Aérea. Não houve reação nenhuma da Aeronáutica por ordem do presidente da República, que não queria uma guerra civil. Meu marido foi atingido pelo AI-1 [Ato Institucional], cassado, demitido pela FAB. Recebi durante 15 anos uma pensão de marido vivo. Ele era considerado morto oficialmente. Durante toda a ditadura, cada vez que um presidente da ditadura, entre aspas, ia mudar, meu marido era preso antes da escolha do presidente, como se fosse reagir sozinho”, disse Iracema Teixeira, viúva do brigadeiro Teixeira, em depoimento à CNV.
Para o pesquisador Cunha, que também atuou na comissão, a partir de março de 1964 deixou de existir “respeito ou deferência” a militares que se opuseram ao regime militar, ao contrário do que havia ocorrido em outras rebeliões militares ao longo do século 20. “[Após 1964] houve tortura entre sargentos, marinheiros e muitos de seus familiares também. Por exemplo, a filha de um general, na época com 16 anos, foi violentada no DOI-Codi [unidade militar da repressão] de São Paulo.”
O brigadeiro Rui Moreira de Lima (1919-2013), considerado herói da Segunda Guerra Mundial, na qual lutou como piloto de caças, foi preso logo após o golpe. 
“Dali foi levado para o navio Custódio de Mello, ancorado no próprio 1º Distrito Naval. Foi o único a ser jogado no porão daquele navio, infestado por baratas, ratos e percevejos. Recebia comida todos os dias, mas como era colocada no chão, através de uma abertura minúscula, ele se recusou a comer, fazendo greve de fome”, relatou à CNV um dos filhos do brigadeiro, Pedro. 
No dia do golpe, o brigadeiro havia sobrevoado a coluna de Mourão mas, sem ordens para atirar, regressou para a base sem atacar os golpistas.
Meses e anos depois do golpe, os militares continuaram sendo punidos de várias formas. “A perseguição foi continuada. Alguns passavam em concursos públicos e não eram admitidos. Outros sofriam restrições e mesmos prisões, dependia muito do momento político. E muitas vezes extensivos aos seus familiares”, diz Cunha. 
A repressão também atingiu, segundo a Comissão da Verdade, ao menos 237 policiais militares e integrantes de outras forças policiais em nove estados, incluindo 103 oficiais. 
Em São Paulo, o então coronel Vicente Sylvestre foi preso e torturado em julho de 1975 com outros 20 colegas sob acusação de integrarem o PCB (Partido Comunista Brasileiro). Em depoimento à CNV, Sylvestre reconheceu que sua morte foi evitada pela intervenção do general Sylvio Frota, que, mesmo sendo da linha-dura, ficou horrorizado quando soube das torturas no DOI-Codi. 
 
Sylvestre afirmou ter passado três meses de suplícios. A primeira sessão durou seis horas. “Me fizeram tirar toda a roupa, me penduraram no pau de arara. Então disseram ‘agora vamos fazer o que vocês fazem com vagabundo na delegacia’. E foi uma pancadaria”, disse à CNV.
Meses depois, recebeu a informação de que um colega PM também preso, o tenente José Ferreira de Almeida (1911-1975), havia se matado no DOI-Codi. “Não havia condições de se suicidar no DOI-Codi. [...] Não tinha instrumento para isso. [...] Mais tarde ficamos sabemos que ele foi vítima de tortura.
Introduziram no ânus um cabo de vassoura, quebrando na ponta e perfuraram todo o intestino. Morreu sem o corpo deixar nenhum vestígio, nenhum hematoma, nada. [...] E esse caso ficou praticamente desconhecido da história dos presos políticos.”


    TÓPICOSRELACIONADOS

    Após incêndio, Prefeitura cumpre reintegração de posse em comunidade na Zona Leste, OESP

    Felipe Resk, O Estado de S.Paulo
    23 de março de 2019 | 21h41
    Atualizado 24 de março de 2019 | 13h53


    Favela do Cimento
    Rescaldo após incendio na Favela do Cimento, embaixo do Viaduto Bresser, na Av Radial Leste.  Foto: GABRIELA BILO / ESTADAO
    SÃO PAULO -  O incêndio na véspera do cumprimento do mandado judicial não interferiu na ação da Prefeitura de São Paulo de reintegração de posse na manhã deste domingo, 24, na Favela do Cimento, no entorno do Viaduto Bresser, na Mooca, Zona Leste de São Paulo
    A reintegração teve início às 6h. Segundo a Prefeitura, 215 pessoas moravam no local, entre elas 66 crianças, e a maioria das famílias já havia deixado voluntariamente o local antes do incêdio de sábado, 23, à noite. As famílias participaram de audiências de conciliação entre os dias 18 e 22, quando ficou definida a oferta de acolhimento na rede do município. 
    Incêndio na favela do Cimento, na Radial Leste
    Os bombeiros foram acionados e conseguiram controlar as chamas cerca de duas horas depois Foto: Alex Silva/Estadão
    Ainda pela manhã, a Secretaria de Assistência Social informou que 42 famílias aceitaram deixar o local e foram abrigadas em centros de acolhimento ou casa de parentes. Além disso, três famílias aceitaram passagens de ônibus para retornarem às sua cidades de origem.
    “Os assistentes sociais da Prefeitura vão continuar conversando diariamente com as pessoas que não aceitaram ir para nossos centros de acolhimento. Não existe prazo definido para as pessoas permanecerem nos centros de acolhimento.", disse a Prefeitura em nota divulgada nesse domingo, 24. 
    As pessoas que não aceitaram ir para abrigos continuam nas ruas do entorno da ex-favela, no bairro da Mooca.  Moradores relataram ação truculenta da polícia momentos após o incêndio. "Teve bala de borracha, tem gente com marcas pelo corpo", disse o Padre Julio Lancellotti -  que esteve no local e acompanhou a reintegração de posse. A polícia negou qualquer confronto ou ação violenta.  

    Incêndio

    Na véspera do cumprimento da reintegração de posse determinada pela Justiça, um incêndio de grandes proporções atingiu a Favela do Cimento, às margens da Radial Leste, zona leste de São Paulo, na noite de sábado, 23. Até o momento, não há notícia de feridos.
    O incêndio começou por volta das 19h30, segundo a Polícia Militar. "Eu estava dormindo. Acordei assustado com o barulho da fiação estralando, dando curto-circuito por causa do fogo. Já estava consumindo tudo", conta o catador Mizael Ataíde, de 30 anos. Há oito meses, ele saiu da cidade de Contagem, em Minas, para morar na capital paulista, onde conheceu a mulher, Cláudia dos Santos, de 33.
    O incêndio aumentou rapidamente, contam. Ainda assim, o casal conseguiu retirar do barraco a geladeira, o fogão e um colchão, que encostaram na parede de um posto de gasolina desativado. Outros móveis se perderam, assim como as roupas. "Vou passar a noite aqui, não temos para onde ir", diz Ataíde. "Não sei se vou conseguir cozinhar, a comida queimou toda", relatou Cláudia.
    Ao todo, 20 viaturas e cerca de 70 homens do Corpo de Bombeiros foram acionados para apagar o fogo, trabalho que durou cerca de duas horas. A causa do incêndio ainda é desconhecida. No local, no entanto, policiais comentavam que um grupo de moradores, revoltados com a reintegração, teria posto fogo nos barracos.
    "A gente já não tem nada, ia tacar foco nos nossos próprios bagulhos?", contesta o estivador Bartolomeu Carvalho, de 45 anos, morador da Favela do Cimento desde 2015. "Eu sei que não é certo morar aqui, que a gente estava aí ilegal, mas é por falta de opção: não temos para onde ir."
    Incêndio na favela do Cimento, na Radial Leste
    Vários barracos de madeira foram destruídos pelo fogo Foto: Alex Silva/Estadão
    Segundo relata, Carvalho acordou às 4h30 para trabalhar: tinha três descargas de mercadoria programadas para fazer em diferentes pontos de São Paulo. Quando chegou em casa, mais de 14 horas de trabalho depois, viu o fogaréu. "Foi um susto", diz.
    A mulher e a filha de 8 anos já haviam saído nesta semana para dormir na casa de um parente. "São mais de 15 pessoas morando lá na casa da minha sogra, não cabe mais ninguém", afirma Bartolomeu. "Eu deveria ter tirado o resto das minhas coisas hoje, mas se eu perder um dia de trabalho deixo de ganhar R$ 40. Não posso, tenho minha família para cuidar."
    O fogo destruiu a maior parte dos barracos. Nas calçadas, foram abandonados móveis queimados, ainda fumegando, metais retorcidos e entulhos. Durante o incêndio, o Viaduto Bresser ficou bloqueado por viaturas da Força Tática da PM. A via foi liberada para o tráfego de veículos por volta das 21h10.
    Incêndio na favela do Cimento, na Radial Leste
    O fogo atingiu a comunidade localizada na Radial Leste, na zona leste de São Paulo Foto: Corpo de Bombeiros

    Fogo começou cerca de 1h após encaminhamento de famílias, diz secretário

    Em nota divulgada na sexta-feira, 22, a Prefeitura de São Paulo informou que cumpriria no domingo a ordem judicial de reintegração de posse da área. A decisão é da juíza Maria Gabriela Pavlopoulos Spaolonzi, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP). A gestão municipal também afirmou ter disponibilizado 20 caminhões e 10 vans para auxílio no transporte das famílias, além de deslocamento para atendimento aos centros de acolhida.
    Por volta das 22 horas, chegaram ao local dois secretários da gestão Bruno Covas(PSDB): o coronel José Roberto Rodrigues de Oliveira, da Segurança Urbana, e José Antonio de Almeida Castro, de Assistência e Desenvolvimento Social. Eles foram acompanhar o trabalho de rescaldo dos Bombeiros e de agentes sociais com os desabrigados.  
    "Estávamos trabalhando nesta operação (de retirada da comunidade) há meses. Durante toda a última semana estavam sendo realizadas audiências de conciliação", afirmou Castro. Segundo o secretário, 35 famílias haviam sido encaminhadas para abrigos da Prefeitura só neste sábado, com vagas adaptadas ao perfil familiar e também para solteiros.
    Incêndio na favela do Cimento, na Radial Leste
    Incêndio na Radial. Nas calçadas, era possível ver móveis queimados, ainda fumegando, metais retorcidos e restos de lixo espalhados Foto: Felipe Resk/Estadão
    "Infelizmente, um pouco mais de um hora do fim deste encaminhamento, o local estava praticamente vazio, se iniciou este fogo", afirmou o secretário. "A gente fica muito triste com o ocorrido. Todo a operação da Prefeitura tinha justamente este objetivo: de prevenir uma tragédia", disse.
    Segundo Castro, a favela era considerada de "extrema vulnerabilidade". Entre os perigos para os moradores, o secretário citou violência, riscos de acidente pela proximidade com a Radial Leste, além de ligações clandestinas de eletricidade nos barracos. A retirada de entulho e limpeza da área devem ser realizadas pela Prefeitura neste domingo, após o encerramento do rescaldo dos Bombeiros.
    Questionado pelo Estado se havia informação de que o incêndio seria criminoso, Castro respondeu que não poderia se manifestar sobre o tema, por ser competência da polícia. "Destacamos que a Prefeitura está com suas equipes mobilizadas para qualquer pessoa que esteja precisando de acolhimento."
    Colaborou: Gilberto Amendola e Laíssa Barros

    Bolsonaro, Pujol, o Exército e a lembrança de 1964,Marcelo Godoy, OESP


    A polarização da sociedade durante a eleição deve conhecer uma nova batalha em torno de como governo lembrará os fatos acontecidos em 31 de março: golpe de Estado ou uma contrarrevolução?

    Marcelo Godoy
    Repórter especial
    20 de março de 2019 | 05h00

    Caro leitor,
    A polarização da sociedade durante a eleição de Jair Bolsonaro retratada pelo jornal deve conhecer uma nova batalha nos próximos dias. Ela se dará em torno de como o governo lembrará os fatos acontecidos em 31 de março e em 1.º de abril de 1964 (leia aqui o especial que o Estado fez nos 50 anos da data). O comandante do Exército, o general Edson Pujol, afirmou aos seus subordinados que qualquer orientação sobre como tratar o fato deve partir do escalão superior, neste caso, o Ministério da Defesa. Se ela faltar, a ordem é manter o padrão dos anos anteriores. Não haverá manifestação do Alto-Comando ou de quem quer que seja na Força. Para o Exército, não há nada de novo que justifique uma mudança daquilo que a instituição faz há muito tempo. A data – um evento histórico, alegam os generais - nunca foi esquecida nas unidades militares. Exemplo disso é o nome da biblioteca da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, a Eceme, responsável por formar os futuros oficiais generais: Biblioteca 31 de Março.
    O que há de diferente neste ano é a pessoa que ocupa a Presidência da República. Ou seja, Jair Bolsonaro. “O Exército como instituição não vai tapar os olhos para o fato histórico. Dentro do ambiente militar, a percepção sobre 1964 é muito diferente daquela existente, por exemplo, no PSOL”, afirmou um general ao Estado. No Comando do Exército se espera uma manifestação comedida e equilibrada. Não se pretende substituir a visão que “prevaleceu até dois anos atrás”, que tratava como heróis os “falsos defensores da democracia”, por uma visão laudatória. “A minha perspectiva é de que o pêndulo se mova em direção a um ponto de equilíbrio, o que não significa excluir críticas ao 31 de Março”, disse o general. O Exército aguarda a diretriz do ministro e este, por sua vez, a do presidente.
    Bolsonaro e Pujol
    O presidente Jair Bolsonaro ao lado do general Edson Pujol (à esq.) durante passagem do comando do Exército, em janeiro  Foto: Marcos Corrêa/PR
    O historiador francês Marc Bloch dizia que o passado era, por definição, “um dado que coisa alguma podia modificar”. Era nele que se devia capturar o homem, ou melhor, os homens, o verdadeiro objeto da história. O homem em seu tempo e espaço. Mas, se os fatos não mudam, sua interpretação depende do conhecimento acumulado que, a partir de condições históricas transformadoras, permite o desenvolvimento de perspectivas diferentes a cada geração. Colega de ofício de Bloch, Jacques Le Goff acreditava que a obra de um historiador não sobreviveria por mais de 50 anos (veja aqui sua entrevista ao Estado). Em Memória e História, Le Goff analisa o que há por trás das visões em torno do passado. “Tornar-se senhor da memória ou do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, grupos e indivíduos que dominam e dominaram as sociedades históricas.”
    Essa é a disputa que Bolsonaro quer reabrir sobre 1964. A começar pela definição do que houve há 55 anos: um golpe de Estado, uma contrarrevolução, um atentado à democracia ou a afirmação desta diante da ameaça comunista? Nos últimos 30 anos, os governos não tiveram dúvidas sobre o que se passara. A maioria deles na Nova República não hesitou em usar a clássica definição de coup d’état para classificar a ação de civis e militares que derrubou o governo de João Goulart. Trata-se de “um ato realizado por órgãos do próprio Estado” - segundo diz o Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio -, levado a cabo por grupos militares ou pelas Forças Armadas como um todo, que pode ou não vir acompanhado de mobilização social. Sua consequência mais comum é a simples mudança da liderança política e, habitualmente, ele é seguido pelo reforço da máquina burocrática e policial e pela dissolução de partidos políticos. O caso brasileiro parece, portanto, encaixar-se na definição da ciência política para golpe de Estado.
    Durante esses anos todos, Jair Bolsonaro demonstrou ter uma leitura diferente. Negava até a existência de uma ditadura no período, coisa que a cúpula do regime nunca refutou, pelo menos desde a promulgação do AI-5 – basta ouvir a gravação da reunião presidencial que decidiu pela adoção do ato institucional. “Às favas com a consciência”, disse o então ministro Jarbas Passarinho, um dos participantes da reunião. Depois, soltava rojões no 31 de Março, enquanto os governos da Nova República determinavam aos quartéis reserva e comedimento na lembrança do fato histórico.
    Em 1996, um outro oficial da reserva se manifestou sobre a data. Dizia querer “reequilibrar uma versão da história que só contemplava a visão dos vencidos em 1964”. Era o general Antonio Carlos de Andrada Serpa. Para ele, os militares erraram ao não publicar “um livro verde e amarelo, explicando como esses mesmos esquerdistas que hoje nos governam levaram uma pequena fração da mocidade brasileira ao terrorismo, ao roubo, assaltos, sequestros e justiçamentos”. Serpa prosseguia em seu documento fazendo a crítica dos órgãos de repressão, dizendo: “Como sempre, houve excessos criminosos: caso Rubens Paiva, Herzog, Fiel Filho e outros.
    presidente Geisel puniu os abusos ao demitir o comandante do 2.º Exército, general Ednardo D'Ávila Mello, traído por maus auxiliares”. Para Serpa, Geisel teria sido obediente ao “princípio militar de que o chefe é responsável por tudo o que fizer ou deixar de fazer (C 101-5, Estado-Maior e Ordens)".
    O general concluiu então o documento lembrando o exemplo de Caxias. “Quando solicitado a comemorar a vitória sobre os farrapos, em 1845, (Caxias) respondeu: ‘Não, antes rezemos um Te Deum pelas almas dos imperiais e farroupilhas, pois eram brasileiros’. Reconhecer o idealismo equivocado dos terroristas e os excessos da repressão será um convite à verdadeira Anistia e Justiça”, concluiu o general. Para seus colegas de hoje, é “o espírito de Caxias que deve prevalecer, pois essa é a tradição do Exército”. Resta saber se Bolsonaro vai mandar ao Ministério da Defesa que cumpra essa tradição ou que inaugure outra, a do conflito, em vez do equilíbrio desejado pelos militares. Vale lembrar que o 31 de Março deste ano cai em um domingo, dia em que Bolsonaro costuma ficar sozinho com o celulare o Twitter à sua disposição.