segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Percepção e realidade


José Roberto de Toledo - O Estado de S.Paulo
2014 chegou antes de 2013. Desde a semana passada, a sucessão de Dilma Rousseff (PT) virou prato principal e é improvável que o cardápio mude pelos próximos dois anos. O molho varia do explícito (o lançamento do presidenciável Aécio Neves pelo PSDB) ao subentendido (a polêmica do pibinho), passando pelo trágico (ascensão e queda do baixo clero da corrupção petista) e o cômico (revista inglesa pedindo cabeça de ministro no Brasil).
A economia - que elegeu FHC, Lula e Dilma - é o ingrediente principal do debate, novamente. A pegadinha é que o gosto popular está cada vez mais distante do palato dos críticos. As diferenças de percepção são tão distintas quanto seus instrumentos de medida. A confiança do consumidor dá picos enquanto as aferições do PIB afundam. Investimentos param ao mesmo tempo que o crédito dispara.
Para cada indicador negativo há um positivo e vice-versa. Depende do gosto do freguês. A produção de automóveis caiu pela primeira vez desde 2002? Mas a taxa nacional de desemprego é a mais baixa desde muito antes disso. Os salários brasileiros crescem duas vezes mais do que a média mundial? Mas o capital estrangeiro foge do Brasil para Índia, China ou aonde seja.
Economistas dizem que os indicadores positivos refletem o passado e os negativos, o futuro. Eles devem ter razão, como tiveram ao prever 10 das últimas 3 recessões.
A piada é gasta porque não há outro ramo de atividade no qual projetar impunemente dê tanto prestígio e dinheiro quanto a economia. Entre 2000 e 2010, as previsões de crescimento do PIB feitas pelo mercado (e publicadas pelo boletim Focus do Banco Central) tiveram um erro médio de mais de 50%. Nove em 10 erraram. Guido Mantega está em linha com seus pares.
Probabilisticamente, se Dilma atendesse a The Economist e decapitasse o ministro da Fazenda, a presidente teria 90% de chance de trocar seis por meia dúzia.
O que tanto mudou desde 2010, quando a revista inglesa enfiou um foguete sob o Cristo Redentor, até a publicação do obituário do PIB brasileiro na semana passada? Foi o PIB ou seu parâmetro de comparação? A bipolaridade eufórico-depressiva parece estar tanto nos olhos de quem vê quanto no objeto da observação.
Aos redatores ingleses resta citar a tirada célebre: "Quando os fatos mudam, eu mudo minha cabeça, o senhor não?" A frase é ora atribuída a John Maynard Keynes, ora a John Kenneth Galbraith. Importa menos o nome do que o fato de que o autor é economista.
Economia eleitoral
Nada se correlaciona mais à popularidade presidencial do que a confiança do consumidor. Ambas estão ascendentes, apesar do pibinho. Como pode ser? Porque o consumidor avalia que sua situação financeira está melhor do que há seis meses, e acha que vai melhorar ainda mais no futuro próximo - puxada por emprego e salários em alta. É portanto um jogo de percepção e expectativa.
O PIB vai seguir a confiança do consumidor, como quer o governo, ou o consumidor vai acabar se convencendo de que o melhor já passou e trocar de canoa, como sonha a oposição? As expectativas são, em boa parte, autorrealizáveis. Portanto, vencer a batalha de versões sobre a economia é começar bem a guerra sucessória.
Chefe do PSB, Eduardo Campos se antecipou dizendo a empresários descontentes com a economia que falta rumo estratégico ao país - implícita é sua oferta por nova bússola. Campos morde e assopra. Pode ser o "tertius" que forçaria um segundo turno em 2014, ou o aliado que facilitaria a eventual reeleição de Dilma. Tudo depende das circunstâncias, ou seja, da economia.
O lançamento de Aécio foi quase um empurrão. Fernando Henrique Cardoso jogou o senador mineiro na arena. Aécio gaguejou, mas não tem opção. Se não mostrar gana para ser candidato agora, quando o PSDB não tem alternativas, vai perder o trem da história. Não assumiu o discurso, mas já age como candidato.
A redução das tarifas de energia elétrica é um ato de campanha de Dilma pela reeleição. Ao gorarem o plano presidencial, as concessionárias geridas por governadores tucanos defenderam o interesse de seus donos mas alimentaram o discurso petista de que o PSDB é demofóbico quando se trata de economia popular. 2014 já começou, mas passa pela economia de 2013.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Eram os jagunços terroristas?


SYLVIO BACK | CINEASTA, POETA E DIRETOR DE 38 FILMES, ENTRE ELES O CONTESTADO - RESTOS MORTAIS
História, memória, pretérito, pra que te quero? No entanto, há que se exigir “luz, mais luz!”, como balbuciou Goethe (1749-1832) no leito de morte. Sim, os insólitos e decisivos episódios de um dos mais desfrutáveis contornos anímicos do País - inaudita mescla de civilização e barbárie nos cafundós de Santa Catarina e do Paraná - permanecem soterrados a sete palmos pela tortuosamente amnésica História do Brasil. Quando não, enovelados por uma absoluta indiferença e assaz suspeita omissão.
Contestado: reproduçao de foto do arquivo do exército do Rio de Janeiro - Celso Junior/Estadão
Celso Junior/Estadão
Contestado: reproduçao de foto do arquivo do exército do Rio de Janeiro
A Guerra do Contestado (1912-1916), o maior levante bélico no campo brasileiro do século 20, verdadeira guerra civil nos sertões sulistas, em plena efeméride de seu centenário, vem se transformando em um zumbi do nosso passado recente. Suas perturbadoras vísceras morais, míticas, políticas e ideológicas, que continuam a nos assombrar, estão a exigir exorcização que a catapulte à pertinência e à atualidade.
A 20 de outubro de 1916, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, sob a égide do presidente da República, Venceslau Brás, o presidente de Santa Catarina, Felipe Schmidt, e Afonso Camargo, presidente do Paraná, “... inspirados no amor à paz...”, firmaram pacto que, aparentemente, selou o fim das sangrentas hostilidades nas e entre as então províncias (Estados) vizinhas.
Era uma paz enganosa, porque nos dois anos subsequentes, por meio das chamadas “varreduras”, sob o comando do então capitão “Rosinha” (José Vieira da Rosa, 1869-1957), da Polícia Militar de Santa Catarina, perpetrou-se um autêntico genocídio, com a perseguição e matança de centenas de rebeldes e caboclos indefesos. Nessas varreduras, oficialmente conhecidas no meio militar como “raides proveitosos” (sic), não havia diálogo entre o caçador e o caçado, apenas o matraquear do tiroteio, o pavor de velhos inermes e o choro de mulheres e crianças. Massacres do tipo do “My Lai” vietnamita (1968), avant la lettre.
Nestes seus cem anos, não se espantem, a Guerra do Contestado debate-se, misteriosa e sintomaticamente, imersa no mais inacreditável esquecimento factual e investigativo, que, aliás, sempre lhe maculou a imagem e o reconhecimento de várias gerações de historiadores. O que, afinal, não é nenhuma novidade.
Essa omissão e descaso ativos nada mais são do que um genérico regional (leia-se, provinciano) com que nossa historiografia, quase toda ela de extrato acadêmico, com as exceções de praxe, imprime seu enfoque unívoco, e ideologicamente (à direita e à esquerda) chamuscado, sobre um passado que lhe é estranho, ainda que entranhado. Daí o Contestado ter-se transformado num autêntico buraco negro da História do Brasil!
Quase sempre, a pegada desses escribas de plantão é o achatamento e a desqualificação da Guerra do Contestado. Quando não, utilizam-na como caricatura ideológica que faça coro com um seu ideário de toque político raso e radical, tentando, a todo custo, ancorá-la em qualquer agito similar que surja no campo. Ou, então, ignorar sua estatura geopolítica e prevalência na fecundação do moderno capitalismo no Brasil, para obliterar seu complexo substrato ideológico-institucional em plena neo-república.
E, ainda, para subestimar ou superestimar o amálgama místico-religioso (o “espírito de irmandade”, a submissão voluntária e a autoridade castrense que vigiam dentro dos redutos), ou para edulcorar os flagrantes de delinquência e ilícitos de nítido caráter terrorista que marcaram a ferro e fogo milhares de viventes e incontáveis interesses locais, nacionais e internacionais.
Ali, no Contestado, ao sul e a oeste das então fluídicas fronteiras entre Santa Catarina e Paraná, deu-se um embate fratricida de quatro anos; ali, em torno de 7 mil homens, um terço do efetivo do Exército brasileiro, promoveu um morticínio exemplar e único no século 20, sob o comando do general Setembrino de Carvalho (1861-1947), coautor da tragédia de Vaza-Barris havia menos de duas décadas. E, onde, entre mortos e feridos, como em Canudos, se revezavam na brutalidade, espelhando-se mutuamente na sangueira e na insensatez, cada um empunhando a “sua” bandeira da verdade secular e de transcendência messiânica.
Incontornável: no Contestado matou-se à bala, à baioneta e na degola, e tombaram de fome, doençaria e perdição, entre soldados, caboclos e fanáticos, mais de 20 mil pretos, cafuzos, bugres e índios aculturados, imigrantes europeus (poloneses, alemães, ucranianos, rutenos), retirantes e trânsfugas de todos os grotões miseráveis do País. Hoje, centenas de cruzeiros sem nome e data, às vezes emoldurados com fitas coloridas, à sombra dos verdejantes pinheirais remanescentes e das sombrias florestas de Pinus elliottii do planalto catarinense, ainda clamam por justiça e reparação histórica.
No Contestado, a refrega teve inequívocos lances separatistas. Talvez resida aí uma das razões pelas quais se teme tanto mexer e rever o conflito na sua integridade holística, denunciando executantes e mandantes, desencavando valas crematórias, lápides e necrológios. A caudilhesca Revolução Farroupilha (1835-1845), que deu na breve “República Piratini”, era explicitamente autonomista, uma macabra antevisão sesquicentenária do dístico “o Sul é o meu país” - ao contrário do Contestado, onde essa vocação nunca foi coletiva, nem havia unanimidade política quanto a uma possível secessão, e muito menos representou o insumo para a longevidade da desgraceira.
Mesmo que chefetes, ex-lideranças de Gumercindo Saraiva, um dos comandantes da malograda, também separatista, Revolução Federalista (1893-1895), chegassem a propor, em 1914, a criação de um Estado autocrático batizado de “Monarquia Sul Brasileira”, que incorporaria tanto o Paraná como o Rio Grande do Sul, estendendo-se ao Rio de Janeiro. Na “Carta Magna”, que deixa escapar laivos republicanos, além de uma inusitada liberdade de voto, culto e de opinião, sonhava-se até com a criação de um Ministério da Marinha e a anexação da Banda Oriental do Uruguai, “antiga Província Cisplatina”...
Não raro o Contestado é associado à Guerra de Canudos (1896-1897), sendo inclusive chamado, equivocadamente, de “Canudos do Sul”, e faz mesmo algum sentido semântico, pois já nas primeiras notícias de ajuntamentos messiânicos na região, no início do século 20, a expressão veio a lume na mídia. No entanto, o Contestado diferencia-se de Canudos menos pela sua origem igualmente milenarista, como é reconhecido esse surto religioso de deserdados que agem em uníssono almejando uma suposta redenção moral de mil anos.
Tudo atiçado pelo verbo, ora incandescente ora melífluo, de um “messias”, com subtexto cristão revanchista e de restauro de um idílico tempo de benesses e bem-estar geral e perene. Esse “salvador” de homens e almas tanto pode ser um Antônio Conselheiro como os dois “padroeiros” do Contestado, os “sãos” João Maria, histórico e pacifista, e o bruxo incendiário José Maria, de passado dito criminoso, idolatrado por suas mandingas e curas e por arrecadar dinheiro dos caboclos para promover o assentamento fraudulento deles em terras devolutas.
Para higienizar de vez esse caldeirão, o que fazer com os milhares de enjeitados recalcitrantes, como controlar esse lumpesinato enfurecido que se engraçara com o messias em voga, indiferente à interminável pendenga jurídico-institucional entre Paraná e Santa Catarina? O jeito foi forçá-los a se virar como operários das multinacionais Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, a Brazil Railway Company, e Southern Lumber & Colonization (então a maior serraria da América do Sul). Ou, na pior das hipóteses, enxotá-los de suas glebas feito cães sarnentos, por não possuírem título de propriedade.
Isso sem falar nos 8 mil homens recrutados no Nordeste e no Rio de Janeiro como mão de obra quase escrava para tocar a ferrovia. Com seu término, em 1910, desempregados, eles viraram os potenciais novos “soldados do exército encantado de São Sebastião”: miséria por miséria, que fosse acreditando no improvável que poderia matar sua fome, em lugar da exploração de sua força de trabalho por ninharia e da serventia física e moral.
Foi quando o presidente Hermes da Fonseca, apavorado com que ali subsistissem cinzas de um monarquismo redivivo, mandou à região, armado até os dentes, inclusive com inéditos aviões, o general Setembrino de Carvalho, que acabara de liquidar um levante do Padre Cícero no Ceará.
Setembrino atuou com as PMs de Santa Catarina e do Paraná, coadjuvadas pelas milícias dos “coronéis”, os chamados “vaqueanos”, de infausta memória, que faziam o serviço sujo na cola do Exército, do qual recebiam soldo. Um a um eram fuzilados ou degolados os intimoratos recos da tropa celeste de “São Sebastião” (o mito do sebastianismo, restaurado nos sertões catarinenses, virara o mote da hora), em cujas fileiras estariam os combatentes mortos no Irani, tendo à frente “são” José Maria, lancetado naquele entrevero inaugural do Contestado (22 de outubro de 1912).
Conhecidos como “redutos” (eram mais de 40), e para os sertanejos, “cidades santas”, essas favelas, então inexpugnáveis “fortes de resistência” do jaguncedo, constituíam um misto de dormitório, rupestre praça de prédica, reza e batismos, justiçamento sumário e de ditames bélicos. Numa viagem dos tempos, dada a mesma matriz cristã, os sítios remontam ao espaço de fanatismo religioso, cega obediência e castigos aos índios, formatado pelos jesuítas nas missões da chamada “República Guarani” (1610-1776).
Improvisados e provisórios, estendiam-se a partir do Rio Iguaçu (divisa do Paraná), ao longo do Vale do Rio do Peixe (centro-oeste catarinense), até quase às margens do Rio Uruguai, que separa Santa Catarina do Rio Grande do Sul.
Como viviam infiltrados por aventureiros e fugitivos da lei, muitas vezes o epíteto “jagunço” fazia sentido. Em nome de um suposto ideal igualitário (“quem tem, mói, quem não tem, mói também”) pregado por “são” João Maria, nas suas ações guerrilheiras, derrotados nas tentativas de convencer quem os seguisse, punham-se a ameaçar a população civil, além de lhes surrupiar o gado, mantimentos, roupas e armas.
Na invasão de Curitibanos, quando incendiaram prédios públicos, assombrando autoridades e habitantes, houve quem visse em seus olhos aquele esgazeado próprio do fanático. Algo que corresponde ao que o historiador Maurício Vinhas de Queiroz (1928-1995), cujo livro Messianismo e Conflito Social (1966) é referência histórica, revela sobre os caboclos: o Contestado teria sido uma revolta alienada, seus protagonistas agiam como se fossem autistas, enfrentando as razias do general Setembrino de Carvalho com espadas de pau, crentes que ressuscitariam no Exército Encantado de São Sebastião...
Nessa, acabavam embaralhando agressão a símbolos opressores (obras da ferrovia, da serraria, sedes de fazendas, depósitos de armas, linhas telegráficas do Exército) com quem os apoiava clandestinamente (pequenos fazendeiros, comerciantes, políticos locais). Um terrorismo que foi corroendo e manchando a legitimidade reivindicatória do movimento por confundir algozes e vitimas.
Dissolvendo nossa useira e vezeira inconsciência, deboche e preguiça acadêmicas quanto à exegese da história oculta do Brasil, onde invariavelmente o campeão e o perdedor mentem, é preciso desossar o Contestado a partir de um mix entre o que foi e o que poderia ter sido. Ou seja, munido de um rigoroso approach desideologizado, onde os influxos morais permaneçam inoxidáveis.

A peneira e as curvas do Sol


HUGO SEGAWA | ARQUITETO, PROFESSOR DA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA USP
Cultiva-se a fleuma britânica como uma tradição que remonta mais ao mito que à realidade. Nem assim é possível ficar indiferente à reação dos ingleses quando Oscar Niemeyer projetou o pavilhão da Serpentine Gallery, inaugurado em 2003 nos gramados do Hyde Park de Londres.
Oscar Niemeyer em dezembro de 1977 - Arquivo/Estadão
Arquivo/Estadão
Oscar Niemeyer em dezembro de 1977
A Serpentine é uma galeria fashion de arte moderna e contemporânea instalada num prédio de aparência tradicional de tijolos à vista em Kensington Gardens. Contrastante edifício se posto ao lado da proposta iniciada no ano 2000 para a construção, anualmente, de um pavilhão temporário da galeria, para chamar a atenção e popularizar a arquitetura contemporânea convidando-se um arquiteto de renome. Decerto um pequeno pavilhão temporário não é razão para grande alarde no mundo da arquitetura. Todavia, a carga midiática desse evento é oportuna para se perceber as nuanças da cena arquitetônica atual. O pavilhão inaugural da série foi projetado pela iraquiano-britânica Zaha Hadid, antes de ganhar o Prêmio da União Europeia Mies van der Rohe em 2003 e o Pritzker Prize em 2004. Em 2001 o pavilhão foi de autoria do polonês-americano Daniel Libeskind, celebrado pelo Museu Judaico de Berlim, aberto naquele mesmo ano, e antes de se notabilizar por ganhar o concurso (malogrado) do Ground Zero de Nova York. Em 2002, o japonês Toyo Ito, com seu pavilhão, concluía sua primeira obra britânica.
O “arquiteto certo na hora certa”, anotava o jornal londrino The Observer sobre as escolhas da galeria, em seu artigo dedicado ao pavilhão do ano de 2003. A chamada da matéria: “O velho menino do Brasil. Para o seu pavilhão anual, a Serpentine trocou a juventude por um mestre do passado”. Para surpresa da jovem clientela da galeria, tratava-se de um artista nonagenário. Foi o deleite para a imprensa londrina. NoEvening Standard, a manchete já continha um jogo de palavras: “New wave at the Serpentine”. O jornal comentava: “Imagine um novo filme de Hitchcock estreando semana que vem, ou se Stanley Matthews (jogador de futebol, um Garrincha inglês), milagrosamente preservado da mortalidade, estivesse cintilando no campo toda semana. Imagine Garbo ou Sinatra, no auge, apresentando-se agora. Nesta semana, com a inauguração do Pavilhão de 2003 da Serpentine Gallery, esse milagroso lapso do tempo está acontecendo. Ele foi projetado pelo brasileiro de 95 anos Oscar Niemeyer, a Garbo ou Sinatra da arquitetura moderna. Ele ocupa relativamente uma posição mediana no panteão frente a grandíssimos nomes como Le Corbusier e Mies van der Rohe, mas sua condição de estrela é inquestionável. Ele trouxe verve e curvas para a arquitetura moderna no tempo em que a norma eram as eficientes caixas da Bauhaus”.
Ao longo da carreira, Oscar Niemeyer recebeu um sem-número de reconhecimentos internacionais. Todavia, os anos 1970 e 1980 não foram fáceis para a estima do mestre. Politicamente perseguido no Brasil, amargou um dourado exílio na França. Comunista convicto, testemunhou a queda do Muro de Berlim, a derrocada soviética, mas manteve-se fiel à ortodoxia marxista. Sob o crivo da condição pós-moderna, Niemeyer foi considerado um ultrapassado, mais uma figura a ilustrar as páginas dos livros de história da arquitetura. Sua obra foi considerada infecunda, irreproduzível, personalista. Mas o tempo colaborou contra a implacabilidade da crítica. O neopersonalismo arquitetural e espalhafatoso a partir dos anos 1990 era uma perversa faceta ante a suave prédica tida como “antirracionalista” de um Niemeyer firme de convicções, em oposição à camaleônica predisposição de seu contemporâneo Philip Johnson, que de um replicador de Mies van der Rohe se tornou um espetacular pós-modernista.
Em 1988 - no entardecer da onda pós-moderna -, quando pela única vez o Pritzker Prize foi dividido entre duas personalidades, Niemeyer e Gordon Bunschaft (projetista do escritório norte-americano Skidmore, Owings & Merrill, autor da Lever House em Nova York), a revista Time saudou-os como “impenitentes velhos modernos ... ambos ... profundamente fora de moda na maior parte dos anos 1970 e 1980, durante a era de feroz reação antimoderna”. A extinta revista norte-americana Progressive Architecturecomentou a premiação com o editorial Honras para a Velha Guarda. Insultos com a sutileza anglo-saxônica.
É possível estabelecer um divisor qualitativo das homenagens a partir dos anos 1990, sob outros olhares, entre elogios e agravos.
Em 1996, a Bienal de Veneza concedeu o Leão de Ouro a Niemeyer, Philip Johnson e Ignazio Gardella. Dois anos depois, o Royal Institute of British Architects deu a Medalha de Ouro a Niemeyer. Foram homenagens aos últimos sobreviventes de uma geração, não há dúvida. Nenhum insulto respeitoso se registrou na imprensa. Mas pairava ainda certo ceticismo, expresso em The Observer de 2003: “Apesar da impecável credencial pelo movimento moderno, houve sempre certa desconfiança sobre o trabalho de Niemeyer quando ele era jovem. Era visto como de algum modo demasiado espontâneo e fácil”.
Todavia, no início do terceiro milênio a grande imprensa internacional em geral reverteu as expectativas soturnas de duas décadas antes. Matéria do mesmo The Observer relatava, entre outras coisas: “A sede do Partido Comunista Francês, que ele construiu num engajado subúrbio parisiense, hoje parece tão chique que foi alugada pelos seus pouco abonados proprietários para um desfile da Prada”. No necrológio queThe Guardian e El País publicaram sobre Niemeyer, o historiador e critico britânico William J. R. Curtis comenta: “Os mundos para o quais Niemeyer construiu já se foram, mas seus edifícios permanecem em toda sua intrigante riqueza. Ao final da carreira ele produziu às vezes formalismo vazio e autocaricatura. Mas sua vasta obra inclui numerosos exemplos de sua fecunda imaginação espacial e habilidade em resolver desafios em todas as escalas. É como um livro aberto de lições de arquitetura e princípios”.
A longevidade do arquiteto assegurou-lhe o desagravo. O Evening Standard escreveu em 2003: “Ele também viveu o bastante para voltar a ser fashion. Há poucos anos as curvas sensuais de seus desenhos foram redescobertas pela geração Wallpaper*(badalada revista inglesa de design, interiores, moda e viagens) e inspiram projetos de forma livre de Zaha Hadid e Future Systems. Mesmo os edifícios de Norman Foster estão agora influenciados pela batida de samba de Niemeyer”. The Observer, nove anos atrás, também cedeu: “Ele viveu o bastante para voltar à cena principal de novo”. É a fleuma britânica. Reconhecendo que se tapava o sol com a peneira.