domingo, 22 de setembro de 2024

LUCAS DE SOUZA MARTINS E MARCELLE DECOTHÉ 'É a narrativa, estúpido': estratégia dos democratas é farol para progressistas, FSP

 A frase que abre este artigo nada mais é do que a variação da máxima de James Carville, então estrategista da campanha do democrata Bill Clinton contra o republicano George W. Bush, presidente dos Estados Unidos em 1992 e candidato derrotado à reeleição. Inicialmente, a expressão era exclusivamente de uso interno do time de Clinton, mas acabou viralizando entre o eleitorado americano como símbolo de que a chave do sucesso eleitoral passava necessariamente pela questão econômica.

Naquela eleição específica, a fórmula funcionou e se tornou parte do imaginário popular em processos eleitorais nos EUA. Ao chegarmos em 2024, na disputa entre a vice-presidente Kamala Harris e o ex-presidente Donald Trump, a pergunta de Carville passa a receber novas adaptações de acordo com a atual estratégia eleitoral do Partido Democrata. Pela nova versão da campanha de Harris, o caminho até a Casa Branca passa pela atração de eleitores independentes via incorporação de narrativas tradicionalmente associadas aos republicanos.

A candiddata democrata à Casa Branca, Kamala Harris, e seu vice, Tim Walz, durante evento de campanha - Andrew Harnik/AFP

A própria escolha do governador de Minnesota, Tim Walz, como vice na chapa de Harris é uma clara demonstração do estratégico contra-ataque a discursos típicos do trumpismo. Walz serviu no Exército de seu país e foi eleito congressista em um distrito dividido entre republicanos e democratas, além de ser defensor da Segunda Emenda à Constituição, que garante o acesso do cidadão a armas como instrumento de defesa. Ou seja, com o ex-professor do sistema público de ensino na chapa, a mensagem democrata é clara: é possível ser patriota, amar as Forças Armadas, defender liberdades asseguradas por lei e votar na candidatura da vice-presidente de Joe Biden.

Na Convenção Nacional Democrata do último mês de agosto, os discursos das principais figuras do partido também investiram na contranarrativa em nome da busca por eleitores independentes, ou ex-eleitores de Trump. O ex-presidente Barack Obama rebateu a ideia de que o republicano seria um candidato antissistema e que, na verdade, seu sucessor na Casa Branca busca que a classe média pague o preço por um corte de impostos que beneficia "a ele mesmo e a seus amigos ricos". Obama também pediu "união" à nação, utilizando de forma meticulosa uma narrativa sobre a necessidade de um governo para todos, diferenciando-se do "nós contra eles", aproximando-se de eleitores indecisos, com uma narrativa moderadora capaz de influenciar a base para persuadir o meio —a classe média trabalhadora americana.

O presidente Joe Biden e a ex-primeira-dama Hillary Clinton, por sua vez, levantaram a questão do patriotismo, tema tão explorado por Donald Trump em suas três campanhas presidenciais. Hillary usou um termo-chave da campanha republicana para definir o atual chefe de Estado. "Um verdadeiro patriota", disse a ex-secretária de Estado, "que devolveu a decência à Casa Branca", para além de destacar o papel das mulheres na construção de outros marcos para o país, a mulher "trabalhadora" que defende sua família e futuro. Em seu discurso, Biden seguiu na mesma linha ao recitar versos de uma canção patriótica americana para dizer que "deu o seu melhor ao país" durante a longa carreira política.

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Por fim, a cartilha foi seguida por Walz e Harris. O governador insistiu na ideia de que a agenda dos seus adversários só interessa aos "ricos", enquanto a vice-presidente ressaltou que os democratas representam a verdadeira candidatura do "povo americano". Mais digno de nota ainda foi o embate levantado por Harris ao questionar a real consideração de Trump pelas forças policiais e o compromisso com a "lei e a ordem".

Nas palavras da candidata democrata, o ex-presidente lutou pela liberdade de "extremistas" que "agrediram policiais no Capitólio" no fatídico 6 de janeiro de 2021.

Na medida em que há uma atualização de estratégias democratas para inflamar suas bases, 2024 representa o marco de um ano eleitoral em que emoções são mobilizadas através de mensagens e narrativas que aproximam valores típicos dos republicanos de uma agenda democrata liderada por mulheres, negros e latinos. O constante movimento de atualizar formas de narrar e convencer eleitores a ir às urnas não é, para usar o clássico jargão, "estúpido". É central para as democracias.


Beijos proibidos, Ruy Castro, FSP

Neal McDonough, conhecido ator americano na praça, declarou outro dia que não aceita papéis em que seja obrigado a beijar a mocinha. Disse que beijar alguém contraria sua religião. "Sou bem religioso", explicou. Espero que, como ele é casado, a religião não o proíba também de beijar sua mulher. Um papel em possíveis refilmagens de "Deep Throat", "Último Tango em Paris" ou "Emmannuelle", ousadias dos anos 1970, nem pensar.

Atores e atrizes de teatro e cinema sempre se beijaram com a maior naturalidade em qualquer época, em cena ou fora dela. Faz parte da profissão, assim como aprender a decorar falas ou saber vestir um smoking. Os principiantes, talvez mais tímidos, são ensinados a dar o chamado beijo técnico, com, digamos, um carinhoso dedo entre os dois lábios. Se bem dado, a plateia não o distingue de um beijo de verdade.

O ator Neal McDonough (dir.) e sua esposa Ruve McDonough em evento no Regency Village Theatre, em Los Angeles - Michael Tran - 19.nov.23/AFP

Mas há outros casos patológicos como o de McDonough. Em 1957, na montagem original de "Viúva, Porém Honesta", peça de Nelson Rodrigues, Ivonete, interpretada por Dulce Rodrigues, irmã do autor, era beijada pelo cafajeste Diabo da Fonseca, vivido por Jece Valadão. No primeiro ensaio, em vez de aplicar-lhe o beijo técnico, Jece foi com realismo à boca de Dulce. Ao fim do ensaio, Dulce —tão rodriguiana quanto as personagens do irmão— lhe comunicou: "Jece, depois desse beijo, vamos ter de casar. Foi quase um defloramento público!". Jece se espantou, mas, para surpresa de todos, principalmente dele, aceitou. Casaram-se e não foram felizes para sempre.

Outro que, ao contrário, fez do beijo uma declaração de guerra foi o incorrigível Paulo Cesar Pereio, num celebrado filme dos anos 1980. Irritado com a estrela, a maior do cinema brasileiro na época e com quem estava às turras na filmagem, preparou-se para a cena de beijo que teriam de rodar dali a minutos. Mastigou uma cebola inteira, crua. A estrela se indignou, mas, com o trabalho atrasado e, talvez, a cumplicidade do diretor, o beijo com cebola teve de ser dado ali mesmo, e em quantos takes foram necessários.

McDonough só não pode beijar. Atirar, fuzilar, matar, sua religião não tem nada contra.

Primeiro passo para revitalizar o centro de SP, editorial FSP

Palácio dos Campos Elíseos, na região central de São Paulo (SP) - Gabriel Cabral - 16.abr.18/Folhapress

O governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) lançou a primeira ficha de sua aposta para revitalizar o centro de São Paulo, ao anunciar na sexta-feira (20) a transferência da Secretaria de Justiça e Cidadania para o Palácio dos Campos Elíseos. Começa, assim, a marcha para implantar uma nova sede administrativa no entorno.

Há simbolismo apropriado em alojar no edifício histórico a pasta mais antiga do governo paulista, criada em 1892. O próprio palácio, concluído em 1899 como residência do fazendeiro Elias Antonio Pacheco e Chaves, foi comprado em 1912 pelo estado para servir como sede da administração e moradia do mandatário.

Não se trata de voltar no tempo, mas de projetar algum futuro para o bairro nobre degradado até ficar irreconhecível.

A omissão de sucessivas gestões estaduais e municipais nas áreas de segurança pública, assistência social e saúde fez enraizar-se ali uma multidão de dependentes químicos, repelindo paulatinamente transeuntes, moradores e comerciantes.

Esta Folha recebeu bem o lançamento em março do concurso arquitetônico orçado em R$ 3,9 bilhões para revitalizar a região com vários edifícios numa esplanada do palácio à praça Princesa Isabel —com sede nas proximidades, o jornal tanto testemunha quanto sofre as consequências da incúria do poder público.

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Até o advento da proposta, o governo estadual e a prefeitura de Ricardo Nunes (MDB) vinham insistindo em mera repressão policial nas tentativas, não raro violentas, de controlar a cracolândia. Por óbvio é crucial coibir o tráfico e a criminalidade, mas não se cura uma chaga social só com prisões e internações.

O recurso quase exclusivo a grandes operações policiais se resume a enxugar gelo, já que o crack, seus usuários e traficantes sempre retornam. Sem uma abordagem multidisciplinar integrada e de longo prazo, o problema jamais será resolvido.

Um novo centro administrativo na região pode contribuir para sua revitalização. Não se deve esquecer, porém, que a capital já se frustrou ao encetar em 2005 outra megaoperação urbanística, a chamada Nova Luz, abandonada em 2013 por ser incapaz de atrair investimentos privados.

É necessário coordenar o interesse público com o do mercado imobiliário, que pode gerar especulação e consumir recursos sem desaguar nos objetivos sociais.

Da cracolândia de hoje a um futuro elísio, há um percurso longo e acidentado. Mas é preciso percorrê-lo, e um novo centro administrativo pode ser bom começo.

editoriais@grupofolha.com.br