JULIANA SAYURI, de O Estado de S. Paulo
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Frau Merkel e sua mente empírica
Frau Merkel e sua mente empírica
Yiannis Kourtoglou/AFP
Jogando praga? População cipriota se revolta contra o confisco de depósitos bancários
Era uma vez o Chipre: pequenina ilha no Mediterrâneo, à beira da bancarrota, que firmou um acordo com a troika para receber um resgate de € 10 bilhões e assim impedir que o país quebrasse e arrastasse consigo a UE. A troika em questão é o triunvirato formado por FMI, Comissão Europeia e BCE, que tabulou um resgate das finanças públicas e das maiores instituições financeiras cipriotas. Apesar do aporte, os mercados se abalaram: Nova York chiou, Milão escorregou, Shanghai fraquejou e o euro atingiu o menor nível desde novembro, pressionado pelas incertezas econômicas no Chipre e políticas na Itália. “Os outros países europeus se comportam como os cidadãos da capital cipriota, Nicósia. Estão com medo”, como bem definiu Gilles Lapouge. Afinal, ninguém é uma ilha.
Para discutir essas e outras incertezas, o Aliás conversou com Nathan Gardels e Nicolas Berggruen, autores de Governança Inteligente para o Século XXI: Uma Via Intermediária entre Ocidente e Oriente (Objetiva), lançado nessa semana no Brasil. Gardels, 59, cientista político e urbanista americano, editor da revista New Perspectives Quarterly, vive em Los Angeles. Berggruen, 51, investidor e filantropo alemão-americano, nº 736 no ranking de bilionários da Forbes, não tem casa. Ziguezagueia de hotel em hotel, de metrópole em metrópole. Em 2001, decidiu se desfazer de tudo: carro, ilha, mansão, obras de arte e outros luxos. Não queria mais se prender a bens materiais - e passou a se dedicar a ideias para mudar os rumos da política internacional.
Berggruen e Gardels se conheceram por um amigo comum, o economista francês Jacques Attali, em 2010. “À primeira vista, pensei que ele era um bilionário louco”, conta Gardels. “Depois vi que era um cara sério, um viajante incansável, com ótimas ideias.” Juntos, fizeram um tour por Bogotá, Santiago, Buenos Aires e São Paulo nos últimos dias para lançar o livro - a primeira edição, publicada pela London School of Economics, saiu em novembro passado.
Fundador do Instituto Berggruen, Nicolas também aposta em think tanks como o Council for the Future of Europe (com líderes como Tony Blair, Mario Monti e Felipe González) e o 21st Century Council (com intelectuais e políticos como Amartya Sen, Fernando Henrique Cardoso, Francis Fukuyama, Gordon Brown, Joseph Stiglitz, Ricardo Lagos, entre outros).
A seguir, trechos da entrevista.
Chipre é o país da vez. Como analisam o que está acontecendo na ilha?
Nathan Gardels: A situação cipriota mostra, mais uma vez, como um país pequeno pode imediatamente ser arrastado ao colapso financeiro por não ter uma união bancária ou uma união fiscal. Aconteceu com a Espanha e a Itália, pois os bancos foram descapitalizados. Também a Grécia foi assolada assim. Erupções como o Chipre podem contagiar outros países, especialmente com a política num impasse, como ocorre na Itália. No Chipre, o segundo plano parece melhor que o primeiro, pois protege os depósitos. Vi um artigo no International Herald Tribune que contava a história de uma bióloga cipriota de 33 anos, aliviada, pois os depósitos de menos de € 100 mil serão protegidos. No dia seguinte, assim que abrisse o banco, ela iria retirar o dinheiro.
Nicolas Berggruen: Na Europa, o problema é principalmente político, e não econômico. Os países europeus decidiram se federar. Uma boa ideia, pois se fortaleceram. Decidiram criar um governo em Bruxelas e uma moeda única, mas não se pode ter uma moeda sem a habilidade para financiá-la. E não se pode ter um governo sem a habilidade para administrar os países. A UE é como uma família de países, mas uns gastam mais, outros menos, uns ganham mais, outros menos. Só dará certo se mais poder for para o centro, de forma democrática e legítima. Bruxelas tem o poder, em teoria. Mas, na realidade, não tem poder algum, pois não tem legitimidade. Cada vez que a crise aperta, os chefes de Estado se reúnem desesperados. Um presidente não poderia administrar um país assim, com só reuniões emergenciais diante de crises. Neste ano, talvez tenhamos mais três crises.
Gardels: E a França será a próxima.
Berggruen: Sim, a França já está numa grande recessão.
Gardels: Na Itália, o impasse nas eleições se mostrou uma revolta contra a austeridade e os alemães. No Chipre ainda se ensaia outra reação. A Polônia, que antes estava ansiosa para aderir ao euro, agora está recuando. Se esse sentimento antieuropeu não for parado por políticas voltadas ao crescimento e ao emprego para jovens, a UE pode entrar numa espiral para a desintegração, que pode ser irreversível.
Angela Merkel perdeu poder, sem Nicolas Sarkozy e agora com François Hollande?
Berggruen: Sim, e isso só mostra como a situação é disfuncional. A Europa não se resume a dois países. Mas, como não temos um governo europeu, os dois maiores (França e Alemanha) se reúnem e decidem o que vão fazer. Mas você tem razão. Sarkozy e Merkel, do mesmo partido nos seus respectivos países, tinham uma relação - que não era fácil, mas era forte. São duas culturas muito diferentes. Nasci em Paris, mas me considero alemão. Conheço bem as diferenças entre os dois lados. Agora a relação é ainda mais difícil: são líderes de dois partidos de ideologias diferentes. Hollande é um socialista de verdade e lidera um país em recessão. Merkel tem eleições em setembro e governa uma potência que poderá entrar em recessão, mas não agora.
Gardels: França e Alemanha estão divididos como democratas e republicanos nos EUA. É o mesmo entrave. E não são só os socialistas franceses versus Merkel. Mas os social-democratas alemães versus Hollande. Nesse contexto, sou pessimista.
Qual será o futuro da zona do euro?
Berggruen: Não pode continuar como está, uma terra de ninguém. Deve ir para frente ou para trás. Se for para frente, a UE precisará se federar, o que será doloroso. Se for para trás, se romperá, o que também será doloroso. Mas, como muito foi investido nessa ideia, o melhor seria manter a zona do euro unida.
Gardels: Há uma chance de mudar isso: em 2014, com as eleições para o Parlamento europeu. Quem conseguir mais lugares no Parlamento poderá formar uma coalizão, que irá escolher o presidente da Comissão Europeia. Como está agora, o Conselho representa os chefes de Estado e o Parlamento representa os cidadãos europeus. Pela primeira vez, os cidadãos europeus poderão eleger o presidente dessa comissão, que deverá representá-los - e não as diferentes nacionalidades e nações per se. Isso pode ajudar a corrigir esse déficit democrático na UE, dando mais legitimidade e autoridade a Bruxelas.
Ainda diante da crise financeira, como analisam os últimos movimentos dos Brics?
Gardels: Antes, tínhamos uma globalização 1.0, liderada pelos EUA. Agora temos uma globalização 2.0, uma convergência de padrões de crescimento, a ascensão das economias emergentes e o spread da tecnologia, que levaram à “ascensão do resto do mundo”. Acima de tudo, a globalização 2.0 é uma interdependência de identidades plurais. O banco dos Brics, se realmente vingar, será a primeira instituição nessa linha. É uma afirmação contra os enfraquecidos acordos de Bretton Woods com Banco Mundial e FMI. Por muito tempo, os chineses empacaram na ideia de se tornar um estrategista responsável no sistema ancorado nas regras do Ocidente. O banco dos Brics é um sinal de que eles finalmente estão engajados globalmente, para criar e construir instituições com novas regras e por iniciativa própria. É um sinal de uma nova ordem despontando, um caminho alternativo.
Como tiveram a ideia do livro?
Gardels: Você conhece o filme Um Estranho Casal? Um clássico com Jack Lemmon e Walther Matthau. Pois então, Matthau está vagando pelas ruas até chegar ao apartamento de Lemmon, que pergunta o que está acontecendo, o que está errado. E ele diz: “O sistema está quebrado. Esse é o problema”. Nicolas e eu começamos como um estranho casal (risos). Pensamos: “O sistema está quebrado. O que faremos?” Na história real, acompanhávamos a crise fiscal na Califórnia. Lembrei que 30 anos antes tinha visitado a China com o governador Jerry Brown (1975-1983 e 2011-atual). O país acabava de passar pela revolução cultural. Shenzhen, agora a fábrica do mundo, era então uma vila de pescadores. A China avançou muito, com trens-bala por todos os lugares, imensas networks, bons colégios em Shangai. É a segunda maior economia do mundo, com um crescimento de 7%, o que é considerado horroroso para eles, mas altíssimo para muitos outros países. Quero dizer, nos mesmos 30 anos em que a China avançou, os EUA regrediram. Temos infraestrutura limitada, grandes dívidas e colégios inferiores, gastamos mais dinheiro em prisões do que em universidades. A ideia partiu daí. Escolhemos abordar EUA e China, as duas maiores economias, para ver como a governança levou esses países para frente ou para trás. Na China, há uma narrativa emergindo: “Somos uma civilização de 3 mil anos”. O tempo de existência da democracia liberal equivale à duração de uma dinastia. Os chineses, mais orgulhosos, agora dizem: “Sabemos o que estamos fazendo, e melhor que o Ocidente”.
E estão certos?
Gardels: Sim e não. Todos os países estão em desequilíbrio. A questão: é quem pode se autocorrigir? A China está mais atenta aos problemas. Ali há líderes pragmáticos discutindo soluções. Os EUA são mais arrogantes. Dizem: “Somos uma democracia liberal, temos eleições, podemos mudar se quisermos”. Mas, como Fernando Henrique Cardoso diz, nem sempre as eleições promovem mudanças. Elas podem se tornar meras disputas para o presente. E os governos estão em diferentes estágios de desequilíbrio. Logo, a calibragem é diferente. A China precisa de transparência, responsabilidade e liberdade de expressão. Os EUA precisam de uma perspectiva de longo prazo e um consenso numa democracia dividida entre dois partidos.
Viu Trabalho Interno? No fim do documentário, os principais players da crise financeira continuam no poder, em outros cargos. Quer dizer, o sistema não se corrigiu...
Gardels: Sim, você tem razão. Eles continuam lá. Quando dizemos que a democracia tem dificuldades para se corrigir, há duas razões: o imediatismo político nas eleições (o horizonte de curto prazo dos eleitores) e a plutocracia (o poder do dinheiro, dos interesses particulares, dos lobbies). Democracia supõe que as eleições mudarão um país. Plutocracia, como define Francis Fukuyama, diz que há eleições e ponto. Assim as coisas não mudam, pois os poderosos (Wall Street e os lobistas financeiros, por exemplo) continuam protegendo seus interesses. Barack Obama foi eleito e reeleito. Mas o lobby das armas e dos bancos continua. Não é que o presidente não quer fazer nada. Ele não tem poder para isso, com um Congresso, como Paul Volcker disse, comprado e pago.
No livro, vocês criticam a democracia americana - consumista, imediatista e midiática. Não só a americana, certo?
Gardels: Nos EUA, a escala é maior. Mas, também podemos ver uma democracia de consumidores na América Latina, onde vocês têm uma classe média emergente e um boom de commodities com a Ásia. O perigo é que os frutos desse boom não estão sendo investidos no futuro. As pessoas consomem no presente e os governos não investem em infraestrutura e projetos de longo prazo. Penso que as democracias sempre se focam mais no presente. É uma democracia da coca diet, em que mídia, mercado e política dizem: “Aproveite, consuma agora, sem calorias, nem custo”.
Berggruen: A América Latina é um laboratório político. Alguns países estão muito bem, outros não. Para uma sociedade funcionar, é preciso ter um equilíbrio entre instituições, poder Executivo e sociedade civil. Mas, às vezes, há uma tentação ao populismo. Dar benefícios econômicos para todos, de olho nas próximas eleições, é uma tentação muito alta. Não só na América Latina, mas no mundo todo, é injusto esse tipo de populismo em países em desenvolvimento, em sociedades não informadas, em nações ainda imaturas. A democracia nesses lugares mais atrapalha que ajuda. Noutros países, na Ásia, essa tendência é menor. Você pode dizer que não são governos democráticos, por dar muito poder a um partido (como o Japão) ou a um regime (como Taiwan). Mas eles levaram esses países ao crescimento, enquanto os cidadãos não estavam preparados para lutar por si mesmos. Quando esses países amadureceram, tornaram-se muito mais democráticos.
O sr. está dizendo que, às vezes, a democracia não é justa?
Gardels: Vamos deixar claro que estamos falando da democracia concretamente, na realidade - e não da ideia de democracia.
E o mercado? Também é injusto?
Gardels: O capitalismo e o mercado, por sua própria natureza, geram tanto oportunidade quanto desigualdade. Equilíbrio não é equalizar tudo, mas garantir que a mobilidade social e a oportunidade não fiquem estagnadas. Nos EUA, estamos rastejando em direção a uma plutocracia, em que a mobilidade parou. E no topo está só um grupo cada vez menor e cada vez mais rico. A natureza criativa-destrutiva das mudanças tecnológicas também acelera essa lacuna.
O que pensam sobre os jovens articulados em movimentos como o Occupy Wall Street?
Gardels: É uma articulação importante e legítima. Numa democracia, todos têm uma voz, e devem ter o direito de expressá-la. Mas é preciso pensar que a política é como editar um jornal. Você olha para o mundo, decide o que é importante e o que não é. Você edita a realidade. Tanto na política quanto no jornalismo é preciso alargar a perspectiva da sociedade, e não estreitá-la. Penso que as mídias sociais tendem a estreitar a visão, pois as pessoas se conectam com amigos e procuram informações específicas. E, sobre os movimentos sociais, como na Praça Tahrir e no Zuccotti Park, sempre cito o cartum argentino Mafalda: “A questão não é quebrar as coisas em pedaços. A questão é o que fazer com os pedaços”. As mídias sociais quebram tudo em pedaços, mas não sabem o que fazer com eles. Como diz Mark Zuckerberg: “Vamos quebrar tudo. Não precisamos de políticos e profissionais. Vamos nos empoderar”. Isso é bom, pelo poder conquistado pelas pessoas. Mas que efeito tem?
Mas esses movimentos não se limitaram às mídias sociais. As pessoas realmente estavam lá, nas ruas, nos parques, nas praças.
Gardels: Sim. Mas, assim como a volatilidade das mídias sociais, o Occupy Wall Street e a Praça Tahrir se dissiparam. Se você não tiver uma narrativa que mova as pessoas para frente, o movimento desaparece. O mesmo aconteceu com Beppe Grillo na Itália, um comediante que recebeu 25% dos votos nas últimas eleições e não sabe o que fazer com os pedaços. Em cada caso, as pessoas estavam expressando um sentimento maior: injustiça contra a sociedade na crise financeira, insatisfação com os políticos italianos corruptos, revolta contra o ditador Hosni Mubarak. É preciso pegar isso e transformar numa narrativa comum.
Vocês são democratas ou republicanos?
Berggruen: Nenhum dos dois. Prefiro manter independência política.
Gardels: Republicano não sou. Mas sabe o que somos? A terceira via. Não ideologicamente, mas como alternativa para encontrar o tal equilíbrio que comentávamos.
Mas disputariam cargos políticos?
Berggruen: Não. A ideia é promover mudanças sem ficar preso ao jogo político.
Gardels: Já estive na política, ao lado de Jerry Brown. Mas não voltaria. Esse é um ponto importante. A habilidade de pensar o futuro desapareceu dos governos. Mesmo os líderes mais inteligentes não sabem mais aonde ir. É muito importante ter movimentos da sociedade civil, como as instituições de que participamos, o 21st Century Council e o Council for the Future of Europe, com ex-líderes e outros pensadores, para ampliar a perspectiva. Não dá para promover muitas mudanças quando você está no poder sozinho.
Têm utopias?
Berggruen: Nosso trabalho é metade utópico e metade não. A própria ideia de equilíbrio é uma utopia, pois o mundo é dinâmico. Ao mesmo tempo, queremos um governo democrático responsável e todos os elementos que comentamos antes, a fim de melhorar o mundo. Isso é bastante real.
Gardels: Dizem que o progresso é o homem caminhando para frente, para a utopia do final da história. Propomos algo diferente. Podemos chamar de harmonismo, uma alternativa para a ideia estreita do progresso. É a luta por um equilíbrio, em que Oriente e Ocidente se englobem.
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