terça-feira, 5 de agosto de 2025

Carmen Miranda: como estrela portuguesa virou maior símbolo internacional do Brasil, FSP

 Edison Veiga

Bled (Eslovênia)
BBC News Brasil

A morte de Carmen Miranda há 70 anos, na madrugada de 5 de agosto de de 1955, precipitou um solene Carnaval fora de época no Rio de Janeiro que ela tanto amava.

Nem bem a notícia chegou ao Brasil e, pelo Repórter Esso, a Rádio Nacional a transmitiu ao país, todas as emissoras brasileiras passaram a tocar hits eternizados pela cantora e atriz conhecida como "A Pequena Notável". "Taí, Disseram que voltei americanizada, O que é que a bahiana tem?", tão alegres e carnavalescas, comunicavam a tristeza que permeava a nação.

Quem conta a história é o jornalista Ruy Castro, na mais completa e detalhada biografia a respeito dessa mulher que, nascida em Portugal e alçada ao estrelato internacional nos Estados Unidos, onde morreu, acabou se tornando o maior símbolo mundial da cultura brasileira, a Brazilian Bombshell.

Em "Carmen - A Vida de Carmen Miranda, a brasileira mais famosa do século XX" (Companhia das Letras, 2005), Castro afirma que as músicas de Carmen, trazidas novamente à tona naquele mês, funcionaram como "uma espécie de senha para um carnaval em agosto".

Segundo desejo de Carmen Miranda, ela foi enterrada no Rio, no cemitério São João Batista. De acordo com "Carmen Miranda foi a Washington" (Record, 1999), escrito pela jornalista Ana Rita Mendonça, 12 igrejas do Rio celebraram missa de sétimo dia em memória da artista.

O caixão chegou ao país apenas na semana seguinte e, na noite do dia 12 para o 13 de agosto, houve um velório aberto na Câmara dos Vereadores.

"Alguns se chocaram com o fato de Carmen estar vestida de vermelho, penteada e maquiada; outros se encantaram com isso - em Hollywood, até a morte era em Technicolor!", escreve Castro.

"Por toda a noite de 12 para 13 de agosto, o Rio desfilou em silêncio diante de Carmen. E gente de outras cidades, usando todos os transportes disponíveis, veio se despedir dela."

"Nem o frio da madrugada afugentou seus adoradores", ressalta o escritor.

Membros da Velha Guarda, como Pixinguinha, Donga, João da Baiana e outros companheiros, tentaram tocar Taí para saudá-la pela última vez, postados nas escadarias da Câmara. Não conseguiram.

"As gargantas se fechavam, o saxofone e a flauta não produziam som, a emoção era muita", descreve Castro. A marchinha acabou sendo entoada por um coro de mais de 50 mil vozes.

Em dado momento, o cortejo rumo ao cemitério, em carro de bombeiros, foi seguido por um caminhão de som que tocava os discos de Carmen. O último percurso da estrela, assim, foi como os fãs gostavam de vê-la: com música, muita música.

Carmen Miranda, em filme de 1953 - Arquivo Nacional

Uma carreira ascendente

Maria do Carmo Miranda da Cunha nasceu em Marco de Canaveses, em Portugal, em fevereiro de 1909. Sua família já havia decidido emigrar para o Brasil. Carmen Miranda chegou ao Rio de Janeiro com menos de 1 ano de idade.

Irmã de outros cinco, a garota estudou em uma escola de freiras e, aos 14 anos, teve seu primeiro emprego. Trabalhou em uma loja de gravatas e, depois, em uma chapelaria.

Era uma menina que já gostava de cantar e era elogiada por isso. Em 1928, foi apresentada à Rádio Sociedade Professor Roquete Pinto e passou a se apresentar lá. No ano seguinte, gravou sua primeira música, o samba Não Vá Sim'bora, composição de Josué de Barros.

Dali por diante, foi só ascensão. Em 1930, Carmen Miranda gravou a marcha-canção Pra Você Gostar de Mim, também chamada de Taí. O disco vendeu 35 mil cópias apenas no ano de lançamento - um recorde que fez com que a jovem cantora fosse aclamada como "a melhor do Brasil".

Carmen se tornou uma das estrelas da chamada "era de ouro" do rádio no Brasil e, ao mesmo tempo, passou a emprestar corpo e voz ao início da indústria cinematográfica no Brasil - especialmente, nos musicais.

Depois de aparições tímidas em produções anteriores, como o longa musical Alô, Alô, Brasil, de 1935, ela teve o espaço de um estrela popular de primeira grandeza.

Carmen Miranda, em foto dos anos 1940 - Arquivo Nacional

Carmen Miranda viveu anos enfileirando um projeto atrás do outro. Era uma fase de filmes que tinham enredo feito apenas como pretexto para encadear números musicais.

Autora de um estudo acadêmico sobre Carmen Miranda, a pesquisadora Renata Couto, professora da Universidade Unigranrio Afya, acredita que paire um preconceito sobre a relevância da artista. "Boa parte das pessoas faz um julgamento muito apressado sobre ela", diz à BBC News Brasil.

"Parte disso, por ela ser uma mulher. A outra parte é pela figura que ficou consagrada da Carmen, que incorpora essa baiana estilizada, quase uma caricatura do que seria o Brasil."

A baiana estilizada conquista os EUA

Em 1939, o filme "Banana da Terra" apresentou a versão mais icônica de Carmen Miranda: ela vestindo uma versão estilizada de um figurino que representava uma baiana tradicional.

No número, ela interpretava O que é que a bahiana tem?, de Dorival Caymmi - e muitos apontam que o sucesso desse filme acabou impulsionando a carreira e o prestígio do compositor e cantor.

Fato é que Carmen, uma portuguesa criada no Rio de Janeiro, incorporou essa imagem caricaturada da baiana em suas apresentações dali por diante. Era este seu figurino quando, um pouco antes do Carnaval de 1939, ela se apresentou no badalado Cassino da Urca e chamou a atenção do produtor americano Lee Shubert, que estava na plateia.

Shubert era dono da empresa que geria metade dos teatros da Broadway. Um magnata do entretenimento americano, portanto. Ele contratou a artista para se apresentar lá, e, em maio daquele ano, ela embarcou rumo a Nova York.

Nos Estados Unidos, Carmen Miranda fez sucesso com suas vestes estilizadas e o arranjo de frutas sobre a cabeça. Intelectuais brasileiros torceram o nariz: para eles, aquilo era uma visão estereotipada e errônea do Brasil.

"Carmen foi uma das primeiras artistas a representar o Brasil no exterior de forma icônica, antes mesmo de Pelé ou da bossa nova", diz à BBC News Brasil Gisele Jordão, coordenadora do curso de Cinema e Audiovisual da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

"A imagem do Brasil como país alegre, exótico e musical tem muito da marca que ela deixou. Essa projeção foi absorvida pela publicidade, pelo turismo e pela diplomacia cultural, criando um 'Brasil tipo exportação' que ainda hoje molda o imaginário internacional."

Soft power

Com a Segunda Guerra Mundial, a chamada política de boa vizinhança entre os Estados Unidos e a América Latina acabou favorecendo uma artista como Carmen Miranda.

Ou pode ter sido o contrário. Como documenta Ruy Castro, ela já era um sucesso inquestionável antes de a política de aproximação ser implementada.

"Ela já tinha uns dez anos de sucesso aqui no Brasil quando foi aos Estados Unidos. Evidentemente, conquistou o mundo com a verve artística, a comunicabilidade, a extroversão. Era uma mulher notável quanto à expressão", ressalta à BBC News Brasil o musicólogo Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor aposentado da Universidade Estadual Paulista e ex-professor colaborador da ECA-USP.

Tão logo a estrela começou a se apresentar nos Estados Unidos, projetos cinematográficos foram surgindo para ela, que logo ganharia projeção internacional.

Cartaz do filme 'Banana da Terra', de 1939 - Domínio Público

"Não há como negar a onipresença da Carmen Miranda nos anos 1930 e, sobretudo, 1940. Seu gigantismo e sua exuberância marcaram e marcam até hoje o mundo teatral, musical e cinematográfico", diz Ikeda.

Nesse sentido, Castro explica que a política da boa vizinhança pode até ter se aproveitado do brilho de Carmen - e da sua conveniente caracterização como brasileira, ainda que uma caracterização estereotipada.

Gisele Jordão vê um alinhamento "total" entre Carmen Miranda e o projeto de soft power do governo americano. "A presença dela em Hollywood não é fruto apenas de seu talento, mas também de um projeto geopolítico", ressalta a professora.

"Durante a Segunda Guerra, os Estados Unidos buscavam estreitar laços com a América Latina para conter influências europeias e garantir apoio hemisférico. Carmen se encaixou perfeitamente nessa estratégia: era latina, mas controlável; exótica, mas divertida; uma embaixadora cultural informal", destaca.

"Seu corpo e sua voz foram mobilizados como instrumentos simbólicos de um Brasil amigo e cooperativo."

Mas para Ikeda, entretanto, "o que não se pode é atribuir à Carmen Miranda [a intenção] de ser ela um instrumento dessa projeção política e artística dos Estados Unidos no mundo".

Seu auge no cinema foi durante os anos da Segunda Guerra - ela estrelou 8 de seus 14 filmes nessa primeira metade dos anos 1940. Suas personagens não eram identificadas como brasileiras, mas sim latino-americanas, de modo genérico e indefinido.

A essa altura ela já havia se instalado nos Estados Unidos. Como convinha a uma estrela, morava em Beverly Hills, na Califórnia. Foram 14 anos sem pisar no Brasil, para onde voltou, em férias, em dezembro de 1954.

Em uma consulta, seu médico a diagnosticou como dependente química - ela abusava de barbitúricos e álcool - e submeteu-a a um tratamento de quatro meses em uma suíte do hotel Copacabana Palace. Ela voltou aos Estados Unidos somente em abril de 1955.

Ainda faria uma turnê em Las Vegas e em Cuba e receberia uma proposta do canal CBS para ter um programa semanal na TV. No dia 4 de agosto de 1955, participou do programa de Jimmy Durante, na NBC. Foi encontrada morta no corredor da sua casa na manhã seguinte, vítima de um ataque cardíaco.

Carmen Miranda fotografada por Annemarie Heinrich em 1935 - Domínio público

Símbolo de brasilidade?

Para Jordão, Carmen se tornou símbolo de brasilidade porque encarnou, de forma "performática e midiática", um Brasil "que o próprio Brasil estava tentando entender e vender".

Renata Couto ressalta que não se pode ignorar o papel de Carmen Miranda como uma "mulher extremamente revolucionária, que tinha um comportamento pioneiro" em seu tempo: "Ela não se encaixava nos padrões tradicionais e esperados do que era ser mulher nas décadas de 1920 e 1930 no Brasil".

Jordão ressalta que, embora tivesse nascido em Portugal, a artista cresceu no Brasil e teve sua identidade artística forjada no rádio, nos teatros de revista e no início da indústria fonográfica nacional.

"Ao assumir elementos da cultura popular, especialmente a música afro-brasileira e os trajes das baianas, ela se tornou uma tradução possível, ainda que estilizada, do que se queria projetar como 'alma brasileira'. É um caso clássico de uma brasilidade construída mais pela forma como é vista do que pela realidade que representa."

"Essa imagem foi construída a muitas mãos. Envolve o rádio, a indústria cultural, o Estado Novo, o cinema hollywoodiano e também o contexto da política de Boa Vizinhança com os Estados Unidos", diz Jordão.

"Carmen foi moldando sua persona a partir de códigos reconhecíveis: a tropicalidade, a sensualidade, o ritmo do samba, mas sempre com uma estética amplificada, quase caricatural."

Era um Brasil do teatro de revista. Lúdico, alto astral, popular e festivo. "Não era uma representação direta do Brasil real, mas sim de um Brasil performado, que pudesse circular internacionalmente", afirma Jordão.

"Sua imagem visual, com turbantes, frutas e tecidos exuberantes, é resultado de escolhas estéticas que dialogavam tanto com o imaginário externo quanto com a cultura visual interna", prossegue.

Para Couto, no entanto, Carmen Miranda vendia não uma ideia de Brasil, mas de América Latina: "Foi uma mulher latina, representou a latinidade. Essa imagem da Carmen como Brasil tipo exportação, eu diria que é uma coisa muito recente".

Os elementos da criação da personagem Carmen Miranda também são creditados a Dorival Caymmi. O autor de O que é que a bahiana tem?' orientou a cantora até no gestual para o filme de 1939. Para Jordão, a relação de ambos foi de uma "dinâmica de tradução performática".

"Ela potencializou a letra, exagerando nas cores. Mas a música já descrevia esse Brasil tropical, essa baiana que requebra bem, essas coisas", pontua Ikeda.

Jordão concorda. "Enquanto Caymmi construía uma Bahia musicalizada com traços de melancolia, espiritualidade e identidade negra, Carmen devolvia essa imagem sob a lente do espetáculo: colorida, exagerada, teatral", comenta.

"Ela não era exatamente um alter ego, mas uma amplificação estilizada do universo que Caymmi evocava. Nessa amplificação, ganha-se potência midiática, mas perde-se parte da densidade simbólica."

Para a especialista, este é mais um exemplo da ambiguidade de sua trajetória. Afinal, Carmen foi o que se diz de "uma mulher à frente do seu tempo, carismática, irreverente e pioneira".

"Mas também um corpo a serviço de estereótipos e interesses geopolíticos. Ao performar a baiana em Hollywood, ela transformou um símbolo de resistência negra em emblema de uma brasilidade exportável, palatável ao gosto estrangeiro, mas distanciada de suas raízes afrobrasileiras."

Este texto foi originalmente publicado aqui.

Podemos ficar presos nos sonhos de uma inteligência alienígena, diz Yuval Harari, FSP

 

São Paulo

As histórias que compartilhamos e que são frutos da imaginação coletiva nos ajudaram a prosperar como espécie. É o que tem defendido o historiador israelense Yuval Noah Harari, que se tornou um dos maiores best-sellers mundiais desde a publicação de "Sapiens - Uma Breve História da Humanidade" (Companhia das Letras).

Um homem com cabeça calva e óculos, vestindo um paletó escuro e uma camisa clara. Ele está olhando para a frente com uma expressão séria. Ao fundo, há uma iluminação suave e um ambiente que parece ser um estúdio ou sala de conferências.
O historiador israelense Yuval Noah Harari em um debate na Feira do Livro de Frankfurt em 2024 - Kirill Kudryavtsev /AFP

O problema, diz ele, é que agora não dá mais para saber se a história que ouvimos não está saindo da boca de um robô. Se em filmes como "Matrix" as máquinas controlavam os humanos conectando seus cérebros a uma rede, a inteligência artificial pode usar a mesma arma de profetas e poetas: a linguagem.

"Filósofos como Platão alertaram que poderíamos ficar presos em ilusões humanas. Agora enfrentamos perigo maior: ficarmos presos nos sonhos de uma inteligência alienígena", diz o historiador em entrevista à Folha.

Harari vem ao Brasil para o lançamento, no dia 17 de agosto, do SP2B, festival de inovação, criatividade e desenvolvimento urbano que vai ocupar o parque Ibirapuera no ano que vem, com mais de 20 espaços.

O novo evento quer ser a versão brasileira do South by Southwest (SXSW), influente festival de inovação dos EUA, voltado para tecnologia, mídia e cultura. E foi desenvolvido quando o festival americano decidiu pausar sua expansão global, pondo fim a negociações em curso para trazer o SXSW ao Brasil.

Os organizadores do SP2B são os mesmos do Rio2C, evento da indústria criativa no Rio de Janeiro que tangencia temas semelhantes. Mas, segundo Rafael Lazarini, CEO da Da20, empresa responsável, enquanto o festival carioca é "80% voltado à indústria criativa e 20% à inovação e tecnologia", o parente paulistano aposta no caminho inverso.

O evento de lançamento terá a presença de Hugh Forest, que liderou por décadas o SXSW, e um show de Gilberto Gil em homenagem a São Paulo.

Harari, por sua vez, vai ser o responsável pela palestra de abertura. Nesta entrevista à Folha, ele discute os impactos da inteligência artificial para as narrativas humanas, debate os efeitos dela para a paz mundial e analisa a aliança entre bilionários da tecnologia e o governo Donald Trump.

Parece haver um discurso apocalíptico forte envolvendo a IA. Afinal, essa tecnologia pode nos destruir?
Algo estranho nessa indústria é que muitas pessoas que correm para construir uma IA avançada vivem alertando sobre seus perigos.

Quando converso com fundadores dos principais laboratórios de IA, eles contam uma história semelhante: adorariam reduzir o ritmo e investir mais em segurança, mas não confiam que os concorrentes nos EUA ou na China farão o mesmo. Por isso, dizem não ter opção a não ser acelerar ainda mais.

Na IA, é impossível prever todas as possíveis catástrofes. A inteligência artificial não é só uma ferramenta; é um agente. IAs podem tomar decisões, ter ideias totalmente novas e criar IAs superiores. Não sabemos como a IA evoluirá —e isso a torna tão perigosa.

Não entendo a lógica desses pesquisadores que correm para criar IAs mais poderosas. Quando dizem que não confiam nos concorrentes humanos, pergunto: "Vocês acham que poderão confiar numa IA superinteligente?". Eles respondem que sim! Isso parece insano.

Com humanos, ao menos temos experiência e conhecimento de psicologia. Nunca lidamos com IA superinteligente. Não há como prever o que acontecerá quando milhões de agentes superinteligentes começarem a interagir conosco —e entre si.

A IA tem imenso potencial positivo —e negativo. Pode nos salvar ou nos destruir. O desfecho depende de os seres humanos confiarem mais uns nos outros do que confiam na IA. Se a humanidade cooperar para desenvolver IA com segurança, será a melhor invenção da história. Mas, se for criada por uma corrida armamentista entre pessoas que se odeiam e temem, é provável que nos destrua.

Em filmes como Matrix, as IAs controlam humanos conectando fisicamente seus cérebros a uma rede. Mas não há motivo para as IAs recorrerem a isso.

Yuval Noah Harari

Historiador

O sr. já escreveu sobre o poder das narrativas em moldar sociedades humanas. A IA pode mudar nossa relação com essas histórias e nossas crenças coletivas?
Antes da IA, todas as histórias que moldavam as sociedades vinham da imaginação humana. Por mais estranha —fosse um mito religioso ou uma teoria conspiratória—, sabíamos que um humano a inventara. Hoje, pela primeira vez, perdemos essa certeza. Não só não sabemos se a história que ouvimos foi criada por uma IA como tampouco sabemos se quem a conta não é um robô.

Em filmes como "Matrix", as IAs controlam humanos conectando fisicamente seus cérebros a uma rede. Mas não há motivo para as IAs recorrerem a isso. Se quiserem manipular pessoas, basta a linguagem —a mesma arma que profetas e poetas usam há milênios.

A cultura é um casulo de histórias. Vivemos dentro dele. Tudo, dos hábitos sexuais às convicções religiosas, é moldado por narrativas. Por milênios, filósofos como Platão e Buda alertaram que poderíamos ficar presos em ilusões humanas. Agora enfrentamos perigo maior: ficarmos presos nos sonhos de uma inteligência alienígena —sonhos potencialmente mais persuasivos e enganosos do que qualquer história já criada por humanos.

Que efeitos a aliança entre lideranças do Vale do Silício e o governo Donald Trump vai trazer para o desenvolvimento dessa tecnologia?
Creio que muitos desses executivos se aproximaram de Trump porque viram uma chance de avançar suas agendas. No Departamento de Eficiência Governamental de Elon Musk, por exemplo, fica claro que o objetivo principal não era cortar gastos públicos, mas transferir poder de burocratas humanos para burocratas de IA.

A ideia era demitir humanos e substituí-los por IAs —algo muito lucrativo para quem desenvolve sistemas poderosos, como Musk. Mas isso não tornaria o governo mais transparente ou responsável; na verdade, o deixaria ainda mais obscuro.

Se a aliança entre Trump e parte do Vale do Silício se mantiver, veremos sistemas de IA se espalharem pelo governo, deslocando pessoas de posições de autoridade. E, como o governo Trump se opõe à regulação, a IA acabará tomando mais decisões em todos os setores da economia.

Alguns podem aplaudir a transferência de poder dos burocratas humanos para algoritmos. Burocratas têm má reputação. Mas é importante lembrar que nenhuma sociedade em grande escala funciona sem eles. E, se você acha ruim lidar com burocratas humanos, espere até encarar um algoritmo sem rosto decidindo se você consegue um emprego, um empréstimo —ou se vai para a prisão.

A IA se dissemina num momento em que a ordem mundial que garantiu a paz por décadas parece se desfazer. Que tipos de conflitos podemos esperar?
Infelizmente, a revolução da IA ocorre justamente quando a ordem liberal global colapsa. Isso dificulta criarmos regras comuns para o desenvolvimento da IA e aumenta o risco de ela acirrar conflitos violentos.

A ordem liberal global tinha falhas, mas tornou a humanidade mais próspera e segura do que nunca. Seu tabu mais importante era: países fortes não podem simplesmente invadir e conquistar países mais fracos pela força das armas. Com essa ordem sendo desmantelada, o tabu sumiu. Vemos isso na invasão russa da Ucrânia, cujo objetivo é pura e simplesmente conquistar o país —algo que não víamos desde 1945. Os EUA falam em anexar Groenlândia, Panamá e até o Canadá; a China quer Taiwan; Israel quer anexar Gaza; a Venezuela deseja a Guiana; a Etiópia mira partes da Eritreia. Quando se destrói a ordem, sobra o caos.

Isso aparece nos Orçamentos: os gastos militares disparam, tirando dinheiro de saúde e educação. Muitos Exércitos investem esses recursos em capacidades de IA.

Imagine uma guerra futura, digamos, entre Otan e Rússia. Um lado entrega à IA a autoridade de selecionar e matar alvos; o outro mantém humanos decidindo tudo. Quando o humano ordenar que seu drone atire, ele já terá sido abatido por um drone totalmente autônomo. A pressão para dar mais autoridade à IA será irresistível. Isso tornará navios, aviões e tanques atuais obsoletos.

Os políticos que destroem a ordem liberal global não parecem perceber essas consequências. Acham que ficarão mais poderosos. Talvez a curto prazo. A longo, só vão transferir poder de humanos para robôs.

Sim, precisamos de inteligência para alcançar metas, mas o que define a vida é a consciência; sentimentos são a base da ética. Devemos ter muito cuidado para não acabar com um universo cheio de inteligência e vazio de sentimento.

Yuval Noah Harari

Historiador

O que muda no cenário global a depender de quem vença a corrida pela IA, China ou Estados Unidos?
Há poucos bons desenlaces para uma corrida armamentista de IA. Como mencionei, isso dificulta a cooperação para garantir um desenvolvimento seguro e incentiva nações a investir nas formas mais perigosas de IA militarizada.

Na Guerra Fria, EUA e URSS eram contidos pela destruição mútua garantida: sabiam que, se atacassem com armas nucleares, também seriam destruídos. Hoje não existe freio semelhante. A imprevisibilidade da evolução da IA torna tudo ainda mais arriscado. O que acontecerá se a China achar que os EUA estão perto de desenvolver uma IA tão poderosa que poderia desativar seus mísseis nucleares? A teoria dos jogos diz que o momento mais perigoso numa corrida armamentista é quando um lado sente que sua vantagem está desaparecendo. Podemos estar chegando exatamente a esse ponto.

Quais habilidades ou valores devemos ensinar às crianças para prepará-las para um mundo dominado pela inteligência artificial?
As pessoas precisarão, acima de tudo, da capacidade de continuar aprendendo, mudando e se reinventando repetidamente. Cultivar essa capacidade exigirá uma reformulação completa dos nossos sistemas educacionais. Nas provas finais, os alunos não deveriam ser avaliados por repetir algo que memorizaram, mas sim por lidar com algo novo que nunca encontraram antes. Uma educação útil para a era da IA deve ajudar a pessoa a se sentir confortável diante do desconhecido. As pessoas que prosperarão nas próximas décadas serão aquelas capazes de enfrentar o caos e a incerteza sem perder o equilíbrio mental.

O desenvolvimento da superinteligência —a chamada IA geral— até o momento parece apenas uma abstração. Acredita que a humanidade chegará a essa tecnologia?
Há grande confusão entre inteligência e consciência. Inteligência é a capacidade de atingir objetivos e resolver problemas —por exemplo, vencer no xadrez. Consciência é a capacidade de sentir dor, prazer, amor e ódio. Nos animais orgânicos, inteligência depende da consciência: usamos sentimentos para resolver problemas. Nas IAs não orgânicas, é diferente: elas já superam humanos em algumas áreas —como xadrez—, mas sem consciência. Elas não sentem nada. Quando uma IA vence, não sente alegria; quando perde, não fica triste. Não há indícios de que computadores caminhem para desenvolver consciência.

Pode haver vários caminhos até a superinteligência, e só alguns exigem consciência. Assim como aviões voam mais rápido que pássaros sem desenvolver penas, computadores podem resolver problemas melhor do que humanos sem desenvolver sentimentos. Claro que, graças à alta inteligência, IAs poderão imitar emoções e nos convencer de que são conscientes. Vai ser cada vez mais difícil saber se uma IA é consciente.

Consciência é muito mais importante do que inteligência. Sim, precisamos de inteligência para alcançar metas, mas o que define a vida é a consciência; sentimentos são a base da ética. Uma ação má é algo que faz alguém sofrer; uma ação boa reduz o sofrimento. Devemos ter muito cuidado para não acabar com um universo cheio de inteligência e vazio de sentimento.


RAIO-X | Yuval Noah Harari, 48

Nascido em Israel, é professor na Universidade Hebraica em Jerusalém e pesquisador na Universidade de Cambridge. Formado em história militar e medieval na Universidade Hebraica, tem doutorado pela Universidade de Oxford. Autor dos best-sellers mundiais "Sapiens - Uma Breve História da Humanidade", "Homo Deus - Uma Breve História do Amanhã" e "21 Lições para o Século 21", traduzidos para 65 idiomas.