domingo, 22 de setembro de 2024

Samuel Pessôa - Sequestrados por Keynes, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Uma das maiores tragédias sociais do século 20 foi a Grande Depressão. Entre 1932 e 1938, a taxa de desemprego nos EUA situou-se acima de 16%, atingindo 21% no pico.

Keynes mostrou que era relativamente simples resolver o problema. Era necessário que os economistas abrissem mão da ideia de que o sistema se corrigia automaticamente. A política fiscal expansionista, esta sim, corrigia o problema. Sem custos, a expansão fiscal colocava a economia para rodar, e o desperdício de recursos e toda a tragédia social podiam ser facilmente superados.

Retrato do economista John Maynard Keynes
Retrato do economista John Maynard Keynes - Reprodução

No pós-Guerra, com todo o sucesso da reconstrução da Europa, ficou a impressão de que a superação do subdesenvolvimento poderia ser alcançada da mesma forma que a do desemprego foi atingida.

Toda uma área da economia —chamada de alta teoria do desenvolvimento— tentava encontrar uma falha de mercado e uma ação do setor público que poderia abrir o caminho para a superação do subdesenvolvimento.

A ideia era que o subdesenvolvimento, com o desemprego escondido ou subemprego, representava um desperdício equivalente ao da Grande Depressão e que uma ação do Estado, com alguma política macroeconômica em geral relativamente simples, poderia resolver a falha de mercado.

Todos quiseram ser o Keynes do subdesenvolvimento. Nomes com Paul Rosenstein-Rodan, Ragnar Nurske, Arthur Lewis e, por aqui, Celso Furtado, entre outros, se candidataram. Hoje, o novo-desenvolvimentismo do professor Bresser-Pereira é o filho mais recente desse programa de pesquisa.

Como escreveu Paul Krugman em seu prefácio da edição do aniversário de 60 anos da Teoria Geral, talvez Keynes tenha se deparado com o único problema complexo em ciência social que tinha uma solução relativamente simples. Bastava trocar o motor de arranque que o carro da economia voltava a andar.

Desde os anos 1980, o consenso na teoria do desenvolvimento entre os pesquisadores é que a superação do subdesenvolvimento é um problema de natureza qualitativa muito distinto da redução da amplitude do ciclo econômico.

A superação do subdesenvolvimento depende da construção de um sistema público de educação fundamental universal de qualidade. Os países latino-americanos, apesar do aumento do orçamento, não têm conseguido avançar.

Adicionalmente, a superação do subdesenvolvimento depende da construção de um marco legal institucional que estimule a eficiente alocação da capacidade produtiva do país.

Em ambos os casos, educação e instituições, temos diagnósticos simples de execução muito difícil.

Em vez da grandiloquência macroeconômica, estamos no campo sem charme das inúmeras reformas microeconômicas que, aos pouquinhos, se conseguirmos fazer tudo certo por muito tempo, produzirão o crescimento da produtividade do trabalho por aqui.

Há espaço para o setor público na oferta de bens públicos, principalmente infraestrutura física e humana, mais esta do que aquela, e no estímulo à absorção de novas tecnologias. Novamente, nada muito charmoso.

Não temos avançado muito nas últimas décadas.

Reinaldo José Lopes O mundinho que existe na cabeça de um rato, FSP

 Brincar de esconde-esconde com ratos de laboratório parece o tipo da proposta de pesquisa feita sob medida para ser agraciada com o Ig Nobel, mas convém não julgar a ideia antes de saber quais os resultados desse tipo de estudo.

Quem se dispôs a brincar com os roedores descobriu, por exemplo, que eles se recordam do lugar onde a pessoa se escondeu na rodada anterior do jogo, achando-a mais rapidamente caso ela repita o esconderijo.

Quando eles mesmos estão se escondendo e cabe ao pesquisador procurá-los, os bichos sabem que é melhor não se esconder sempre no mesmo lugar; sabem também que é melhor se esconder num compartimento de paredes opacas, e não num transparente; e sabem que precisam ficar quietinhos no mesmo canto até ser encontrados. E todo esse aprendizado acontece graças a um tipo muito simples de recompensa: os carinhos do colega de brincadeira humano.

Imagem mostra um rato branco dentro de uma caixa transparente em um laboratório
Os ratos se recordam do lugar onde a pessoa se escondeu na rodada anterior do jogo - Tom Little - 18.nov.23/Reuters

O surpreendente talento para o esconde-esconde é apenas uma das janelas para o mundinho cognitivo do Rattus norvegicus abertas recentemente pela ciência. Um resumão do que já sabemos, e do muito que ainda nos falta saber, acaba de sair no periódico especializado Science, em artigo assinado por Inbal Ben-Ami Bartal, da Escola de Ciências Psicológicas da Universidade de Tel Aviv.

A tentação de enxergar os bichos como simples pragas urbanas ou modelos úteis para a pesquisa biomédica acaba obscurecendo o que talvez seja o aspecto mais importante da espécie: os ratos são criaturas intensamente sociais. Nisso, eles e nós somos tipos muito parecidos de mamíferos, e é desse aspecto da natureza dos ratos que têm vindo as descobertas mais impressionantes.

A grande palavra-chave parece ser "empatia". Abstraia as platitudes "gratiluz" que andaram aderindo ao termo nos últimos anos —a questão aqui é a capacidade de entender estados mentais de outros indivíduos, e nisso os ratos parecem se sair um bocado bem.

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Os bichos conseguem aprender a se virar dentro de uma gaiola-labirinto ou a realizar determinada tarefa apenas observando colegas de espécie fazendo as mesmas coisas antes deles. Também são capazes de aprender a temer algo observando reações de medo em outros roedores ou até em seres humanos. Mais importante ainda, diversos experimentos já mostraram que eles fazem de tudo para evitar o sofrimento de companheiros de espécie.

Ratos evitam pisar em interruptores ou apertar alavancas quando percebem que essa ação pode fazer com que outro rato receba um leve choque elétrico, por exemplo. Aprendem rapidamente a abrir portinholas e assim libertar companheiros de espécie que tinham ficado presos sozinhos, mesmo sem receber nenhuma recompensa. E, se têm a opção de pegar uma guloseima apenas para si próprios ou uma para eles e outra para um companheiro, preferem a segunda possibilidade.

É inevitável considerar que descobertas como essa têm implicações éticas, observa Bartal em seu artigo na Science. A longa lista de "serviços prestados" pelos ratos nos laboratórios mundo afora faz com que elas mereçam, no mínimo, condições de vida mais dignas desse vasto mundo interior, e, quem sabe, algumas seções de esconde-esconde por semana.

PS – Esta coluna é dedicada, com todo o carinho do mundo, ao saudoso Tomatini, o roedor mais gentil que já habitou uma biblioteca.

A hora e a vez do Estado-bandido, Muniz Sodré _FSP

 

O fato de 61 candidatos em 44 cidades do país portarem tornozeleiras eletrônicas e terem mandados de prisão em aberto é sintoma de uma mutação nas relações sociais em que a criminalidade passa por novas inflexões de natureza moral. O crime, parece, começa a ganhar legitimidade. Não só entre nós: nos EUA, vários estados têm leis que descriminalizam furtos de baixo valor. Em Nova York, o comércio já tranca vitrines.

Lá, tenta-se evitar a superlotação das prisões por ladrões de bens considerados essenciais, aqui o fenômeno pertence à mafialização da vida social. Algo começa a ferir o princípio do Estado liberal, cujo modelo francês é o "État-gendarme", Estado mínimo, restrito às funções de Exército, Justiça e polícia, portanto, de manutenção inflexível do status-quo burguês. A prática sempre velou para que a Justiça visasse com prioridade as classes subalternas.

Prédio do STF (Supremo Tribunal Federal), em Brasília - Pedro Ladeira - 5.jan.24/Folhapress

A fúria contra quem rouba um simples pão é tipificada no clássico "Os Miseráveis", de Victor Hugo, sobre a perseguição implacável de Jean Valjean pelo inspetor Javert. Desdobra-se na consciência em um ânimo punitivo com visão geralmente toldada para os grandes criminosos, porém, muito aguçada para os menores, que afetam em cheio a vida privada.

Em princípio, não existe um "État-bandit", mas autoridades sempre compactuaram com criminosos. Às vezes, em busca de equilíbrio na violência pública, outras, por motivos escusos. Disso é ilustrativa a história da máfia americana, que registra pactos secretos com figuras dos Poderes. Ou a da russa, que ajudou a montar a cleptocracia de Putin, o homem mais rico do mundo, um Don Corleone de quilate global.

A flexibilização da repressão antifurto nos EUA contempla o descompasso entre a macroeconomia e a vida concreta, preços altíssimos. Não é o caso do Brasil, onde em data recente um juiz do Supremo manteve a pena da mulher que havia furtado um tubo de pasta de dente. Admirador de Javert, talvez. Mas aqui se trata mesmo da infiltração do crime em todas as instâncias dos Poderes: ministros suspeitos, bancadas parlamentares cancerígenas. E segurança interna ameaçada por máfias nacionais, como PCC e Comando Vermelho.

O Rio é vitrine do descontrole: massacres, tiroteios diários, drones de guerra. Expropria-se celular, carro, moto (39 por dia) e o bronze da memória da cidade. Roubam-se desde macacos do Jardim Botânico até britadeira de operário em construção na rua.

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Mafialização é o fenômeno, que contamina moralmente a cidadania nacional. Não só infiltração no Estado, porém, em estado nascente, anestesia coletiva para absorção psicossocial e banalização do delito. De insensibilidade à violência, até a tomada de cargos públicos por malfeitores. Governabilidade virou álibi para pacto com o crime. A própria linguagem dos políticos lembra o jargão do submundo.

Toda sociabilidade tem caracterizações psíquicas inerentes às regulações morais das instituições. Habituar-se ao crime é anomalia, senão mutação nas formas de associação estabelecidas. Na ausência de uma política antitética à mafialização pode estar sendo gestado um Estado-bandido. Daí o sábio temor de Oscar Niemayer: "Hoje eu vejo, tristemente, que Brasília nunca deveria ter sido projetada em forma de avião, mas sim de camburão".