domingo, 31 de março de 2013

Minha rentável lavanderia


SÉRGIO AUGUSTO, de O Estado de S. Paulo
O magnata nunca parou de conspirar contra o czar; queria ser um Richelieu não um Luís XIII - Daniel Berehulak/Getty Images
Daniel Berehulak/Getty Images
O magnata nunca parou de conspirar contra o czar; queria ser um Richelieu não um Luís XIII
Chipre e Coreia do Norte dominaram o noticiário internacional, mas a Rússia, como se diz no turfe, pagou placê. A campanha invicta de sua seleção nas eliminatórias para a Copa do Mundo (sem falar no sufoco que ela deu nos canarinhos do Felipão, na segunda-feira), a inesperada morte de Boris Berezovsky, a incerta da polícia e do fisco nas organizações de defesa dos direitos humanos em Moscou e São Petersburgo, a greve de fome na colônia penal de Elizovo, os desdobramentos daquela agressão ao diretor artístico do Balé Bolshoi-foi farta e variada a pauta de assuntos oferecida à mídia pela Rússia, nas duas últimas semanas. Até na crise do Chipre ela andou metida. Muitos bilionários russos fizeram do Chipre uma lavanderia de dinheiro cercada de água (e dívidas) por todos os lados.

Fora dos gramados, só vexames a Rússia vem acumulando. Ponham tudo na conta de Vladimir Putin. Há 13 anos no poder, ele já foi presidente, primeiro-ministro, presidente de novo; na prática, é um czar. E, como os czares de antanho, um autocrata. Com a agravante de ter se formado na mais nefasta escola de líderes do país, a KGB, a polícia secreta stalinista, cuja sigla mudou (para SVR), mas não seus métodos de vigiar e punir. Putin reinventou a república imperial e a democradura, é o avatar contemporâneo de Stalin. 

Com 20 residências a seu dispor, incluindo um palácio perto de São Petersburgo cuja restauração custou uma fortuna, 43 aviões e frotas de carros e iates, e uma coleção de relógios no valor de 700 mil dólares , mais parece, é verdade, um monarca do Golfo Pérsico. O Parlamento come em sua mão e aprova todas as leis que possam ajudá-lo a perpetuar-se no Kremlin, com o apoio do eleitorado mais bronco e mal informado do país. 

Ano passado, Putin tornou legal castigar com pesadas multas e prisão quem criticar as autoridades ou fizer algo que o governo considere subversivo. As garotas do grupo punk Pussy Riot estão presas até hoje, assim como outros dissidentes do regime, igualmente timbrados de “inimigos do povo” (vaga pecha de inspiração soviética) e “elitistas a serviço de valores e interesses ocidentais”. Elitistas porque não se informam apenas pela televisão (sob controle estatal), lêem jornais, acessam a internet, e não consideram a defesa dos direitos humanos uma perniciosa afetação ocidental ou, como Putin também alardeia, um ardil para implantar no país uma revolução colorida nos moldes da que sacudiu a Geórgia e a Ucrânia.

Foi em represália às pressões dos Estados Unidos contra abusos aos direitos humanos na Rússia que o obsessivo e paranoico Putin proibiu, em dezembro, a adoção de órfãos russos por famílias americanas. Mil haviam sido adotados em 2011, ainda restariam cerca de 120 mil à espera de um lar. As passeatas contra a medida não surtiram o menor efeito. Na mesma ocasião, uma lei obrigando as ONGs com algum tipo de financiamento estrangeiro a se registrarem como “agentes estrangeiros” (como se espionagem fosse sua especialidade) e se submeterem a fiscalizações do ministério público, sem aviso prévio, aprimorou o cerco. 

Ainda que as instalações de entidades meramente culturais como a Aliança Francesa também tenham sido visitadas e devassadas por agentes do governo russo no início da semana, a blitz visou sobretudo as organizações que zelam pela defesa dos direitos humanos, como a Anistia Internacional, o grupo Memorial, o Human Rights Watch. A intenção era clara: intimidar e dificultar as atividades das ONGs, e, por tabela, amedrontar e inibir a oposição. 

A repercussão fora de casa foi a pior possível. Arrufos diplomáticos com os governos da França, da Alemanha, e a União Europeia arranharam um pouco mais a reputação do presidente russo. Dentro de casa, a malaise de sempre. Só os intelectuais chapas brancas não execram o atual governo, “corrupto e criminoso”, segundo Mikhail Shishkin, um dos mais badalados escritores contemporâneos do país. 

No início do mês, Shishkin se recusou a representar a Rússia na maior feira de livros dos Estados Unidos, a Book Expo America, “exclusivamente por razões éticas”. Receava ser tomado por um garoto-propaganda do regime, que abomina, da presidência ao judiciário (“não serve à lei, mas às autoridades”). Não reconhece a sua Rússia naquela em que vive, anestesiada por uma televisão “prostituta” e à mercê de “uma súcia de impostores que nos impõe leis insanas, medievalescas” (leia-se o Parlamento). 

Há dias, o autor de best sellers policiais Boris Akunin, do alto de sua verdadeira identidade (Grigory Chkhartishvili), anunciou haver abandonado a ficção para escrever uma grande história da Rússia, em vários volumes, como um contraponto aos livros didáticos, ideologicamente preconceituosos, encomendados pelo presidente Putin. Começará pelo século 13 . Ou seja, virá de Alexandre Nevsky até os dias correntes. Vale dizer, até Putin, as máfias pós-perestroika, os nababos russo-cipriotas...e Boris Berezovsky, o magnata exilado que se enforcou em Londres, no final da semana passada.

Berezovsky talvez tenha sido a figura dramática mais marcante, para não dizer fascinante, da transição para a nova Rússia, nos anos 1990. Aproveitando o vácuo deixado pelo ancien régime, avançou sobre diversas riquezas do país (petróleo, minério, bancos, fábricas), enriqueceu e tornou-se o homem mais influente da política nacional. Tinha nas mãos todas as autoridades e todos os líderes empresariais. Fez Putin suceder na marra a Boris Yeltsin. Traído e perseguido, asilou-se em Londres, onde diversificou seus negócios (até no Corinthians lavou dinheiro) e perdeu uma fábula em brigas judiciais com seu antigo sócio, Roman Abramovich, dono do Chelsea.

Nunca parou de conspirar contra seu maior afilhado político. Almejava o poder sem as suas obrigações. Queria ser um Richelieu, não um Luís XIII. Por pouco não acabou como o Trótski de Putin. Preferiu o suicídio a uma picaretada na moleira. Sua história, não porque tenha vivido os últimos anos na Inglaterra, é mais Shakespeare que Dostoiévski.

A revolta da sala de jantar


RICARDO ANTUNES*
A deputada Benedita da Silva comemora a aprovação da PEC com Creuza de Oliveira, da Federação Nacion - Ed Ferreira/Estadão
Ed Ferreira/Estadão
A deputada Benedita da Silva comemora a aprovação da PEC com Creuza de Oliveira, da Federação Nacion
Quando a classe trabalhadora inglesa, a partir do século XVIII, começou a lutar pelos diretos do trabalho, como redução da jornada (que atingia 18 horas por dia), salários dignos, intervalos para refeições, descanso semanal, férias, licença maternidade, etc, as crianças e adolescentes trabalhavam diuturnamente, sem intervalos, ao sabor dos proprietários. Pude constatar, no acervo do museu da maquinaria industrial inglesa, chamado Quarry Bank Mill, em Manchester, os caixotes minúsculos onde dormiam as crianças-operárias exploradas pela Revolução Industrial nascente, no gélido frio do norte da Inglaterra. 

Em plena expansão do mundo maquínico e sua lógica produtivista, o legítimo ingresso das mulheres nas fábricas teve como “contrapartida” patronal a redução do salário da totalidade dos assalariados, homens, mulheres e crianças. E, a cada avanço em seus direitos, a grita patronal aumentava. Era como se o capitalismo fosse acabar, e ele mal estava começando... 

Se a história é singular em suas distintas épocas, há algo de similar ocorrendo no Brasil do século 21, após a ampliação dos direitos das trabalhadoras domésticas. Nossa origem escravista e patriarcal, concebida a partir da casa grande e da senzala, soube amoldar-se ao avanço das cidades. A modernização conservadora deu longevidade ao servilismo da casa grande para as famílias citadinas. As classes dominantes sempre exigiram as vantagens do urbanismo com as benesses do servilismo, com um séquito de cozinheiras, faxineiras, motoristas, babás, governantas e, mais recentemente, personal trainers para manter a forma, valets nos restaurantes para estacionar os carros, etc. 

Como o assalariamento industrial excluiu a força de trabalho negra das fábricas (preterida em favor dos imigrantes brancos), formou-se um bolsão excedente de trabalho ex-escravo que encontrou acolhida no trabalho doméstico. E, como um prolongamento da família senhorial, manteve-se as vantagens da era serviçal. Agora, os “de cima”, para recordar Florestan Fernandes, estão novamente alvoroçados com a ampliação de direitos dos “de baixo”. Algo lhes incomoda neste avanço plebeu. 

Com as classes médias o quiproquó é maior: os seus estratos mais tradicionais e conservadores agem quase como um espelhamento deformado das classes proprietárias e vociferam a “revolta da sala de jantar”: não será estranho se começarem a defender o direito das trabalhadoras domésticas não terem os direitos ampliados. E sua bandeira principal já está indicada: são contrárias à ampliação dos direitos das trabalhadoras domésticas para lhes evitar o desemprego. 
Nos núcleos mais intelectualizados e democráticos das classes médias, há o sentimento de que uma chaga está sendo reduzida. Percebem a justeza destes direitos sociais validos para o conjunto da classe trabalhadora, ainda que sua conquista altere significativamente seu modo de vida. Mais próxima (ou menos distante) do cenário dos países do Norte, tende a recorrer cada vez mais ao trabalho doméstico diarista em substituição ao mensalista.

E isso aproxima setores da classe média ao home office, com suas conhecidas vantagens (flexibilidade do uso do tempo e sem perder horas no trânsito para o emprego) e múltiplas desvantagens (como a proximidade com a terceirização e a informalidade, o fim da separação entre espaço público e privado e o risco de perda de controle do tempo, entre outras). E pode incentivar especialmente as mulheres ainda mais em busca de trabalho em meio período, o que, se possibilita maior proximidade com os filhos, pode ampliar ainda mais a desigual divisão sexual do trabalho na esfera reprodutiva. 

Para as trabalhadoras domésticas, entretanto, a ampliação e igualdade de direitos tem o significado de uma primeira abolição. O risco de maior desemprego é claramente falacioso: primeiro porque faz tempo que elas procuram melhores qualificações para migrar para novos empregos, especialmente no comércio e serviços. É por isso que a redução da oferta de trabalhadoras domésticas vem se reduzindo a cada ano. Ao contrário, portanto, do propalado “desemprego inevitável”, a ampliação de direitos poderá até mesmo ampliar a oferta de trabalho. Uma parcela destas trabalhadoras pensará duas vezes se compensa recorrer ao call center e telemarketing, onde a burla e a informalidade também não são exceções. 

Combater a informalidade que atinge mais de 70% desse contingente (dos quais mais de 90% são mulheres e mais de 60% negras) será uma bandeira decisiva dos sindicatos das trabalhadoras domésticas que devem avançar sua organização e aumentar sua força buscando a regulamentação efetiva dos direitos. E esta sim, será uma consequência importante da ampliação de direitos, que tanto incomoda aos conservadores. 

*RICARDO ANTUNES É PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DO TRABALHO NA UNICAMP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE OS SENTIDOS DO TRABALHO (ALMEDINA, COIMBRA). SEU NOVO LIVRO, RIQUEZA E MISÉRIA DO TRABALHO NO BRASIL, VOL. II (BOITEMPO), ESTÁ NO PRELO

A ilha das ilusões perdidas (super entrevista no Aliás)


JULIANA SAYURI, de O Estado de S. Paulo
Jogando praga? População cipriota se revolta contra o confisco de depósitos bancários - Yiannis Kourtoglou/AFP
Yiannis Kourtoglou/AFP
Jogando praga? População cipriota se revolta contra o confisco de depósitos bancários
Era uma vez o Chipre: pequenina ilha no Mediterrâneo, à beira da bancarrota, que firmou um acordo com a troika para receber um resgate de € 10 bilhões e assim impedir que o país quebrasse e arrastasse consigo a UE. A troika em questão é o triunvirato formado por FMI, Comissão Europeia e BCE, que tabulou um resgate das finanças públicas e das maiores instituições financeiras cipriotas. Apesar do aporte, os mercados se abalaram: Nova York chiou, Milão escorregou, Shanghai fraquejou e o euro atingiu o menor nível desde novembro, pressionado pelas incertezas econômicas no Chipre e políticas na Itália. “Os outros países europeus se comportam como os cidadãos da capital cipriota, Nicósia. Estão com medo”, como bem definiu Gilles Lapouge. Afinal, ninguém é uma ilha. 

Para discutir essas e outras incertezas, o Aliás conversou com Nathan Gardels e Nicolas Berggruen, autores de Governança Inteligente para o Século XXI: Uma Via Intermediária entre Ocidente e Oriente (Objetiva), lançado nessa semana no Brasil. Gardels, 59, cientista político e urbanista americano, editor da revista New Perspectives Quarterly, vive em Los Angeles. Berggruen, 51, investidor e filantropo alemão-americano, nº 736 no ranking de bilionários da Forbes, não tem casa. Ziguezagueia de hotel em hotel, de metrópole em metrópole. Em 2001, decidiu se desfazer de tudo: carro, ilha, mansão, obras de arte e outros luxos. Não queria mais se prender a bens materiais - e passou a se dedicar a ideias para mudar os rumos da política internacional. 

Berggruen e Gardels se conheceram por um amigo comum, o economista francês Jacques Attali, em 2010. “À primeira vista, pensei que ele era um bilionário louco”, conta Gardels. “Depois vi que era um cara sério, um viajante incansável, com ótimas ideias.” Juntos, fizeram um tour por Bogotá, Santiago, Buenos Aires e São Paulo nos últimos dias para lançar o livro - a primeira edição, publicada pela London School of Economics, saiu em novembro passado. 

Fundador do Instituto Berggruen, Nicolas também aposta em think tanks como o Council for the Future of Europe (com líderes como Tony Blair, Mario Monti e Felipe González) e o 21st Century Council (com intelectuais e políticos como Amartya Sen, Fernando Henrique Cardoso, Francis Fukuyama, Gordon Brown, Joseph Stiglitz, Ricardo Lagos, entre outros). 

A seguir, trechos da entrevista. 

Chipre é o país da vez. Como analisam o que está acontecendo na ilha? 

Nathan Gardels: A situação cipriota mostra, mais uma vez, como um país pequeno pode imediatamente ser arrastado ao colapso financeiro por não ter uma união bancária ou uma união fiscal. Aconteceu com a Espanha e a Itália, pois os bancos foram descapitalizados. Também a Grécia foi assolada assim. Erupções como o Chipre podem contagiar outros países, especialmente com a política num impasse, como ocorre na Itália. No Chipre, o segundo plano parece melhor que o primeiro, pois protege os depósitos. Vi um artigo no International Herald Tribune que contava a história de uma bióloga cipriota de 33 anos, aliviada, pois os depósitos de menos de € 100 mil serão protegidos. No dia seguinte, assim que abrisse o banco, ela iria retirar o dinheiro. 

Nicolas Berggruen: Na Europa, o problema é principalmente político, e não econômico. Os países europeus decidiram se federar. Uma boa ideia, pois se fortaleceram. Decidiram criar um governo em Bruxelas e uma moeda única, mas não se pode ter uma moeda sem a habilidade para financiá-la. E não se pode ter um governo sem a habilidade para administrar os países. A UE é como uma família de países, mas uns gastam mais, outros menos, uns ganham mais, outros menos. Só dará certo se mais poder for para o centro, de forma democrática e legítima. Bruxelas tem o poder, em teoria. Mas, na realidade, não tem poder algum, pois não tem legitimidade. Cada vez que a crise aperta, os chefes de Estado se reúnem desesperados. Um presidente não poderia administrar um país assim, com só reuniões emergenciais diante de crises. Neste ano, talvez tenhamos mais três crises. 

Gardels: E a França será a próxima.

Berggruen: Sim, a França já está numa grande recessão.

Gardels: Na Itália, o impasse nas eleições se mostrou uma revolta contra a austeridade e os alemães. No Chipre ainda se ensaia outra reação. A Polônia, que antes estava ansiosa para aderir ao euro, agora está recuando. Se esse sentimento antieuropeu não for parado por políticas voltadas ao crescimento e ao emprego para jovens, a UE pode entrar numa espiral para a desintegração, que pode ser irreversível. 

Angela Merkel perdeu poder, sem Nicolas Sarkozy e agora com François Hollande?
Berggruen: Sim, e isso só mostra como a situação é disfuncional. A Europa não se resume a dois países. Mas, como não temos um governo europeu, os dois maiores (França e Alemanha) se reúnem e decidem o que vão fazer. Mas você tem razão. Sarkozy e Merkel, do mesmo partido nos seus respectivos países, tinham uma relação - que não era fácil, mas era forte. São duas culturas muito diferentes. Nasci em Paris, mas me considero alemão. Conheço bem as diferenças entre os dois lados. Agora a relação é ainda mais difícil: são líderes de dois partidos de ideologias diferentes. Hollande é um socialista de verdade e lidera um país em recessão. Merkel tem eleições em setembro e governa uma potência que poderá entrar em recessão, mas não agora.

Gardels: França e Alemanha estão divididos como democratas e republicanos nos EUA. É o mesmo entrave. E não são só os socialistas franceses versus Merkel. Mas os social-democratas alemães versus Hollande. Nesse contexto, sou pessimista.

Qual será o futuro da zona do euro?

Berggruen: Não pode continuar como está, uma terra de ninguém. Deve ir para frente ou para trás. Se for para frente, a UE precisará se federar, o que será doloroso. Se for para trás, se romperá, o que também será doloroso. Mas, como muito foi investido nessa ideia, o melhor seria manter a zona do euro unida. 

Gardels:
 Há uma chance de mudar isso: em 2014, com as eleições para o Parlamento europeu. Quem conseguir mais lugares no Parlamento poderá formar uma coalizão, que irá escolher o presidente da Comissão Europeia. Como está agora, o Conselho representa os chefes de Estado e o Parlamento representa os cidadãos europeus. Pela primeira vez, os cidadãos europeus poderão eleger o presidente dessa comissão, que deverá representá-los - e não as diferentes nacionalidades e nações per se. Isso pode ajudar a corrigir esse déficit democrático na UE, dando mais legitimidade e autoridade a Bruxelas. 

Ainda diante da crise financeira, como analisam os últimos movimentos dos Brics? 
Gardels: Antes, tínhamos uma globalização 1.0, liderada pelos EUA. Agora temos uma globalização 2.0, uma convergência de padrões de crescimento, a ascensão das economias emergentes e o spread da tecnologia, que levaram à “ascensão do resto do mundo”. Acima de tudo, a globalização 2.0 é uma interdependência de identidades plurais. O banco dos Brics, se realmente vingar, será a primeira instituição nessa linha. É uma afirmação contra os enfraquecidos acordos de Bretton Woods com Banco Mundial e FMI. Por muito tempo, os chineses empacaram na ideia de se tornar um estrategista responsável no sistema ancorado nas regras do Ocidente. O banco dos Brics é um sinal de que eles finalmente estão engajados globalmente, para criar e construir instituições com novas regras e por iniciativa própria. É um sinal de uma nova ordem despontando, um caminho alternativo. 

Como tiveram a ideia do livro?

Gardels: Você conhece o filme Um Estranho Casal? Um clássico com Jack Lemmon e Walther Matthau. Pois então, Matthau está vagando pelas ruas até chegar ao apartamento de Lemmon, que pergunta o que está acontecendo, o que está errado. E ele diz: “O sistema está quebrado. Esse é o problema”. Nicolas e eu começamos como um estranho casal (risos). Pensamos: “O sistema está quebrado. O que faremos?” Na história real, acompanhávamos a crise fiscal na Califórnia. Lembrei que 30 anos antes tinha visitado a China com o governador Jerry Brown (1975-1983 e 2011-atual). O país acabava de passar pela revolução cultural. Shenzhen, agora a fábrica do mundo, era então uma vila de pescadores. A China avançou muito, com trens-bala por todos os lugares, imensas networks, bons colégios em Shangai. É a segunda maior economia do mundo, com um crescimento de 7%, o que é considerado horroroso para eles, mas altíssimo para muitos outros países. Quero dizer, nos mesmos 30 anos em que a China avançou, os EUA regrediram. Temos infraestrutura limitada, grandes dívidas e colégios inferiores, gastamos mais dinheiro em prisões do que em universidades. A ideia partiu daí. Escolhemos abordar EUA e China, as duas maiores economias, para ver como a governança levou esses países para frente ou para trás. Na China, há uma narrativa emergindo: “Somos uma civilização de 3 mil anos”. O tempo de existência da democracia liberal equivale à duração de uma dinastia. Os chineses, mais orgulhosos, agora dizem: “Sabemos o que estamos fazendo, e melhor que o Ocidente”. 

E estão certos?

Gardels: Sim e não. Todos os países estão em desequilíbrio. A questão: é quem pode se autocorrigir? A China está mais atenta aos problemas. Ali há líderes pragmáticos discutindo soluções. Os EUA são mais arrogantes. Dizem: “Somos uma democracia liberal, temos eleições, podemos mudar se quisermos”. Mas, como Fernando Henrique Cardoso diz, nem sempre as eleições promovem mudanças. Elas podem se tornar meras disputas para o presente. E os governos estão em diferentes estágios de desequilíbrio. Logo, a calibragem é diferente. A China precisa de transparência, responsabilidade e liberdade de expressão. Os EUA precisam de uma perspectiva de longo prazo e um consenso numa democracia dividida entre dois partidos. 

Viu Trabalho Interno? No fim do documentário, os principais players da crise financeira continuam no poder, em outros cargos. Quer dizer, o sistema não se corrigiu...

Gardels: Sim, você tem razão. Eles continuam lá. Quando dizemos que a democracia tem dificuldades para se corrigir, há duas razões: o imediatismo político nas eleições (o horizonte de curto prazo dos eleitores) e a plutocracia (o poder do dinheiro, dos interesses particulares, dos lobbies). Democracia supõe que as eleições mudarão um país. Plutocracia, como define Francis Fukuyama, diz que há eleições e ponto. Assim as coisas não mudam, pois os poderosos (Wall Street e os lobistas financeiros, por exemplo) continuam protegendo seus interesses. Barack Obama foi eleito e reeleito. Mas o lobby das armas e dos bancos continua. Não é que o presidente não quer fazer nada. Ele não tem poder para isso, com um Congresso, como Paul Volcker disse, comprado e pago. 

No livro, vocês criticam a democracia americana - consumista, imediatista e midiática. Não só a americana, certo?

Gardels: Nos EUA, a escala é maior. Mas, também podemos ver uma democracia de consumidores na América Latina, onde vocês têm uma classe média emergente e um boom de commodities com a Ásia. O perigo é que os frutos desse boom não estão sendo investidos no futuro. As pessoas consomem no presente e os governos não investem em infraestrutura e projetos de longo prazo. Penso que as democracias sempre se focam mais no presente. É uma democracia da coca diet, em que mídia, mercado e política dizem: “Aproveite, consuma agora, sem calorias, nem custo”.

Berggruen: A América Latina é um laboratório político. Alguns países estão muito bem, outros não. Para uma sociedade funcionar, é preciso ter um equilíbrio entre instituições, poder Executivo e sociedade civil. Mas, às vezes, há uma tentação ao populismo. Dar benefícios econômicos para todos, de olho nas próximas eleições, é uma tentação muito alta. Não só na América Latina, mas no mundo todo, é injusto esse tipo de populismo em países em desenvolvimento, em sociedades não informadas, em nações ainda imaturas. A democracia nesses lugares mais atrapalha que ajuda. Noutros países, na Ásia, essa tendência é menor. Você pode dizer que não são governos democráticos, por dar muito poder a um partido (como o Japão) ou a um regime (como Taiwan). Mas eles levaram esses países ao crescimento, enquanto os cidadãos não estavam preparados para lutar por si mesmos. Quando esses países amadureceram, tornaram-se muito mais democráticos. 

O sr. está dizendo que, às vezes, a democracia não é justa?

Berggruen: É uma ótima forma de dizer isso. Sim. A democracia nos dá uma falsa ideia de escolha. Primeiro, quando você é 1 entre 1 milhão, digamos na Índia, o que a democracia significa se você só tem direito ao voto? Segundo, só temos uma real escolha se estivermos informados e preparados. Mas, se você está sendo comprado ou manipulado, a democracia é injusta. Odeio dizer isso, mas a democracia é um bom jogo para adultos. Não é tão boa para crianças. 

Gardels: Vamos deixar claro que estamos falando da democracia concretamente, na realidade - e não da ideia de democracia. 

E o mercado? Também é injusto?

Gardels: O capitalismo e o mercado, por sua própria natureza, geram tanto oportunidade quanto desigualdade. Equilíbrio não é equalizar tudo, mas garantir que a mobilidade social e a oportunidade não fiquem estagnadas. Nos EUA, estamos rastejando em direção a uma plutocracia, em que a mobilidade parou. E no topo está só um grupo cada vez menor e cada vez mais rico. A natureza criativa-destrutiva das mudanças tecnológicas também acelera essa lacuna.

O que pensam sobre os jovens articulados em movimentos como o Occupy Wall Street?

Gardels: É uma articulação importante e legítima. Numa democracia, todos têm uma voz, e devem ter o direito de expressá-la. Mas é preciso pensar que a política é como editar um jornal. Você olha para o mundo, decide o que é importante e o que não é. Você edita a realidade. Tanto na política quanto no jornalismo é preciso alargar a perspectiva da sociedade, e não estreitá-la. Penso que as mídias sociais tendem a estreitar a visão, pois as pessoas se conectam com amigos e procuram informações específicas. E, sobre os movimentos sociais, como na Praça Tahrir e no Zuccotti Park, sempre cito o cartum argentino Mafalda: “A questão não é quebrar as coisas em pedaços. A questão é o que fazer com os pedaços”. As mídias sociais quebram tudo em pedaços, mas não sabem o que fazer com eles. Como diz Mark Zuckerberg: “Vamos quebrar tudo. Não precisamos de políticos e profissionais. Vamos nos empoderar”. Isso é bom, pelo poder conquistado pelas pessoas. Mas que efeito tem?

Mas esses movimentos não se limitaram às mídias sociais. As pessoas realmente estavam lá, nas ruas, nos parques, nas praças. 
Gardels: Sim. Mas, assim como a volatilidade das mídias sociais, o Occupy Wall Street e a Praça Tahrir se dissiparam. Se você não tiver uma narrativa que mova as pessoas para frente, o movimento desaparece. O mesmo aconteceu com Beppe Grillo na Itália, um comediante que recebeu 25% dos votos nas últimas eleições e não sabe o que fazer com os pedaços. Em cada caso, as pessoas estavam expressando um sentimento maior: injustiça contra a sociedade na crise financeira, insatisfação com os políticos italianos corruptos, revolta contra o ditador Hosni Mubarak. É preciso pegar isso e transformar numa narrativa comum. 

Vocês são democratas ou republicanos?

Berggruen: Nenhum dos dois. Prefiro manter independência política.

Gardels: Republicano não sou. Mas sabe o que somos? A terceira via. Não ideologicamente, mas como alternativa para encontrar o tal equilíbrio que comentávamos.

Mas disputariam cargos políticos?

Berggruen: Não. A ideia é promover mudanças sem ficar preso ao jogo político. 

Gardels: Já estive na política, ao lado de Jerry Brown. Mas não voltaria. Esse é um ponto importante. A habilidade de pensar o futuro desapareceu dos governos. Mesmo os líderes mais inteligentes não sabem mais aonde ir. É muito importante ter movimentos da sociedade civil, como as instituições de que participamos, o 21st Century Council e o Council for the Future of Europe, com ex-líderes e outros pensadores, para ampliar a perspectiva. Não dá para promover muitas mudanças quando você está no poder sozinho. 

Têm utopias?

Berggruen:
 Nosso trabalho é metade utópico e metade não. A própria ideia de equilíbrio é uma utopia, pois o mundo é dinâmico. Ao mesmo tempo, queremos um governo democrático responsável e todos os elementos que comentamos antes, a fim de melhorar o mundo. Isso é bastante real.

Gardels:
 Dizem que o progresso é o homem caminhando para frente, para a utopia do final da história. Propomos algo diferente. Podemos chamar de harmonismo, uma alternativa para a ideia estreita do progresso. É a luta por um equilíbrio, em que Oriente e Ocidente se englobem.