domingo, 23 de dezembro de 2012

'Desafio é STF manter a jurisprudência', por Flavia Piovesan


ISADORA PERON - O Estado de S.Paulo
O fortalecimento do Poder Judiciário e a mensagem de que "ninguém está acima da lei" são os principais legados deixados pelas 53 sessões do julgamento do mensalão. A avaliação é da professora de Direito Constitucional da PUC-SP Flávia Piovesan. Ela, no entanto, diz que ainda é cedo para mensurar todos os impactos que o processo mais longo já julgado pelo Supremo Tribunal Federal terá na esfera jurídica brasileira. "O julgamento do mensalão terá consequências outras que hoje ainda é prematuro prever." Para Flávia, as decisões do STF contribuirão para diminuir a corrupção no Brasil. "Ficou mostrado que o crime não compensa."
O julgamento do mensalão chegou ao fim na segunda-feira, após quatro meses e meio de duração. Dos 37 réus, 25 foram condenados. O tribunal também definiu que os três deputados federais condenados terão de deixar seus mandatos.
Terminado o julgamento do mensalão, qual o legado da Ação Penal 470?
O fortalecimento do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, que sai engrandecido no campo da sua credibilidade, legitimidade e independência. O segundo legado é o reforço do princípio republicano, de que ninguém está acima da lei. A maioria da população estava descrente, jamais poderia imaginar que um (ex) presidente da Câmara (o petista João Paulo Cunha) ou uma presidente de um banco (Kátia Rabello, do Banco Rural) seriam punidos. O que se extrai desse julgamento é que ninguém está acima da lei. O terceiro ponto interessante é que o Supremo também trouxe inovações em relação a sua jurisprudência.
A sra. pode citar algum exemplo de nova jurisprudência?
Principalmente ao que diz respeito ao critério de apreciação da prova, quando aplicou a teoria do domínio de fato. Em crimes como corrupção ativa e corrupção passiva, é difícil ter uma prova documental do corrupto, então você tem que efetivamente construí-la a partir do acervo probatório, de forma concatenada, como se fosse um quebra-cabeça.
O Supremo aplicou corretamente a teoria do domínio de fato?
Pelo que eu pude constatar, sim, a denúncia teve plena consistência. Mas, por outro lado, eu também acho que não deveria ser da competência do STF a jurisdição em matéria penal, embora o STF tenha sido eficiente nesse caso. Mas eu sou defensora do Supremo como corte constitucional. Acho que não tem sentido, por exemplo, o STF ouvir testemunhos, o tribunal não está preparado, não tem estrutura.
O que achou da decisão sobre a perda automática dos mandatos dos parlamentares?
Eu aplaudo. A Constituição prevê no artigo 15 a suspensão dos direitos políticos para quem sofra condenação criminal transitado e julgado. Além disso, nós tivemos a Lei da Ficha Limpa, que prevê que quem tem a ficha-suja não pode nem se candidatar. Então acho uma decisão razoável, adequada, em consonância com a Constituição.
Essa decisão não coloca a Corte numa posição que se sobrepõe aos demais Poderes?
Não. Eu costumo dizer que uma democracia se mede pela independência do Poder Judiciário, porque é o poder desarmado que deve ter a última palavra na democracia. Não é a bala, não é o tanque, é o direito. A caneta do Poder Judiciário merece triunfar no estado democrático de direito.
Como a sra. vê a crítica recorrente de que existe uma 'judicialização' da política?
Eu entendo que muitas vezes temas intricados, polêmicos e controvertidos são deslocados para o Judiciário. O princípio básico do Judiciário é o da inércia da jurisdição. Ou seja, o Judiciário só reage quando provocado. O que está havendo é o aumento do grau de provocação do Judiciário. Muitas vezes pela paralisia do Legislativo, em razão de temas polêmicos. Um exemplo: a questão na anencefalia fetal é um tema que o Legislativo não resolveu, pois se criou um impasse por conta das bancadas religiosas do Congresso. Outro tema: reconhecimento das uniões homoafetivas. Foi mais um assunto que o Legislativo se dividiu e não teve o ônus da decisão parlamentar, então o tema foi desviado para o Supremo. Ou seja, muitas vezes é a própria política que busca resposta na Justiça.
Os petistas condenados sustentam que houve um julgamento político, cujo resultado foi influenciado pela imprensa e pela opinião pública.
Eu não acolho essa crítica. Não tive acesso aos autos, mas houve o fornecimento de uma denúncia muito bem elaborada, com provas contundentes, baseada em farto acervo probatório. Houve, sim, um processo que durante quatro meses tomou dia e noite da Corte suprema, de todos os ministros, que foi monitorado pela sociedade civil. Além disso, todas as garantias foram asseguradas aos acusados. Do meu enfoque, não houve qualquer vício ou fratura capaz de comprometer esse julgamento histórico.
Houve muitas críticas ao fato de as sessões serem transmitidas pela TV. Isso influencia no resultado?
Não. Eu defendo a transmissão, apesar das críticas. Eu entendo que isso colabora para a transparência e, com o julgamento do mensalão, o Supremo chegou às casas das pessoas, as pessoas seguiram o julgamento até como se fosse uma novela. Eu, que sou professora há 21 anos, jamais vi o Supremo ser um órgão de tanta acessibilidade para a população. O sintoma disso é a popularidade do presidente Joaquim Barbosa.
As discussões por vezes calorosas entre os ministros, principalmente entre o revisor e o relator, depõem contra a instituição?
Isso foi lamentável. É que foi um caso dos mais relevantes, dos mais estressantes, com uma carga de ansiedade e de trabalho gigantescas. Mas é fundamental que o Judiciário seja guiado pela lucidez, pelo equilíbrio, pela serenidade, evitando que os ânimos se acirrem. Isso que ocorreu é lamentável, mas não macula a imagem do Supremo. Acho que não chegou a esse grau. Mas o debate tem que ser de ideias, não de acusações pessoais, bate-boca. Isso realmente não é adequado para um palco que não é uma mesa de bar, mas sim a Corte suprema.
Qual a sua avaliação sobre o fato de os ministros optarem por aplicarem penas máximas a réus primários para evitar prescrição, quando o que se costuma fazer é optar pela mínima?
Na parte da dosimetria, houve uma posição oscilante do Supremo em relação ao tamanho das penas, o que mostra que a Corte não está familiarizada com essa questão. A primeira condenação proferida pelo Supremo tendo como foco um deputado federal ocorreu em setembro de 2008.
O Supremo nunca mandou prender um réu logo após o julgamento, antes do transitado em julgado. Como avalia essa questão?
Acredito que o transitado em julgado, até por uma questão de segurança jurídica, seja fundamental. Mas se houver o risco de prescrição, eu entendo que essa medida extrema deveria efetivamente ser acolhida.
O processo deveria ter sido desmembrado? O STF errou em não ter tomado essa decisão?
Em primeiro lugar, eu sou contra o foro privilegiado, mas creio que nesse caso o Supremo deu a decisão adequada. O fato é que ainda é cedo para avaliar todos os impactos do julgamento. Acredito que o julgamento do mensalão terá consequências outras que hoje ainda é prematuro prever. Eu creio que agora o desafio do Supremo será manter essa jurisprudência, manter essa posição. Creio que haverá um impacto na jurisprudência dos demais tribunais, porque tem um efeito catalisador em relação aos demais órgãos jurisdicionais. Esse julgamento também levará a discussões importantes, como o fim do foro privilegiado. Sem falar que a composição do Supremo começou a ser questionada. Eu defendo que haja mandato para os ministros, acho que isso é salutar. Por fim, acho que o julgamento do mensalão contribuirá para a diminuir a corrupção no Brasil. Ficou mostrado hoje que o crime não compensa.

'Temos de atender à nova dinâmica social' Vogt sobre cotas


O Estado de S.Paulo
Ex-reitor da Universidade Estadual de Campinas, o linguista e poeta Carlos Vogt, de 63 anos, é uma peça-chave no projeto que propõe a criação de cotas de 50% das vagas para alunos de escolas públicas nas universidades paulistas - dentro desse porcentual, há uma reserva de 35% para estudantes que se declararem pretos, pardos e indígenas. Vogt foi não só um dos formuladores do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (Pimesp), lançado na quinta-feira pelo governador Geraldo Alckmin, mas também preside a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), provedora do conteúdo online do Instituto Comunitário de Ensino Superior (Ices).
Principal inovação do Pimesp, o instituto, inspirado nos colleges americanos, oferecerá cursos de dois anos a alunos de escolas públicas. Servirá de nova porta de entrada nas universidades, uma opção ao vestibular. "Fiz questão de citar o Darcy Ribeiro no lançamento do projeto porque ele era um visionário. Acho que o Pimesp também é", disse Vogt na entrevista, concedida a Sergio Pompeu:
No lançamento do Pimesp, vocês evitaram o termo cota, que normalmente causa polêmica. Mas o fato é que o projeto prevê reserva de vagas nas universidades para alunos de escolas públicas e por critérios raciais. A reação de quem é contra essa reserva não virá de qualquer forma, mesmo sem o uso da palavra cota? E como vocês pretendem lidar com isso?
Há duas coisas aqui. A primeira é que, embora isso não esteja na palavra cota do ponto de vista semântico, ela hoje carrega também a conotação de uma entrada automática nas instituições, por critérios de raça, por exemplo. Esconde um pouco aquilo que sempre se buscou preservar, que são os critérios de qualidade, de mérito, no processo de inclusão. Acho que é nesse sentido que se procura aqui evitar o uso da palavra cota. Mas também porque trabalhar com o conceito de metas, metas socioétnicas que procuram responder a essa demanda que hoje está no âmbito federal legitimada e legalizada. Procuramos associar à realização dessas metas estratégias que preservassem os predicados de mérito que as nossas instituições procuram defender. Por que nós nos preocupamos com essa questão do aluno da escola pública? Você tem no Estado cerca de 440 mil alunos saindo do ensino médio todo ano. Destes, 360 mil saem das escolas públicas e 80 mil das privadas. Nas universidades você tem na média uma inversão. Acho que o Estado está tomando uma medida do ponto de vista da formulação de uma política pública. E a percepção que a população terá disso é muito importante.
Mas o senhor não acha que setores da sociedade vão reagir quando ficar claro que em cursos muito concorridos, como Medicina, candidatos hoje favoritos no vestibular, alunos de escolas privadas de elite, só vão concorrer à metade das vagas?
Medicina sempre é um dos focos dessa discussão, assim como Engenharia. Nas nossas análises dos números, você já tem coisas interessantes hoje. Pegue por exemplo Engenharia Civil em São Carlos. O delta da Engenharia lá para alunos de escolas públicas, o que falta para atingir a meta, são 14 alunos. O delta para escola pública mais a cota de pretos, pardos e indígenas (PPI) é de 8 alunos. Há casos em que esses números são maiores, então são metas mais compridas para ser cumpridas. Mas tem uma mapa da situação de cada curso em cada universidade. Acho que isso nos permitirá montar uma operação do programa bastante interessante.
A explicação faz sentido, mas tem aquele aspecto: todo mundo gosta de inclusão, até começar a mexer com o próprio quintal. Sem enfatizar excessivamente esse aspecto, certamente é algo que vocês discutiram na montagem do Pimesp.
Sim. O Pimesp implica não só uma mudança de atitude, mas uma mudança de atitude em um contexto cultural novo. Porque você tem efetivamente uma realidade social no País em transformação, com uma classe média nova se constituindo. Há uma dinâmica social nova, porque uma das características da classe média, de um modo geral, é o desejo de mobilidade. E o sentido de mobilidade. Tem essa coisa, culturalmente falando, de: "Eu faço trabalho braçal, mas quero meu filho na escola, quero ele formado, com diploma". É o que caracteriza a história de tantos de nós. Uma dinâmica em que na segunda ou na terceira geração já mudou tudo. Um dos caminhos para essa mobilidade nós sabemos, que é clássico, é exatamente o diploma de ensino superior. Como é que você consegue oferecer formas de atendimento dessa demanda e ao mesmo tempo mantém esses princípios de qualidade, de mérito etc. Acho que a proposta que a gente vem discutindo procura exatamente essa conciliação. Por outro lado, é claro que você tem razão. Onde houver uma resistência, digamos, empedernida, ideológica, conservadora, o pessoal vai dizer: "Bom, mas isso é reserva". É mesmo uma forma de garantir o acesso a essa população. Mas que exige a satisfação das condições de qualidade que a gente quer levar em conta.
Vocês chegaram a considerar a hipótese de atrelar a cota à renda familiar? Acoplado a isso: se não tem limite de renda, vai fazer sentido para muito mais gente de classe média migrar para a escola pública. Pode haver uma explosão da demanda, por exemplo, nas escolas técnicas, as Etecs?
Duvido um pouco, porque hoje os porcentuais que faltam, o delta para você cumprir a meta dos 50% do Pimesp, não são nada absurdos. Hoje no Centro Paula Souza (responsável pelas Etecs e pelas Fatecs, faculdades de tecnologia) 75% dos alunos vêm da escola pública; na Unesp, é 39%; na Unicamp, 31,6%; e na USP, 28%. Então, são metas realizáveis, não é algo que vá provocar um choque.
Como será o trabalho da Univesp nesse programa?
Vamos trabalhar da mesma forma que já fazemos hoje nos cursos semipresenciais que oferecemos em parceria com a USP e a Unesp. Eles têm uma distribuição entre atividades presenciais e virtuais, utilizando os ambientes de aprendizagem da internet e intensamente a nossa Univesp TV. Para isso funcionar é preciso que tenhamos polos distribuídos pelas cidades que funcionam como referências para regiões. E trabalhamos com a ideia de que a distância para que os alunos participem das atividades presenciais não seja superior a 100 quilômetros. Vamos organizar o curso de maneira a utilizar toda a capilaridade que existe hoje já na distribuição das Fatecs e das Etecs no Estado. Só de Fatecs tem 52. E a capilaridade da Unesp, que está distribuída em 34 campi. Temos ainda as instalações da Unicamp e da USP e, se necessário, dos municípios. A organização dos polos varia de curso para curso, mas as turmas idealmente têm 25 alunos, embora possam chegar a 30 e até mesmo a 50. Eles precisam ter laboratórios de informática, com equipamentos, acesso à internet, monitor de TV com antena parabólica por causa dos programas da Univesp TV, e os monitores e tutores (nós chamamos de mediadores), que fazem o acompanhamento das atividades desenvolvidas nos polos. Estamos mexendo com a concepção do ensino. Estamos criando uma nova modalidade de ensino superior e adotando o uso intensivo das tecnologias, algo inevitável. Nossos conteúdos lá da Univesp TV já foram vistos perto de 5 milhões de vezes no YouTube.
Vocês vão produzir mais com foco voltado para o Ices? Faz sentido colocar conteúdos de revisão do ensino médio ordenadamente na internet, divulgando para estudantes que ainda estão no ensino médio que querem se aprimorar?
A ideia é essa, tornar todo esse material disponível. Claro que, para cumprir formalmente o curso no Ices, o aluno precisa estar selecionado. Mas o acesso ao material será público.
É possível imaginar que um estudante que já viu um curso, de Cálculo, por exemplo, quando estava no ensino médio possa, depois de aceito no Ices, chegar e dizer: "Olha, este curso aqui eu já assisti. Podemos passar direto para a etapa da avaliação?"
É possível. Ele pode apresentar, de alguma forma, um atestado de conhecimento, por prova ou por desempenho, seja como for, aí é uma questão de pensar. É claro que existe essa possibilidade, sem dúvida.




'Não se adota um experimento como política', diz Simon Schwartzman

Especialista defende as cotas, mas acha que modelo proposto pelo Estado deveria ser testado antes

24 de dezembro de 2012 | 4h 31
Sergio Pompeu - O Estado de S.Paulo
Um dos mais respeitados pensadores da educação no País, o sociólogo Simon Schwartzman está fazendo um giro pelos Estados Unidos e pelo Canadá. Acompanhou a distância o lançamento do Pimesp, programa que cria cotas de 50% para alunos de escolas públicas nas universidades paulistas.
Para Simon Schwartzman, universidade deve abrir para setores da sociedade - Simone Marinho/Agência O Globo
Simone Marinho/Agência O Globo
Para Simon Schwartzman, universidade deve abrir para setores da sociedade
Para Simon, já na concepção o Pimesp parece melhor que o programa de cotas federal, porque propõe a criação de uma nova modalidade de curso, inspirado nos colleges americanos, para preparar o aluno saído da escola pública para o ensino superior. Mas ele adverte para o risco de se adotar em larga escala um projeto ainda não devidamente testado. Simon lembrou que o embrião do college paulista é um projeto adotado na Unicamp há dois anos, com turmas de apenas 120 alunos. "É um experimento e você não pode adotar um experimento como política."
Qual é a impressão do senhor sobre o Pimesp?
Simon Schwartzman - O sistema de ensino superior paulista em geral precisa de mais inclusão. A situação hoje é que as universidades recebem 10% da receita do Estado e atendem um número relativamente pequeno de estudantes. Isso é difícil de ser mantido; elas precisam se abrir mais, procurar mais setores da população. O formato proposto em São Paulo é mais interessante do que o federal, que simplesmente estabeleceu uma cota e se limitou a isso. No caso de São Paulo eu vejo dois aspectos meritórios: um é esse experimento no nível de um tipo de college, outro é a ideia de que você vai dar apoio financeiro a estudantes de baixa renda, que precisam disso para estudar. Esses dois elementos dão ao projeto paulista um aspecto bastante interessante.
O senhor não tem reservas ao princípio das cotas em si?
Simon Schwartzman - Acho que a ideia de uma política de ação afirmativa, de fazer um esforço adicional para buscar estudantes que não tiveram oportunidade de fazer uma boa escola, é correta; é algo que precisa ser feito. A universidade não pode simplesmente se fechar e dizer: 'Bom, não chegou aqui capacitado não entra'. A universidade tem a obrigação de sair em busca de estudantes que se beneficiariam da educação superior mas não passariam no sistema tradicional de avaliação. Na verdade, a gente sabe que esse sistema tradicional não é tão perfeito assim para selecionar os estudantes. Então, o movimento de ação afirmativa nesse sentido é uma coisa que eu acho correta. Agora, a maneira como isso está sendo feito é que é complicada. Porque não se sabe muito bem de onde vêm esses números (das metas do Pimesp) e a experiência do college ninguém tem no Brasil. As experiências do chamado ciclo básico do ensino superior no Brasil nunca deram muito certo. Não sei se as universidades paulistas fizeram uma avaliação dessas experiências do passado. Então não sei se esse modelo de agora, do college com dois anos, vai mesmo funcionar. A outra coisa que eu sempre achei absurda é usar critérios raciais nesse tipo de ação afirmativa. Mas essa é uma discussão da qual eu já desisti. Porque no Brasil parece que há uma unanimidade de que isso deve ser feito. Continuo achando que não deveria, mas aí sou voto vencido.
O college supostamente será misto, com conteúdos presenciais e online. Embora as possibilidades do online sejam reconhecidas por todos, o problema é que a parte presencial também é digital, o aluno vai ao polo e assiste material previamente preparado. Não falta professor aí?
Simon Schwartzman - Não conheço muito bem a experiência de Campinas, sei que lá já estão fazendo isso há algum tempo. Mas seria importante avaliar bem essa experiência, que eu tenho impressão que é de onde vem essa ideia (do Pimesp). São coisas que têm de ser experimentadas, avaliadas; fazer um pouco e ver se dá certo. Se der certo, você amplia, se não der certo, modifica. A USP tem uma experiência fracassada de criar uma entrada alternativa para estudantes mais pobres que é a USP Leste. Aparentemente não funcionou. Não teve o papel que a USP achou que ia ter. Então me preocupa um pouco que a universidade, talvez pressionada pelo contexto político, tenha se precipitado ao já anunciar um programa que vem com todos esses números e metas, quando poderia ter experimentado ainda, para ver o que tudo isso significa.
O programa da Unicamp pegou o melhor aluno no Enem de cada uma das escolas públicas de Campinas. Formou um grupo de 120 alunos e os resultados são relativamente bons. 
Simon Schwartzman - Campinas é isso, um experimento. Eles estão trabalhando com um grupo selecionado de estudantes, que, embora possam não ter um desempenho escolar excepcional, se destacam nas suas turmas, então a chance de que tenham potencial é boa. E mesmo assim os resultados são da ordem de 50% (em termos de eficiência). Acho que vale a pena entrar por esse caminho, mas não pode ser feita uma coisa precipitada. O uso dos meios a distância, digitais, é em princípio útil. Mas tem de estar associado a bons professores, a bons monitores, alguém que acompanhe o aluno pessoalmente. Você não substitui a relação pessoal.
A ideia é adaptar os estudante ao ambiente do ensino superior presencial. Como fazer isso sem eles serem 'apresentados' à figura do professor universitário?
Simon Schwartzman - Tem uma coisa de cultura. Se o aluno optar por entrar na universidade, ele vai para um outro ambiente. E a cultura desse outro ambiente você aprende com os outros, na convivência com os professores, com os colegas. É muito difícil você transmitir uma cultura diferente para pessoas que não tiveram nada disso antes, tiveram uma educação básica de má qualidade, vieram de um contexto social pouco intelectualizado. E ainda fazer esse processo a distância? De novo: o digital é muito importante como um meio auxiliar, mas ele não substitui o professor em sala de aula. Em todo caso, são coisas novas, que você tem de experimentar. É um experimento, e você não pode adotar um experimento como política.
Um possível mérito do college é a oportunidade que ele traz de desengessar o ensino superior, ampliando o leque de opções para os alunos. Como o senhor vê isso? 
Simon Schwartzman - É o famoso modelo de Bolonha, que os países da Europa estão adotando com alguma dificuldade, muito baseado nos modelos inglês e americano. Um ponto fundamental é que as pessoas são muito diferentes, pela motivação, pelo interesse, pela formação. Por isso você precisa criar no college um leque de alternativas muito grande. O aluno que faz o college e vai para a Fatec em lugar de seguir para a universidade não fez isso porque fracassou. Você não pode colocar desse jeito. É uma opção. Se o negócio dele não é matemática nem literatura, e sim mecânica ou outra coisa prática, ele vai caminhar para isso. Quem entrar no college para se preparar para uma carreira médica não vai fazer a mesma preparação do aluno interessado em engenharia. Esse é o modelo que pode funcionar.

Quatro Newtowns por dia


JULIO JACOBO WAISELFISZ É COORDENADOR DA ÁREA DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA FLACSO , (FACULDADE LATINO-AMERICANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS), PESQUISADOR DO CEBELA (CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS LATINO-AMERICANOS) - O Estado de S.Paulo
JULIO JACOBO WAISELFISZ
De tempos em tempos ressurge a discussão sobre o controle das armas de fogo. E ressurge em momentos dramáticos: quando uma chacina perpetrada por um civil com uso ostensivo de armas de fogo irrompe na consciência da população quebrando a aparente naturalidade de violência estimulada pela circulação e/ou utilização das armas em nosso cotidiano. Foi assim no massacre da escola Tasso de Oliveira, no Realengo, Rio, em abril de 2011, quando foram assassinados 12 adolescentes. Ou na recente tragédia de Newtown, Connecticut, com 20 alunos e 6 adultos massacrados. Ou ainda outras.
Mas, no meio dessa discussão, convém ter em conta alguns dados fundamentais do Brasil. Um estudo realizado pelo Iser/Viva Rio estima que no País existam 15,2 milhões de armas de fogo em mãos privadas: 6,8 milhões registradas e 8,5 milhões não registradas, 3,8 milhões em mãos criminosas.
Esse robusto arsenal guarda correspondência com a mortalidade que origina. Os registros do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde permitem verificar que, entre 1980 e 2010, 741.771 cidadãos morreram por disparos de algum tipo de arma de fogo efetuado por outrem com a intenção de matar. Cifra bem superior às de muitos conflitos bélicos no mundo.
Em 1980, as vitimas foram 7.436. Em 2010, 36.792: um aumento de 395%. Nesse período as taxas de homicídio por armas de fogo passaram de 6,2 por 100 mil habitantes em 1980 para 19,3/100 mil em 2010.
A gravidade desses números fica evidenciada se considerarmos que os 36.792 assassinatos em 2010 representam:
Quatro chacinas de Newtown todos os dias do ano.
Quase um massacre do Carandiru - de 1996, quando morreram 111 detentos - a cada dia do ano.
O maior quantitativo de mortes por armas de fogo registradas no mundo nos últimos anos e um dos cinco maiores do planeta em termos de taxas, segundo os registros do Whosis, sistema de estatísticas da OMS.
Por esses dados, nossas taxas resultam 193 vezes maiores que as da Coreia do Sul ou Hong Kong, 20 ou mais vezes maiores que as de países como Holanda, Espanha Polônia, Inglaterra, Escócia, etc.
A evolução ao longo das três últimas décadas não foi homogênea. Entre 1980 e 2003 o crescimento foi acelerado e sistemático: 5% ao ano. Depois do pico de 37,6 mil mortes em 2003, os números em um primeiro momento caíram para 34,5 mil, para depois ficar oscilando na faixa de 36 mil mortes anuais. O Estatuto e a Campanha do Desarmamento pareceriam ser fatores de peso na explicação dessa mudança a partir de 2003: foi sofreado o crescimento acelerado da mortalidade por armas de fogo, mas não foi suficiente para reverter o quadro.
E quem são essas vítimas?
95% dos assassinados são homens.
Apesar de representar só 27% do total da população, a faixa de 15 a 29 anos de idade concentra quase 60% do total de assassinatos com armas de fogo. Dessa forma, se a taxa total para o País em 2010 foi 19,3/100 mil, a taxa de jovens foi de 42,6/100 mil. Mais do dobro.
Pelos quantitativos de população por raça/cor registrados pelo Censo de 2010, teríamos as seguintes taxas de mortes por armas de fogo:
Brancos: 11,1 em 100 mil.
Negros: 25,8 em 100 mil.
Amarelos: 1,7 em 100 mil.
Indígenas: 5,5 em 100 mil.
Vemos assim que nossos personagens, como nas tragédias gregas, são bem definidos: jovens, negros, do sexo masculino, de baixo nível socioeconômico e educacional e com escassas vias de acesso a benefícios sociais que poderíamos considerar básicos: educação, renda, trabalho, saúde, etc.
E o que agrava o problema?
Facilidade de acesso a armas de fogo. Apesar das penalidades do Estatuto do Desarmamento, continua sendo relativamente fácil adquirir armas no mercado ilegal.
Cultura da violência. Em novembro, o Conselho Nacional do Ministério Público divulgou, para sua campanha "Conte até 10", um estudo sobre a proporção de inquéritos policiais de assassinatos por motivos fúteis/impulso (briga familiar, discussão de trânsito, intolerância religiosa, Lei Maria da Penha, etc.). Concluiu que, dependendo do Estado, entre 20% e 100% dos homicídios foram crimes de impulso ou por motivos fúteis. Essa comprovação permite, com outras evidências existentes, questionar a visão de que a violência homicida é explicada pelas drogas ou pelas grandes organizações criminosas. Sem negar a violência associada às organizações, as evidências apontam que a maior parte é crime de proximidade, em que um familiar, amigo, vizinho empunha uma arma por motivos banais e resolve a situação conflitiva mediante o extermínio do próximo.
Tolerância Institucional. Existem diversos mecanismos pelos quais as instituições que deveriam zelar pela segurança e cumprimento das leis toleram doses relativamente elevadas de violência. Sem esgotar esses mecanismos, um dos mais frequentes é a transformação das vítimas em culpados. Meninos do crack, da rua, viciados, mulheres "que provocam, se vestem como vadias", etc., são uma adjetivação que parece justificar a violência e a morte.
Impunidade. Relatório da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, A Impunidade como Alvo, divulgado em junho, refere-se à meta de concluir 134.944 inquéritos de homicídios dormindo nas delegacias até 2007. Num esforço conjugado e focalizado, reunindo diversos aparelhos, conseguiu-se finalizar os inquéritos e levar 8.287 denúncias à Justiça - 6,1% do total inicial. Considerando-se outras "perdas" - nem toda ocorrência de homicídio se transforma em inquérito policial e nem toda denúncia é acatada pela Justiça e/ou os indiciados são condenados -, teríamos que, no País, em torno de 4% dos homicidas vão para cadeia.
Concordamos com a ideia de que não são as armas que matam. Matam os homens que empunham as armas. Mas as facilidades de acesso e posse, a cultura da violência, a tolerância institucional e a impunidade existentes compõem uma mistura explosiva, cujos resultados são os níveis insuportáveis de violência que devemos enfrentar.