quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Trump venera o deus da guerra, Elio GAspari, FSP

Às 6h30 de 6 de agosto de 1945, o coronel Paul Tibbets, pilotando o bombardeiro Enola Gay, avisou aos tripulantes: "Estamos transportando a primeira bomba atômica". Às 8h15m a barriga do avião soltou o artefato e Tibbets afastou-se da cena.

A bomba explodiu 43 segundos depois, sobre Hiroshima, uma cidade plana, com milhares de casas de madeira. Ela produziu um clarão, carbonizando as pessoas que estavam saindo para o trabalho. Ainda hoje pode-se ver no museu da cidade, impressa num degrau de granito do banco Sumitomo, a sombra de uma pessoa que estava sentada ali. Foi o que restou dela.

Um homem de terno escuro e gravata vermelha está em pé em uma área elevada, aparentemente gritando ou chamando a atenção. Ao fundo, duas pessoas de costas estão se afastando, uma vestindo um paletó cinza e a outra com um paletó escuro. A cena é cercada por vegetação e um muro branco na frente.
Donald Trump diz a repórteres, jocosamente, que está planejando instalar mísseis nucleares na Casa Branca - Jonathan Ernst/REUTERS

Isso foi o que aconteceu há 80 anos. Passado o tempo, uma fotografia da explosão, autografada por cinco tripulantes do bombardeiro, valia menos que outra, com um simples autógrafo do almirante que comandava a frota americana do Pacífico. "Essa foto da bomba é politicamente incorreta", explicava o gerente da loja de Nova York.

Esse tempo também passou. O politicamente incorreto dominou. Há dias o presidente Donald Trump mandou submarinos com ogivas nucleares para o litoral da Rússia. Se isso fosse pouco, um hierarca avisou que Moscou pode responder a um ataque com seu programa "Mão Morta", graças ao qual as ogivas serão disparadas automaticamente. A cena de um bípede apertando um botão pode ser coisa do passado. Na guerra da UcrâniaVladimir Putin já insinuou que pode usar artefatos nucleares com objetivos táticos. Seriam bombas menos potentes que a de Hiroshima.

Em outubro do ano passado, o jornalista americano George Will escreveu que a Terceira Guerra Mundial já havia começado. Ele argumentava que a Segunda Guerra começou muito antes de setembro de 1939, quando Adolf Hitler invadiu a Polônia. O Japão invadiu a China em 1931, os alemães anexaram a Áustria e tomaram um pedaço da Tchecoslováquia em 1938.

Até aí, poderia ser conversa de jornalista, mas o ministro das Relações Exteriores russo, Serguei Lavrov, já tratou do assunto em pelo menos três ocasiões. Em março, o porta-voz da diplomacia chinesa anunciou que seu país está pronto para "qualquer tipo de guerra".

Noutra ponta da encrenca está Donald Trump. Seus conhecimentos de História são primitivos, porém inquietantes. Seu herói tarifário é William McKinley. Em 1898 ele dobrou a Espanha, tomou as Filipinas, transformou Cuba num protetorado e anexou o Havaí.

Generais e presidentes americanos que vencem guerras em geral se dão bem. Os Estados Unidos foram presididos por seis generais, todos saídos de eleições livres. (O Brasil teve nove, com apenas dois saídos de eleições livres.) A Segunda Guerra deu a Franklin Roosevelt dois de seus quatro mandatos e ao general Dwight Eisenhower, que comandou as tropas aliadas, mais dois. Theodore Roosevelt, sucessor de McKinley, ganhou fama tomando uma colina em Cuba. (Trump costuma posar na frente de um retrato dele, com farda feita na casa Brooks Brothers.)

Seguindo essa escrita, George Bush pai e Lyndon Johnson cavalgaram as guerras do Golfo e do Vietnã, mas caíram dos cavalos em 1992 e em 1968.

Trump já levou o mundo a uma guerra tarifária e pode estar namorando outra, que lhe permita batalhar por um terceiro mandato.

 

Bolsonaro não é réu qualquer, Conrado Hübner Mendes, FSP

 A obra intelectual de Jair Bolsonaro se encerra em mais ou menos cinco linhas:

"Devia ter matado uns 30 mil. O erro foi torturar e não matar. Não estupro porque não merece. Vou legalizar milícias. Não sou coveiro. A minoria tem que se curvar à maioria. O afrodescendente mais leve pesava sete arrobas. Rolou um clima. Dirás a verdade. Fake news faz parte da vida. Fora, Folha! Sou perseguido. Ficar em casa é para os fracos. A Constituição sou eu. Não vou mais obedecer. Amo a liberdade."

O pensamento oral de Bolsonaro gozou do mais extravagante regime da liberdade de expressão que se tem notícia para um homem público no país. Sempre foi duvidosa sua constitucionalidade.

Violava a lei, mas o STF (Supremo Tribunal Federal) se acostumou a liberá-lo com base na seguinte teoria: "apesar da grosseria e da vulgaridade, não parece ter extrapolado limites". Essa síntese da leniência jurídica foi de Alexandre de Moraes.

Um homem com cabelo castanho claro e pele clara está falando em um evento. Ele usa uma jaqueta preta com detalhes verdes e gesticula com a mão, apontando para cima. Ao fundo, há uma pessoa com pele escura, parcialmente visível. O ambiente parece ser ao ar livre, com uma iluminação natural.
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), fala com a imprensa em julho, antes da imposição de medidas cautelares pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em julho - Mateus Bonomi - 17.jul.25/AFP

Bolsonaro-presidente liderou política pública extraoficial de censura na sua forma mais insidiosa: por meio de intimidação e ameaça, quando não do assédio policial e judicial, buscou promover auto-censura de muitos jornalistas, professores, artistas e opositores. Não precisou criar departamento de censura. Deixou que o medo terceirizasse o trabalho. Conquistou o silêncio dos que não tinham estrutura para o risco.

Bolsonaro-réu da acusação do mais grave crime do Código Penal brasileiro tem, no curso do processo, os mesmos direitos? Bolsonaro-réu não é réu qualquer. Tanto por sua força social, quanto por comportamento que aciona sua rede de desinformação, cria desafios especiais à Justiça.

Quando desobedece a ordens judiciais e usa as redes para obstruir e coagir, regime de maior restrição, ainda que momentâneo, pode ser necessário. Está em jogo a legitimidade da corte para decidir e se fazer obedecer.

Bolsonaro tem a mais cara equipe de advogados que o dinheiro pode pagar. Todas as ferramentas do direito de defesa dentro e fora do processo estão à disposição. Sua dignidade tem sido tratada de maneira oposta à maneira como sempre propôs tratar minorias. A como o próprio Judiciário costuma tratar minorias.

O grito genérico pela liberdade de expressão, por isso, erra a mira. Não estamos na Ágora grega, na praça pública ou num livre mercado de ideias. John Stuart Mill deveria ser atualizado no século 21. Pois não há verdade que emerja espontaneamente da circulação customizada de ideias forjadas para manipular e radicalizar. Um espaço desenhado por algoritmo secreto não promove "confronto de ideias". Gera dinheiro para o dono.

Não se pode subestimar a periculosidade do movimento insurrecionista turbinado pela máquina. É urgente promover liberdade de expressão em condições de igualdade. Desde que se entenda o ecossistema em que a comunicação pública se desenvolve hoje.

Nada disso recomenda chancela automática a cada medida cautelar do STF. Mas o confuso duelo retórico entre a defesa abstrata da liberdade de expressão, de um lado, e a da democracia, de outro, não vai ajudar.

Há razões para prisão preventiva de Bolsonaro. Em vez do cárcere, Moraes optou por alternativa mais branda. Impôs, contudo, vedações escorregadias a posts em rede social, sem conexão precisa com o crime de obstrução da Justiça.

O problema não é a liberdade de expressão de Bolsonaro. É a falta de precisão do STF. STF precisa fazer mais e melhor, não menos.

Ruy Castro - Jogando Bolsonaro ao mar, FSP

 Já aconteceu antes. Era uma vez um político que, legitimamente eleito, vestiu a farda de ditador e tentou impor ao mundo seu estilo de governar —intimidar, dividir, desestabilizar, perseguir, humilhar, subjugar, expulsar e tocar o terror. Com que fim? O de estabelecer sua bolha, expandir sua dominação, consolidar seu poder. Para isso, valeu-se também de recuar, contradizer-se, abandonar parceiros e parecer imprevisível —como alguém pode se defender se não sabe como será o ataque?

Quem é? Adolf Hitler? Não. Donald Trump. Veem-se nos dois essas mesmas táticas e estratégias e em função de igual objetivo: a implantação de um Reich planetário —um império gigante, totalitário, quaquilionário, livre de pretos e morenos e, se possível, imortal. Mas não é tão fácil. O de Hitler, de sólidas engrenagens e que ele garantia que iria durar mil anos, parou nos 12. O de Trump não chegará nem perto. Seu titular é instável e ignorante demais para executar um programa —qualquer um.

Já podemos avaliá-lo por suas investidas contra o Brasil. Ao sequestrar a economia brasileira supostamente em defesa de Bolsonaro, Trump só conseguiu o contrário: alertou os indecisos para o fato de que o "Brasil acima de tudo" era conversa fiada e afundou Bolsonaro nas pesquisas. Seguindo esse raciocínio, quanto mais Trump prejudicar o país, em função de um homem que 60% da população quer ver na cadeia, só piorará a situação de Bolsonaro e dos que o apoiam. Isso inclui a banda do Congresso que, neste momento, aparenta defender Bolsonaro e que o abandonará assim que sentir a mudança do vento.

Com ou sem Trump, Bolsonaro será julgado, condenado e preso, com hora certa para apagar a luz da cela. E não será surpresa se, mais ocupado com um escândalo interno por pedofilia e por suas disputas com a Rússia, Trump, como já fez com tantos, virar as costas a Bolsonaro —que, por sinal, ele só viu duas vezes na vida, talvez uma.

Os dois têm uma coisa em comum: não vacilam em jogar os amigos ao mar.