domingo, 2 de dezembro de 2012

Agências reguladas


ELENA LANDAU | É ECONOMISTA, ADVOGADA E SÓCIA DO ESCRITÓRIO SERGIO BERMUDES / PATRÍCIA SAMPAIO | É PROFESSORA DA FGV DIREITO/RIO E ADVOGADA - O Estado de S.Paulo

Passados cerca de 15 anos da instalação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a primeira agência reguladora federal, criada nos anos 1990, a pergunta que constitui o título deste artigo talvez pareça ultrapassada. Não é. Muitas das dúvidas ainda persistem. São entes técnicos ou políticos? Qual seu grau de autonomia? Quais critérios para nomeação de seus diretores?
Agências reguladoras são espécies de autarquias, pessoas jurídicas de direito público que devem executar de atividades típicas de Estado, como normatização, fiscalização, sanção e solução de conflitos. Notem que são atividades de Estado e não do governo de ocasião. Elas também não se subordinam, ou não deveriam se subordinar, aos entes políticos a que se vinculam. O ponto a ressaltar é que regulam relações jurídicas e econômicas cujo tempo de maturação costuma perpassar em muito um ciclo político-eleitoral e, portanto, requerem garantias adicionais de sua preservação ao longo do tempo.
Por isso, a Lei 9986/2000 traz uma série de regras para seu funcionamento e constituição em âmbito federal. Por exemplo, nelas não há uma figura monocrática a tomar as mais importantes decisões no topo da pirâmide hierárquica; seu órgão máximo é uma diretoria colegiada. Dada a complexidade dos temas envolvidos na regulação, o colegiado existe para melhorar a qualidade da decisão: "Várias cabeças pensam melhor que uma", diz o ditado popular.
A decisão via órgão colegiado também tem a importante função de reduzir o risco de captura, fenômeno que ocorreria quando o ente regulador, responsável por cuidar para que os agentes econômicos executem suas atividades com qualidade, segurança e, no caso dos serviços públicos, modicidade tarifária, passasse a tomar decisões claramente no interesse prioritário dos regulados. Certamente, é mais difícil os membros de um órgão colegiado incorrerem em erro, ou serem corrompidos na integralidade (ou na maior parte), do que um único indivíduo.
O Brasil inovou ao acrescentar à teoria econômica a captura política. Essa é o que nos aflige no momento e interfere não apenas em eventuais decisões do órgão regulador, mas na sua própria composição.
Na tentativa de evitar esse tipo de distorção, a lei criou exigências para o preenchimento das diretorias das agências. Os candidatos devem ser "brasileiros, de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeados", conforme exige o art. 5º da Lei 9986/00. A aferição desses requisitos é feita por dois dos poderes da República: o chefe do Poder Executivo, que tem a prerrogativa da indicação e nomeação dos diretores, e o Senado Federal, que deve sabatinar os candidatos, cabendo-lhe vetar aqueles que não atendam aos comandos legais. Assim, se é verdade que o Executivo tem culpa quando indica técnicos sem a qualificação devida, em razão de interesses meramente partidários, o Legislativo é conivente com essa situação ao tornar a sabatina um ato meramente protocolar, abdicando de suas obrigações legais.
A lei também assegura aos diretores estabilidade no curso do mandato. Eles somente perdem o cargo por renúncia ou em situações previstas na lei, garantia que existe para evitar a confusão entre órgão de Estado e de governo, assegurando sua autonomia decisória. E mais, os mandatos dos diretores não são coincidentes. Isso busca simultaneamente evitar mudança abrupta de diretrizes regulatórias e permitir a oxigenação do ente ao longo do tempo.
Mas... por que introduzir agências reguladoras na administração pública brasileira? Para responder a essa pergunta, temos que retornar aos anos 1990.
A Constituição de 1988 trouxe uma reordenação da participação do Estado na economia, reduzindo sua função empresária. Nesse contexto, a Medida Provisória 155/90 instituiu o Programa Nacional de Desestatização, que incluiu tanto a privatização de empresas estatais como a delegação da execução de serviços e parcelas dos monopólios públicos à iniciativa privada.
Na passagem de uma realidade em que o Estado era simultaneamente executor e regulador de setores de infraestrutura para um modelo em que o poder público delegaria contratualmente essas atividades à iniciativa privada, considerou-se que conferiria maior segurança jurídica a outorga da gestão desses contratos a um ente estatal autônomo e especializado. Especialmente porque, em diversas situações, o Estado, considerado em sentido amplo, pode ser simultaneamente (i) o poder concedente; (ii) o regulador da atividade delegada; e (iii) o executor de parcela da atividade, já que, em alguns casos, como no setor elétrico, convivem empreendedores privados e estatais. O sucesso do modelo institucional das agências reguladoras fez com que também fossem adotadas em setores regidos pelo princípio da livre iniciativa, como saúde suplementar e vigilância sanitária.
Em suma, agências reguladoras possuem autonomia reforçada para que sejam capazes de tomar decisões de elevada complexidade técnica com equidistância face aos interesses envolvidos, sejam governamentais, sejam de mercado ou de usuários e consumidores.
Que a operação Porto Seguro sirva de alerta para que as agências sejam respeitadas, sua autonomia decisória e financeira reafirmadas, de modo que possam cumprir fielmente sua finalidade institucional, umbilicalmente atrelada a sua própria razão de existir.

Incertezas que jorram do mar


JOSÉ DE SOUZA MARTINS | É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE UMA ARQUEOLOGIA DA MEMÓRIA SOCIAL (ATELIÊ EDITORIAL) - O Estado de S.Paulo
Um novo ciclo econômico da história brasileira parece prestes a jorrar das profundezas do mar. O ouro negro do petróleo do pré-sal modifica a tradição dos nossos chamados ciclos econômicos: antes de se tornar dinheiro, já está sendo prometido e repartido. É verdade que, em face da perspectiva dos milionários royalties adicionais do nosso petróleo, convém ter regras para distribuição da nova riqueza entre as províncias e para sua aplicação. As disputas em torno dessas rendas já sugerem que, politicamente falando, elas fortalecerão o poder regional e, por extensão, o caráter oligárquico e populista da política brasileira. A falta de um norte seguro, fundado em prioridades nacionais e sociais, e a pulverização dos recursos já sugerem que o povo será personagem residual da partilha. Não seria diferente do legado de outros ciclos econômicos.
Estou entre os que resistem à utilidade conceitual de ciclos como recurso historiográfico para designar uma atividade econômica predominante. Em todo caso, o que interessa é compreender o que sobrou e para quem sobrou de cada ciclo da história prévia para refletir sobre o que sobrará do ciclo que se inicia.
Começa que o ciclo do pau-brasil nos deixou o Brasil, mas não nos deixou mais nada. A atividade econômica de extração da madeira vermelha para produção de tintura para tecidos nada nos legou. O que importa nos ciclos econômicos é entender o que criaram na economia cuja geografia definem. O ciclo do pau-brasil criou riqueza alhures, como diziam os antigos, mas não aqui. Os índios foram usados pelos franceses para derrubar, carregar e embarcar a madeira em troca de miçangas. E do nome. Os índios, antes de serem índios, receberam a designação de brasis, raiz do que viriam a ser os brasileiros. O ciclo do pau-brasil não gerou uma economia nem gerou um país. Deixou para trás o começo da devastação predatória. Nem mesmo ficou a árvore em quantidade suficiente para que os brasileiros de hoje pudessem conhecer a madeira que dá nome à pátria. Fui conhecer o pau-brasil por acaso, quase adulto, quando, nas proximidades do Instituto Caetano de Campos, em São Paulo, vi uma franzina arvorezinha, ao lado da qual pequena placa esclarecia que era pau-brasil. Só muitos anos mais tarde comprei um remo de um índio tapirapé, do Mato Grosso, feito de pau-brasil: a madeira vermelha, da cor de brasa, recoberta de laboriosos traços de urucum, uma joia, uma obra de arte.
Foi o açúcar que, entre nós, demarcou uma primeira atividade econômica estável e enraizada, reprodutiva, isto é, diversa da predação e do saque que foram próprios do ciclo do pau-brasil. Houve, sem dúvida, um saldo social e político da economia do açúcar. O primeiro deles, a escravidão e a sociedade patriarcal, os costumes senhoriais, as desigualdades sociais profundas, a divisão espacial do trabalho que criou a pecuária do sertão como economia complementar da do açúcar. O açúcar criou o primeiro Brasil suntuoso, o das igrejas luxuosas. O ouro que rebrilha nas paredes barrocas da Igreja de São Francisco, na Bahia, dá bem a medida do muito que se ganhava e do muito que se gastava. No Terreiro de Jesus, escravos negros arrastavam as dores de seu banzo. O açúcar criou as condições materiais de um modo de viver e de pensar. Um primeiro jeito de sermos brasileiros, divididos entre a gente de prol e a gente ínfima, senhores e escravos. As amarguras e não as doçuras do açúcar desenharam a cara do brasileiro e do Brasil.
Resisto a falar em ciclo porque o açúcar não imperou solitário. Como aconteceu nos ciclos seguintes, outras atividades econômicas existiram ao mesmo tempo que a do açúcar: além do gado, a farinha de mandioca, o milho e a farinha de milho, o feijão, a produção doméstica e artesanal de tecidos e de cerâmica. Enfim, um conjunto razoavelmente articulado de atividades econômicas.
O ciclo do ouro, que se define nos fins do século 17, nem centralizou a economia já existente nem se sobrepôs a ela. Durou um século e seu apogeu não durou mais que 20 anos, no século 18. Como o açúcar, o ouro, apoiado na escravidão, não distribuiu riqueza, concentrando-a em poucas mãos e, sobretudo, perdendo-a para a metrópole, que a perdeu para a Inglaterra. Mas criou uma elite de intelectuais, animou as artes, engendrou poesia, encheu os territórios das Minas Gerais, de Mato Grosso e de Goiás de igrejas suntuosas, possibilitou o barroco brasileiro, animou um sonho de liberdade.
O ciclo do café foi o que nos deixou o maior legado, trazendo prosperidade nunca vista ao Sudeste. O café modernizou o Brasil e só o logrou porque se livrou do trabalho escravo, disseminou o trabalho livre, promoveu a imigração, diversificou as mentalidades e, pela primeira vez, gerou no País um empresariado moderno e criativo. Foi o café que engendrou a economia industrial e deu origem ao ciclo da indústria. O café criou uma economia voltada para dentro, deu vida ao mercado interno, desdobrou a economia, libertou o cafeicultor não só dos bloqueios da escravidão, mas também dos bloqueios da propriedade da terra, diversificando-o numa classe de capitalistas comprometidos com a dinâmica do próprio capital. Em decorrência, alargou horizontes, dinamizou a economia.
No mesmo período em que o dinâmico ciclo do café revolucionava a economia brasileira, o ciclo da borracha não tinha elasticidade. Criou uma precária economia de refúgio na selva, baseada nas relações servis da peonagem, a escravidão por dívida, sob a vigilância do pistoleiro. Quando muito, nos legou o contraste de uma cidade moderna e num certo sentido suntuosa, Belém, com seu Teatro da Paz, que recebia companhias europeias. Uma cidade dominada pelo art noveau, de que ainda há numerosos vestígios. Um estabelecimento comercial, Paris n'América, diz tudo sobre o esplendor sintético e redutivo da borracha, com evidências em Manaus.
Mas o que foi essa economia predatória está também nos resquícios do Império do Acre, cujo imperador caricato, Galvez, nos legou uma muralha de garrafas vazias de uísque e champanhe no meio da selva, no que foi a capital de choupanas de seu reino. Império inaugurado com um banquete simbólico: para o povo, banana e cachaça; para a corte uma ceia trazida de Paris. Do menu consta o champanhe servido: Veuve Clicquot.
O ciclo da indústria trouxe-nos a racionalidade industrial, disseminou escolas superiores, criou universidades, modernizou as relações de trabalho, deu vida a novas classes sociais, animou a superação de servos da gleba por assalariados com contratos e direitos. Abriu-nos o horizonte da cidadania e da democracia.
Este que poderá ser o ciclo do petróleo, no que se refere a legado, pode ser antecipado em parte pelo que o petróleo fez em outras sociedades. Na Venezuela, o óleo ampliou as desigualdades, não impediu que Caracas se transformasse numa cidade rica cercada de imensas favelas. No Oriente Médio, criou luxos impensáveis e misérias idem. É esperar para ver o que nos virá do fundo do mar.


Ganância e arrogância de baciada


CHRISTIAN CARVALHO CRUZ - O Estado de S.Paulo
Primeiro o Código Florestal, agora os royalties do petróleo. Se continuar nesse ritmo de dois "Veta, Dilma" por ano, dizem os engraçadinhos, vai faltar fôlego para a presidente vetar a vitória da Argentina na Copa de 2014. Desta vez, o imbróglio começou em 6 de novembro, quando o Congresso aprovou nova proposta de distribuição dos tais royalties do petróleo, que são valores em dinheiro pagos à União pelas empresas que exploram o mineral. Esses recursos são repassados a Estados e municípios seguindo uma tabela de porcentuais que variam de 1,75% para cidades não produtoras a 26% para Estados produtores.
Copacabana. Protesto contra lei que alteraria a distribuição dos royalties - Tasso Marcelo/Estadão
Tasso Marcelo/Estadão
Copacabana. Protesto contra lei que alteraria a distribuição dos royalties
O projeto do Legislativo teoricamente tornaria mais equânime a divisão em nome de um desenvolvimento regional equilibrado. Mas foi um fuzuê nos Estados "prejudicados", notadamente o Rio de Janeiro - sua parcela cairia de 26% para 20%. Resultado: gente inflamada na rua, faixas, o governador Sergio Cabral dizendo que as finanças fluminenses entrariam em colapso e botando em xeque seu apoio incondicional ao governo federal... e mais um "Veta, Dilma" na praça.
Até a Fernanda Montenegro vestiu a camiseta do movimento para pedir que a presidente deixasse tudo como está. Na sexta-feira, Dilma vetou a mudança para áreas de petróleo já licitadas, mas manteve as novas regras para os nacos do pré-sal que vierem a ser explorados. E ainda confirmou: uma medida provisória será enviada ao Congresso determinando que a totalidade dos royalties obtidos nos novos campos concedidos daqui pra frente será destinada à área de educação.
O engenheiro Ildo Sauer, doutorado pelo MIT, professor titular e atual diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, diz que paga para ver. "Deveríamos estar discutindo um plano nacional de longo prazo para investir o dinheiro do petróleo brasileiro na construção de um país de verdade, e não quanto este ou aquele Estado vai receber de royalties. Mas nem sequer sabemos o volume de petróleo no pré-sal. O governo faz questão de não saber..." Sauer foi diretor de Gás e Energia da Petrobrás entre 2003 e 2007, quando batizava os projetos da sua área de "Mário Lago", "Luiz Carlos Prestes", "Celso Furtado", "Leonel Brizola". E explicava o motivo: "Temos partido. Eu e meus companheiros somos parte de uma história". Aquele período na estatal ele definiu como "o das maiores esperanças", por causa dos trabalhos que levaram à descoberta das riquezas do pré-sal, e também "o das maiores frustrações", por ver o companheiro Lula, com assessoria da então ministra Dilma Rousseff, ceder a interesses privados na área energética.
Nesta entrevista ao Aliás, Sauer abre a metralhadora, mas usa balas muito bem fundamentadas para dizer que o tão aclamado modelo norueguês de gestão de excedente do petróleo não nos serve. E que, se bobear, o Brasil do pré-sal corre o risco de empacar em sua histórica viscosidade burocrata, se tornando um México da época do PRI.
Descobrir um mar de petróleo no fundo do oceano traz felicidade a um país?Depende do modelo adotado para gerir essa riqueza, de como se dará o processo de apropriação desse recurso natural e do quadro institucional criado para dar conta dessa nova realidade. Isso pode conduzir o tal país a um avanço ou a um retrocesso. A Venezuela, por muitos anos, foi a grande produtora de petróleo mundial. Depois do segundo choque, em 1979, o petróleo venezuelano gerou grande excedente econômico - que só serviu para tornar a aristocracia extremamente afluente e participante do jet set internacional, deixar o país sem uma estrutura produtiva e grande parte da população em condições subdesenvolvidas. Em outros lugares isso aconteceu de forma ainda mais grave. O México se valeu do petróleo para manter a hegemonia política de um agrupamento, o PRI (Partido Revolucionário Institucional), que teve origem revolucionária e progressivamente virou a máquina burocrática de um aparato corrupto que usava a riqueza do petróleo para se sustentar no poder. Os exemplos de que o acesso a recursos dessa monta levam a uma deterioração são mais frequentes do que os que levam a uma construção positiva.
E a Noruega, sempre citada como um modelo a ser seguido? É um paradigma que a gente não pode ignorar, mas deve considerar as diferenças. A Noruega tem apenas 7 milhões de habitantes e já possuía certo grau de desenvolvimento, uma sociedade estabilizada, sem as enormes carências que nós temos, quando descobriu seu petróleo na década de 1950. É um país muito pequeno e com um volume de petróleo bem menor do que aquele que estamos debatendo aqui, o do pré-sal brasileiro. Apesar disso, o petróleo norueguês gerou um excedente econômico, e com ele foi criado um fundo do qual todo norueguês passa a ter uma cota ao nascer. Ou seja, ao contrário do brasileiro, que nasce endividado, o norueguês vem ao mundo no lucro. O apogeu do petróleo na Noruega, porém, se deu antes da explosão dos preços em 2005. E aí temos um problema: eles produziram o petróleo quando o barril não passava de US$ 30. Hoje vale US$ 100. Mas isso não foi um grande problema, porque a Noruega podia prescindir do petróleo para viver tranquilamente como um país de IDH elevado. Não é o caso do Brasil. Eu não acho que esse modelo nos sirva.
Qual nos serviria?No Brasil o fundamental, primeiro, é saber quanto petróleo existe lá embaixo. Por ignorância, ou por interesse de, na ausência dessa informação, poder barganhar acordos com os vários grupos de pressão política e econômica, o governo federal não quer saber de quanto é esse recurso. Isso é assustador. Em qualquer lugar do mundo onde se descobre petróleo se conclui o processo exploratório para quantificar o volume de recursos disponíveis. Se são 50 bilhões de barris mais ou menos confirmados até agora no pré-sal, temos uma realidade importante. Por 60 anos, do monopólio ao pré pré-sal, o Brasil descobriu 20 bilhões de barris e produziu 5 bilhões. Tinha 15 bilhões de barris de reservas. Isso já subiu para pelo menos 50 bilhões. E pode ser mais.
Tecnicamente, o Brasil é capaz de obter essa informação?É claro que sim. Bastariam cem poços exploratórios, que poderiam se tornar também poços pioneiros de produção avançada, antes de colocar a plataforma definitiva, como já está sendo feito em Tupi. Esses cem poços custariam uns US$ 60 milhões cada um. São US$ 6 bilhões, que diante do que se está discutindo não é nada. A ideia está na lei: o governo pode contratar a Petrobrás, que é a melhor empresa do mundo nessa área, para concluir o processo exploratório que ela começou. Isso iria confirmar se temos 80 bilhões de barris, 100 bilhões, 200, 300 bilhões ou mais, como na Arábia Saudita. Veja, a descoberta do pré-sal é fruto de uma luta política do povo brasileiro iniciada nos anos 1940, quando se gritava que "o petróleo é nosso" e só havia esperança. Agora que o petróleo está confirmado como fruto dessa história, a gente se nega a querer saber qual é o volume.
De posse dessa informação, qual seria o passo seguinte?Elaborar um plano de produção para, a cada ano, simplesmente retirar do subsolo marinho o volume de petróleo que gere o excedente necessário para financiar um plano nacional de desenvolvimento econômico e social, baseado num orçamento de longo prazo. A menos que haja um cataclismo político na China, o preço do petróleo vai continuar nesse patamar elevado de hoje por muitos anos. Então, o melhor modelo pra nós seria produzir somente o volume necessário para fazer os investimentos planejados e deixar o restante lá, valorizando. O diabo é que o Brasil não tem planejamento. Os últimos que planejaram alguma coisa neste país foram os militares. Mas voltando: nesse plano deveríamos calcular quanto devemos gastar em educação pública, saúde pública, reforma urbana, moradia, mobilidade, lazer e cultura, infraestrutura de produção, reforma agrária, ciência, tecnologia... Fazer todo o possível para nos colocarmos pari passu com os países avançados. E finalmente promover a transição energética para as matrizes renováveis. Mas estamos longe disso. Os governos Lula e Dilma, com os quais muito contribuí, só têm cumprido papel não estratégico. Preocupam-se em mediar aquilo que já está na mesa, a fim de atender as pressões dos grupos empresariais e os interesses político-partidários que lhes garantem apoio no Congresso. E voltando à questão dos modelos de gestão do excedente do petróleo, tudo isso e mais os acontecimentos das últimas semanas me levam a acreditar que o nosso paradigma talvez esteja mais para México do que para Noruega.
O sr. fala da disputa pelos royalties?É lamentável essa situação de colocar a discórdia entre os Estados, qualificando uns como produtores e outros como não produtores. Essa distinção não existe tecnicamente, juridicamente, nem do ponto de vista histórico ou ambiental. A falta de liderança e visão estratégica dos governos estaduais que se autodenominam produtores e do governo federal são assustadoras. O conceito de royalty é antigo, significava uma renúncia que o rei fazia de um patrimônio que, uma vez alienado por qualquer motivo, não estaria mais disponível para seus descendentes. Em troca, eles receberiam uma compensação. Esse conceito foi alterado para, mais genuinamente, dizer que quando subtraímos da natureza um recurso não renovável nós estamos impedindo que as gerações futuras se beneficiem dele. Então, devemos recompensá-las. No Brasil, quando tentavam privatizar a Petrobrás nos anos 1990, buscou-se no conceito de royalties uma espécie de proteção para as regiões que seriam mais diretamente afetadas por isso, sobretudo o Rio de Janeiro. E aí chegamos a novembro de 2012 com o governador fluminense declarando, absurda e irresponsavelmente, que o Estado dele não sobrevive sem os royalties. Em primeiro lugar, ele jamais poderia contar com os royalties, porque, quando se produz petróleo a 100 quilômetros da costa, o Estado produtor é nenhum outro senão o Estado nacional. Ora, a descoberta se deu num esforço nacional que originou a Petrobrás há quase 60 anos. A Constituição diz que todos os recursos do subsolo pertencem à nação. Depois, pleitear royalties por razões ambientais é uma falácia. Qualquer acidente na plataforma em alto-mar terá consequência ou não segundo as correntes marinhas e a distância em relação ao litoral. Não afetará Estado algum necessariamente. E, no mais, os Estados que detêm bases logísticas de produção de petróleo já são beneficiados pela imensa atividade econômica que isso traz. Como é que um governo estadual acha que pode ancorar o futuro da sua população num excedente de petróleo que potencialmente é imprevisível, tanto pelo volume produzido quanto pelo preço, que depende da conjuntura geopolítica internacional? Isso é populismo. Induz a um sentimento de desagregação nacional.
A presidente Dilma Rousseff disse que respeitaria os contratos e acabou mantendo a divisão dos royalties como está.Bom, ela respeita os contratos quando eles têm destinação privada. Quando são de ordem pública, ela não tem escrúpulos de rasgá-los. Foi ela que permitiu e endossou esse modelo inadequado de partilha que prevê a outorga de contratos a empresas privadas, usando dinheiro do BNDES e a reconhecida capacitação da Petrobrás, para arrancar quanto antes o petróleo de debaixo da terra e convertê-lo em moeda. Mas em que moeda, nessa instabilidade das economias mundiais nas últimas décadas? E fazer o que com o dinheiro? Deixá-lo lá fora num fundo de US$ 3 trilhões sob o comando de um conselho gestor operado a partir da base partidária que tem dado notórias demonstrações de incapacidade de fazer qualquer coisa em nome do Estado e da nação? Tudo indica que nas próximas décadas o valor do petróleo debaixo da terra, reservas asseguradas e medidas, vai se valorizar muito mais do que qualquer investimento, sem os riscos que eles naturalmente têm. Então vamos fazer o quê? Tirar nosso petróleo daqui, vendê-lo em dólar para depois comprar da Nigéria? É isso?! Essa é a questão estratégica que se coloca. Estou assustado com o que vejo. O debate é pobre por falta de conhecimento, o que torna os dirigentes nacionais uns ingênuos ou irresponsáveis. E a presidente da República ainda quer se colocar como mediadora num falso embate fratricida que fragmenta o País! A liderança dela tem-se revelado ineficaz e fraca. Não teve espírito de estadista capaz de apontar o futuro, reconhecer o papel geopolítico e estratégico que o Brasil pode ocupar no mundo e, a partir daí, construir uma alternativa que una os brasileiros e mude a nossa realidade. E eu não vejo nela nem traço de preocupação com isso.
O sr. está dizendo que Dilma não entende do setor energético?Estou dizendo que ela não tem credibilidade para ser a líder de um debate tão importante quanto esse do pré-sal. Um país cheio de assimetrias sociais e econômicas deveria mobilizar esses recursos do petróleo para melhorar as condições gerais da população. Isso é patrimônio e riqueza das gerações brasileiras futuras. Não é nem desta nossa geração. Nós somos beneficiários da construção feita por gerações que nos precederam. Estamos tomando a decisão sobre o que fazer com isso. Causa perplexidade o nível elementar dos conceitos debatidos por aí. Estamos falando de quê? Cinco por cento dos royalties convencionais, que podem chegar a 15%? O que deveria estar em debate é o que fazer com todo o excedente. Simplificando: se o petróleo vale US$ 100 o barril e se gasta US$ 10 para produzi-lo, tirando os US$ 15 dos royalties ainda sobram US$ 75. O que vamos fazer com esses US$ 75 de cada um dos 100 bilhões de barris que podemos ter? Em vez de tratar dessa questão crucial, estamos preocupados com 5% do Rio de Janeiro. Isso me deixa perplexo.
E quanto à segurança nacional? Devemos nos preocupar?O entusiasmo inicial gerado pelo pré-sal não foi seguido de ações e planejamento sobre segurança nacional e ambiental. A China disputa cada palmo de recurso disponível na África, na América e na Ásia em termos de petróleo e de espaço para produzir alimentos. Os EUA construíram a conflagração que vemos no Oriente Médio e parece nunca ter solução. As crises, guerras, definição de limites nacionais ali são derivados da disputa pelo excedente do petróleo. A invasão do Iraque não foi nada mais que primatas do Texas tentando alcançar riqueza fácil e rápida. Ameaças ao Irã, a invasão da Líbia. Tudo isso faz parte do quiproquó geopolítico em que os americanos estão metidos até o pescoço. O Atlântico Sul é objeto de patrulha da 4ª Frota americana, recriada e agora com sede em Miami. Ela certamente não foi recriada por causa do Paraguai ou da Bolívia, nem dos países da África. Ela foi recriada talvez porque os EUA não reconheçam a soberania do Brasil sobre a zona econômica onde estão os maiores e mais importantes recursos do pré-sal. Há motivo, sim, para termos cautela.