sexta-feira, 19 de setembro de 2025

SUS se moldou no sistema NHS inglês e hoje inspira 'irmão mais velho', FSP

  

São Paulo

Aneira Thomas nasceu um minuto após a meia-noite do dia 5 de julho de 1948, em Glanamman, no oeste do País de Gales. Sétima filha, foi a primeira cujo parto aconteceu em um hospital —e, por isso, se tornou a primeira pessoa nascida no NHS, o sistema nacional de saúde britânico, que, como ela, estreava naquela madrugada de verão.

"Eu demorei para entender o significado disso, de ser o ‘bebê do NHS’, mas hoje me orgulho muito de carregar esse título", conta à Folha a hoje enfermeira aposentada.

O NHS, atualmente septuagenário como Aneira —batizada em homenagem a Aneurin Bevan, o político galês considerado o "pai" do sistema de saúde—, não foi o primeiro sistema público de saúde. A Nova Zelândia já havia introduzido cuidados médicos gratuitos em 1938, assim como os bolcheviques na União Soviética.

A imagem mostra uma mulher idosa com cabelo longo e liso, de cor branca, usando óculos e uma blusa preta. Ela está posando ao lado de uma estrutura de madeira, com uma mão apoiada sobre ela. O fundo é composto por folhagens verdes, sugerindo um ambiente natural.
Aneira Thomas foi a primeira a nascer no sistema público inglês, o NHS, em 1948 - Geoff Caddick 4.jul.23/AFP

Ele se tornou, no entanto, o mais conhecido dos casos, fundado no princípio de universalidade ao acesso em saúde e na capilarização do atendimento médico. Em casos anteriores, como o soviético, por exemplo, o acesso a provedores de saúde era virtualmente inexistente fora das grandes cidades.

Quarenta anos depois, na Constituição de 1988, foi para o NHS que os formuladores de política pública brasileira se voltaram para estabelecer os parâmetros do SUS, que entraria em ação em 1990 e completa 35 anos nesta sexta-feira (19).

Recentemente, foi o "irmão mais novo" que serviu de inspiração para o sistema britânico. Publicado em julho deste ano pelo governo do trabalhista Keir Starmer, o plano de ação para os próximos 10 anos do NHS detalha uma estratégia conhecida dos brasileiros: o uso de agentes comunitários de saúde. Chamado de Neighbourhood Health Service (serviço de saúde da vizinhança, em inglês), o programa é moldado à imagem do Estratégia Saúde da Família, modelo de atenção primária utilizado no Brasil desde 1994.

"Ficamos muito animados de ver que o programa chamou a atenção do secretário de Saúde e foi incluído na estratégia da próxima década", diz o médico Matthew Harris, pesquisador da Imperial College, em Londres. Depois de uma temporada trabalhando no interior de Pernambuco no início dos anos 2000, durante os primeiros anos do ESF, Harris retornou à sua Inglaterra natal e passou a advogar pela implementação de um sistema similar no NHS.

"No nosso sistema, até recentemente, ficamos esperando que as pessoas cheguem à clínica, ao hospital, não havia uma estratégia pró-ativa de busca", explica o médico. "Não havia oportunidade de simplesmente descobrir os problemas que as pessoas têm no seu dia a dia, isso era realmente único do sistema brasileiro."

Em 2021, ele conseguiu implementar um programa-piloto de agentes comunitários em Westminster, no centro de Londres. Quatro anos depois, o programa se expandiu para 27 localidades, como a Cornuália, região costeira no oeste inglês que conta com 60 agentes comunitários de saúde —com financiamento garantido pelos próximos cinco anos, conta Harris. "Ainda falta muito para alcançarmos a cobertura que o Brasil tem desse serviço, mas vamos avançando", diz.

Apesar das diferenças de território, população —o Brasil é cerca de 35 vezes maior do que o Reino Unido em território, com três vezes mais população— idade e tamanho da economia, muitos dos problemas enfrentados por ambos os sistemas são parecidos. No Reino Unido, a discussão sobre subfinanciamento e lotação do sistema ocupam diariamente as páginas dos jornais.

No final de julho, pouco depois do anúncio do plano de 10 anos para o futuro do NHS, médicos residentes fizeram uma greve de cinco dias demandando melhores condições de pagamento. Aneira Thomas, a enfermeira galesa, diz que por muito anos costumava ir a manifestações por todo o país e se sentia enojada com o fato de médicos, enfermeiros e até cirurgiões precisarem ir às ruas após um plantão noturno para lutar por melhores salários.

"Eu pensava, como, como isso está acontecendo? Me fazia chorar ver pessoas fazendo isso quando elas salvaram vidas, estiveram em uma enfermaria por cerca de 10 a 12 horas e depois marchando por salário."

No Brasil, a pesquisadora Margareth Portela, da Escola Nacional de Saúde Pública, ligada à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) diz que uma parte substancial do financiamento público de saúde acaba indo para os estabelecimentos privados por meio, por exemplo, de isenção fiscal para hospitais filantrópicos ou parcerias público-privadas.

Entre a população britânica, só 14% dos adultos têm acesso à saúde privada, número que sobe para 25% da população no Brasil. "Quando a gente declara lá no Imposto de Renda, que pagou o plano de saúde, a consulta, a gente tem uma isenção que sai da conta do Estado brasileiro", diz Portela.

Ela diz que há, claro, problemas de tempo de espera e de estruturas decadentes em hospitais com baixa manutenção, mas diz acreditar que há também uma falta de confiança na qualidade de cuidado.

"Ser privado não significa ser bom, mas nós vemos cada vez mais pessoas pagando plano de saúde", afirma ela, que defende que seria benéfico para o sistema se as classes mais abastadas passassem a utilizá-lo mais, em vez de recorrer aos serviços particulares.

Harris, o médico inglês, acabou de voltar de uma viagem a Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro, onde levou agentes comunitários de saúde ingleses para conhecer seus colegas brasileiros.

"O que eu ouvi de agentes comunitários de saúde e de alguns dos líderes do sistema é que a ideia de que o NHS está aprendendo com o SUS lhes dá um enorme orgulho, mas acho que é uma pena que isso seja necessário para que os brasileiros vejam que o SUS é bom no que faz."

projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.

Gigantes do álcool, tabaco e ultraprocessados impedem novas políticas de saúde, diz OMS, FSP

 A pressão de empresas de tabaco, álcool e alimentos ultraprocessados está impedindo que governos implementem políticas de saúde que salvam vidas, afirmou a OMS (Organização Mundial da Saúde) nesta quinta-feira (18).

As Nações Unidas dedicarão um dia ao combate a doenças não transmissíveis, como câncer e doenças cardíacas, na próxima quinta-feira durante sua reunião anual em Nova York. A OMS, agência de saúde da ONU, afirma que os produtos dessas indústrias contribuem para tais condições.

Bebidas alcoólicas ilícitas são servidas em festa na cidade de Teerã, no Irã
OMS afirma que governos enfrentam intenso lobby da indústria do álcool, tabaco e alimentos contra reformas na saúde - The New York Times

Relatório da OMS afirma que um investimento de US$ 3 (cerca de R$ 15) por pessoa pelos governos em doenças não transmissíveis poderia salvar mais de 12 milhões de vidas e gerar US$ 1 trilhão (R$ 5 trilhões) de economia até 2030.

O órgão afirma, contudo, que os governos frequentemente enfrentam intenso lobby de indústrias que tentam bloquear, enfraquecer ou atrasar políticas, sejam elas a criação de impostos ou a restrições de marketing para crianças.

"É inaceitável que interesses comerciais estejam lucrando com o aumento de mortes e doenças", disse Etienne Krug, diretor do departamento de saúde, promoção e prevenção da OMS.

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Representantes das indústrias de alimentos, tabaco e álcool rejeitaram essa caracterização.

Na reunião da ONU, os governos devem concordar com novas metas sobre doenças não transmissíveis e com um plano de como chegar lá, mas grupos de saúde afirmam que o rascunho da declaração política foi esvaziado.

Empresas de tabaco como a Japan Tobacco International, bem como associações da indústria de alimentos e cerveja, dizem à Reuters que a ONU os convidou a contribuir com a discussão e que isso pode resultar em políticas mais eficazes.

"Recebemos com satisfação a oportunidade de nos juntar aos Estados membros e defensores para compartilhar nossa perspectiva sobre como reduzir o uso nocivo de álcool", disse Justin Kissinger, presidente da World Brewing Alliance, em nota enviada por e-mail.

A International Food and Beverage Alliance afirmou que não faz sentido equiparar alimentos com álcool e tabaco.

"Discordamos fortemente da caracterização de nossa indústria como agente que obstrui o progresso", acrescentou Rocco Renaldi, secretário-geral da aliança da indústria, que representa empresas de alimentos e bebidas não alcoólicas.

Já empresas de tabaco disseram que a discussão é importante. "A OMS não deve temer o diálogo —deve recebê-lo", afirmou um porta-voz da Philip Morris International.