ISADORA PERON - O Estado de S.Paulo
O fortalecimento do Poder Judiciário e a mensagem de que "ninguém está acima da lei" são os principais legados deixados pelas 53 sessões do julgamento do mensalão. A avaliação é da professora de Direito Constitucional da PUC-SP Flávia Piovesan. Ela, no entanto, diz que ainda é cedo para mensurar todos os impactos que o processo mais longo já julgado pelo Supremo Tribunal Federal terá na esfera jurídica brasileira. "O julgamento do mensalão terá consequências outras que hoje ainda é prematuro prever." Para Flávia, as decisões do STF contribuirão para diminuir a corrupção no Brasil. "Ficou mostrado que o crime não compensa."
O julgamento do mensalão chegou ao fim na segunda-feira, após quatro meses e meio de duração. Dos 37 réus, 25 foram condenados. O tribunal também definiu que os três deputados federais condenados terão de deixar seus mandatos.
Terminado o julgamento do mensalão, qual o legado da Ação Penal 470?
O fortalecimento do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, que sai engrandecido no campo da sua credibilidade, legitimidade e independência. O segundo legado é o reforço do princípio republicano, de que ninguém está acima da lei. A maioria da população estava descrente, jamais poderia imaginar que um (ex) presidente da Câmara (o petista João Paulo Cunha) ou uma presidente de um banco (Kátia Rabello, do Banco Rural) seriam punidos. O que se extrai desse julgamento é que ninguém está acima da lei. O terceiro ponto interessante é que o Supremo também trouxe inovações em relação a sua jurisprudência.
A sra. pode citar algum exemplo de nova jurisprudência?
Principalmente ao que diz respeito ao critério de apreciação da prova, quando aplicou a teoria do domínio de fato. Em crimes como corrupção ativa e corrupção passiva, é difícil ter uma prova documental do corrupto, então você tem que efetivamente construí-la a partir do acervo probatório, de forma concatenada, como se fosse um quebra-cabeça.
O Supremo aplicou corretamente a teoria do domínio de fato?
Pelo que eu pude constatar, sim, a denúncia teve plena consistência. Mas, por outro lado, eu também acho que não deveria ser da competência do STF a jurisdição em matéria penal, embora o STF tenha sido eficiente nesse caso. Mas eu sou defensora do Supremo como corte constitucional. Acho que não tem sentido, por exemplo, o STF ouvir testemunhos, o tribunal não está preparado, não tem estrutura.
O que achou da decisão sobre a perda automática dos mandatos dos parlamentares?
Eu aplaudo. A Constituição prevê no artigo 15 a suspensão dos direitos políticos para quem sofra condenação criminal transitado e julgado. Além disso, nós tivemos a Lei da Ficha Limpa, que prevê que quem tem a ficha-suja não pode nem se candidatar. Então acho uma decisão razoável, adequada, em consonância com a Constituição.
Essa decisão não coloca a Corte numa posição que se sobrepõe aos demais Poderes?
Não. Eu costumo dizer que uma democracia se mede pela independência do Poder Judiciário, porque é o poder desarmado que deve ter a última palavra na democracia. Não é a bala, não é o tanque, é o direito. A caneta do Poder Judiciário merece triunfar no estado democrático de direito.
Como a sra. vê a crítica recorrente de que existe uma 'judicialização' da política?
Eu entendo que muitas vezes temas intricados, polêmicos e controvertidos são deslocados para o Judiciário. O princípio básico do Judiciário é o da inércia da jurisdição. Ou seja, o Judiciário só reage quando provocado. O que está havendo é o aumento do grau de provocação do Judiciário. Muitas vezes pela paralisia do Legislativo, em razão de temas polêmicos. Um exemplo: a questão na anencefalia fetal é um tema que o Legislativo não resolveu, pois se criou um impasse por conta das bancadas religiosas do Congresso. Outro tema: reconhecimento das uniões homoafetivas. Foi mais um assunto que o Legislativo se dividiu e não teve o ônus da decisão parlamentar, então o tema foi desviado para o Supremo. Ou seja, muitas vezes é a própria política que busca resposta na Justiça.
Os petistas condenados sustentam que houve um julgamento político, cujo resultado foi influenciado pela imprensa e pela opinião pública.
Eu não acolho essa crítica. Não tive acesso aos autos, mas houve o fornecimento de uma denúncia muito bem elaborada, com provas contundentes, baseada em farto acervo probatório. Houve, sim, um processo que durante quatro meses tomou dia e noite da Corte suprema, de todos os ministros, que foi monitorado pela sociedade civil. Além disso, todas as garantias foram asseguradas aos acusados. Do meu enfoque, não houve qualquer vício ou fratura capaz de comprometer esse julgamento histórico.
Houve muitas críticas ao fato de as sessões serem transmitidas pela TV. Isso influencia no resultado?
Não. Eu defendo a transmissão, apesar das críticas. Eu entendo que isso colabora para a transparência e, com o julgamento do mensalão, o Supremo chegou às casas das pessoas, as pessoas seguiram o julgamento até como se fosse uma novela. Eu, que sou professora há 21 anos, jamais vi o Supremo ser um órgão de tanta acessibilidade para a população. O sintoma disso é a popularidade do presidente Joaquim Barbosa.
As discussões por vezes calorosas entre os ministros, principalmente entre o revisor e o relator, depõem contra a instituição?
Isso foi lamentável. É que foi um caso dos mais relevantes, dos mais estressantes, com uma carga de ansiedade e de trabalho gigantescas. Mas é fundamental que o Judiciário seja guiado pela lucidez, pelo equilíbrio, pela serenidade, evitando que os ânimos se acirrem. Isso que ocorreu é lamentável, mas não macula a imagem do Supremo. Acho que não chegou a esse grau. Mas o debate tem que ser de ideias, não de acusações pessoais, bate-boca. Isso realmente não é adequado para um palco que não é uma mesa de bar, mas sim a Corte suprema.
Qual a sua avaliação sobre o fato de os ministros optarem por aplicarem penas máximas a réus primários para evitar prescrição, quando o que se costuma fazer é optar pela mínima?
Na parte da dosimetria, houve uma posição oscilante do Supremo em relação ao tamanho das penas, o que mostra que a Corte não está familiarizada com essa questão. A primeira condenação proferida pelo Supremo tendo como foco um deputado federal ocorreu em setembro de 2008.
O Supremo nunca mandou prender um réu logo após o julgamento, antes do transitado em julgado. Como avalia essa questão?
Acredito que o transitado em julgado, até por uma questão de segurança jurídica, seja fundamental. Mas se houver o risco de prescrição, eu entendo que essa medida extrema deveria efetivamente ser acolhida.
O processo deveria ter sido desmembrado? O STF errou em não ter tomado essa decisão?
Em primeiro lugar, eu sou contra o foro privilegiado, mas creio que nesse caso o Supremo deu a decisão adequada. O fato é que ainda é cedo para avaliar todos os impactos do julgamento. Acredito que o julgamento do mensalão terá consequências outras que hoje ainda é prematuro prever. Eu creio que agora o desafio do Supremo será manter essa jurisprudência, manter essa posição. Creio que haverá um impacto na jurisprudência dos demais tribunais, porque tem um efeito catalisador em relação aos demais órgãos jurisdicionais. Esse julgamento também levará a discussões importantes, como o fim do foro privilegiado. Sem falar que a composição do Supremo começou a ser questionada. Eu defendo que haja mandato para os ministros, acho que isso é salutar. Por fim, acho que o julgamento do mensalão contribuirá para a diminuir a corrupção no Brasil. Ficou mostrado hoje que o crime não compensa.
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