domingo, 8 de setembro de 2024

Emendas parlamentares para quem?, Cecilia Machado, FSP

 O acordo entre os três Poderes para disciplinar aspectos da execução das emendas parlamentares reestabeleceu algum bom senso na discussão sobre essa rubrica do Orçamento. Primeiro, determinou que as emendas devem respeitar critérios de rastreabilidade e transparência. Até aí, nada de novo, pois esses critérios já deveriam estar sendo atendidos.

E, segundo, estabeleceu que deveria haver reavaliação da atual vinculação das emendas à receita corrente líquida (2% para as individuais e 1% para as de bancada). Hoje já se discute a importância da desvinculação dos mínimos em saúde e educação para tornar a execução do Orçamento mais flexível, abrindo espaço para novas demandas sociais.

Nada mais justo do que também revisar a regra que determina o valor das emendas. As emendas não correspondem a um gasto essencial e não há motivo para que o seu orçamento esteja vinculado a um percentual específico da receita corrente líquida.

Por mais que avançar nessas duas direções seja desejável, o acordo passou longe de abordar os objetivos e resultados dos projetos que recebem recursos das emendas. A pergunta mais importante não foi respondida: esses projetos satisfazem critérios mínimos de custo-efetividade?

Como escrevi em 2021: "A discricionaridade dos parlamentares na escolha de projetos vem ao custo de uma avaliação mais ampla de alternativas para a aplicação dos recursos, e nesse sentido é falha na identificação de ações prioritárias". Além disso, "os parlamentares priorizam a alocação dos recursos em suas regiões de origem, ainda que os maiores gargalos possam estar em outros municípios".

Mulher posa em frente à retroescavadeira em dia de sol
A deputada federal Meire Serafim (União Brasil) com maquinário comprado para a Prefeitura de Sena Madureira, (AC) cidade governada pelo marido, Mazinho Serafim - Reprodução dep.meireserafim no Instagram

A avaliação mais sistemática realizada até então —uma auditoria do TCU de 2018— mostrou que as emendas parlamentares de fato apresentam falhas na definição do problema a ser atacado, na análise da melhor maneira de resolvê-lo e no estabelecimento de critérios úteis para determinar se as desigualdades regionais estão sendo reduzidas.

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Há problemas também na implementação e na execução dos projetos. No caso de obras, o tempo médio para a execução chega a alcançar 97 meses, pouco mais de oito anos, comprometendo o sucesso do investimento destinado a elas.

A percepção de que as emendas parlamentares geram ineficiências e distorcem as decisões políticas para atender a interesses particulares em detrimento do bem-estar da sociedade encontra lastro em diversos estudos na área de economia. Os chamados "pork barrels" —gastos governamentais direcionados a interesses locais e específicos— resultam, em linhas gerais, em um governo muito grande, que escolhe projetos com benefícios menores que seus custos, resultando em baixa provisão de bens públicos e em uma trajetória fiscal de déficit, já que os custos de um endividamento excessivo não são internalizados por políticos que enfrentam o risco de não se reelegerem no futuro.

Assim, as emendas comprometem o uso eficiente dos recursos públicose, por mais que sua existência pudesse ser justificada como forma de "lubrificar as engrenagens do Legislativo" para construir coalizões e permitir que projetos com altos benefícios sociais sejam aprovados, sua execução impositiva no Brasil inviabiliza que esse tipo de barganha entre os Poderes possa acontecer.

Alguns estudos também são capazes de estabelecer que as emendas melhoram o resultado eleitoral do parlamentar, ampliando ainda mais a vantagem dos incumbentes na competição eleitoral ou então sua relevância política na região de origem.

Se as emendas comprometem o uso eficiente dos recursos públicos e reduzem a competição eleitoral justamente em favor dos parlamentares que as demandam, por que então o acordo permitiu que essa rubrica continue fazendo parte do Orçamento?

No atual arranjo político, reduzir o escopo ou mesmo pôr fim às emendas parlamentares parece ser a melhor forma de garantir que os recursos sejam alocados de forma benéfica para o crescimento e o desenvolvimento do país.

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Pablo Marçal traz à tona o pior lixo que há em mim, José Manuel Diogo, FSP

 Eu não sabia que existia um lado tão lixo em mim até cruzar com Pablo Marçal no debate dos candidatos à Prefeitura de São Paulo. Ele foi o catalisador de algo que eu desconhecia: um voyeurismo atávico, um impulso vil que, depois de acionado, ficou impossível de conter. Os sons ululantes de "Pablitos", "Boules" e "Bananinhas" não revelam apenas meu lado sombrio; eles o alimentam, glorificam e transformam em espetáculo. Ave Caesar, morituri te salutant. Aos leões, aos leões!

Antes, eu me importava com ideias. Tinha um interesse genuíno pelas questões que realmente importam: educação, saúde, justiça social. Preocupava-me com as propostas concretas que poderiam melhorar a vida de milhões. Mas agora? Agora, graças ao que Marçal desperta, tudo isso parece distante, irrelevante. O que me move é o insulto, o enxovalho. As discussões profundas perderam toda a cor, todo o brilho. Agora, o que me fascina é o grotesco, o avilte.

A imagem mostra um homem sorrindo amplamente, com dentes brancos e bem cuidados. Ele tem barba e cabelo curto, e está usando um boné escuro. O fundo é desfocado, com outras pessoas visíveis, mas não claramente definidas
Candidato à prefeitura de São Paulo pelo PRTB, Pablo Marçal - Nelson Almeida - 3.set.24/AFP

Pablo Marçal me faz querer desprezar debates sérios. Não me importo mais com a crise na educação ou com políticas públicas destinadas a aumentar o número de escolas ou melhorar os salários dos professores. Em vez disso, o que meu lado lixo deseja é ver alguém ser ridicularizado, humilhado, arrastado na lama. O espetáculo da degradação virou meu riso nos dentes, tornou-se a nova atração, o novo vício. Que se repete em todas as esferas da vida em sociedade.

Não quero saber de nenhuma política pública que possa diminuir a desigualdade. Não quero ouvir soluções para a crise climática ou propostas para reformar o sistema de saúde. O que me fascina é o escândalo, o colapso, o ultraje. É o lado lixo que grita mais alto, e Marçal sabe exatamente como puxar por ele.

Essa obsessão pela degradação, pelo que é pequeno e mesquinho, revela-se em mim em todas as áreas da nossa sociedade: na política, na cultura, na economia. O verbo que mais me seduz agora é ultrajar. O que antes era preocupação com o progresso, com a construção de algo melhor, deu lugar ao desejo pela ruína. Marçal revelou esse lado em mim, mas a verdade é que ele sempre esteve lá, esperando para ser explorado.

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Ao final, ficam as perguntas incômodas: Pablo Marçal criou esse lado lixo ou ele apenas o trouxe à tona? E o que isso diz, tanto sobre mim quanto sobre a sociedade em que habitamos? Se o lixo é o que mais brilha, talvez seja hora de repensar nossas prioridades. O que consumimos e o que permitimos que nos transforme. Porque, no fundo, esse lado lixo não é só meu. É de todos nós.


Marçal, o filho pródigo recusado por Bolsonaro, Juliano Spyer

 Por que Silas Malafaia, espécie de cardeal Richelieu do bolsonarismo, declarou publicamente que não quer o também cristão e conservador Pablo Marçal no protesto de 7 de setembro contra Alexandre de Moraes?

A atitude parece desesperada. Mencionar Marçal para sua audiência acaba promovendo ainda mais o candidato do PRTB. Segundo o Datafolha, Marçal está empatado com Boulos e Nunes na disputa pela Prefeitura de São Paulo e sua popularidade cresce enquanto a de seus oponentes diminui.

Marçal parece o filho pródigo recusado por Bolsonaro. O ex-capitão tem motivos para se sentir intimidado. Diferentemente dele, Marçal é jovem, nunca se divorciou, se veste e fala bem, conhece a Bíblia e não é inelegível.

Mesmo sem o apoio da bancada evangélica municipal e federal, Marçal tem 30% de intenções de voto dos evangélicos paulistanos. Essa contradição revela aspectos importantes do cristianismo evangélico no Brasil, que vão além da simplificação comum entre muitos da esquerda. Anote e reflita.

1. Evangélicos não obedecem cegamente seus pastores. O protestante é historicamente um insubordinado. Entre pastor e Bíblia, esse cristão escolhe a segunda opção. Desigrejado, o próprio Marçal defende que a igreja de Cristo é o próprio corpo, a casa em que se vive e o mundo onde se deve ir para pregar.

Pablo Marçal (PRTB) faz campanha na favela do Jaguaré, na zona oeste da cidade - Bruno Santos/Folhapress

2. As grandes denominações não representam a maioria dos evangélicos. A maior parte desses 70 milhões de brasileiros está em igrejas independentes de bairro, com até 200 membros, fora do controle das grandes lideranças. Esse grupo representa 71% dos evangélicos paulistanos (Datafolha).

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3. Pastor e coach têm funções semelhantes. Evangélicos de igrejas históricas considerarão isso heresia. Mas ambos lideram, ensinam e ajudam a superar dificuldades, especialmente interiores. São comunicadores e guias.

4. A influência da teologia da prosperidade, característica do neopentecostalismo, parece ultrapassar o limite das igrejas que originalmente adotaram tal visão. A ideia é que Deus recompensa com bênçãos materiais quem supera suas dificuldades e limitações e é fiel a ele.

5. O cristianismo virou um estilo de vida, como também Marçal propõe. Ele atrai não apenas frequentadores de igrejas, mas "simpatizantes" que escutam louvores para se tranquilizar e seguem influenciadores como Deive Leonardo e Cláudio Duarte.

As próximas pesquisas dirão como evangélicos reagiram à notícia de que as redes de Marçal foram suspensas pela Justiça. "O povo de deus é o mais perseguido", ele disse a jornalistas. "Eu agradeço de coração por toda perseguição, porque me dá energia." Spoiler: ele deve crescer nesse segmento.

spyer@uol.com.br