No fim de semana teve Jornada do Patrimônio. Parece pouco, mas não é. Trata-se de um dos programas mais legais da cidade, com museus abertos e grátis e shows ao ar livre. A jornada serve para que o cidadão reforce seus laços culturais e afetivos com a metrópole e circule em busca de referências históricas de sua própria identidade.
Um dos itens da programação é o Roteiro de Memória, em que um especialista guia o público por lugares esquecidos ou inusitados de São Paulo onde a história aconteceu. Diante da falta de vestígios físicos, o que resta é imaginar os locais do passado. Como costuma acontecer nesta cidade, as marcas da memória tendem a desaparecer rapidamente.
A primeira vez que participei da Jornada do Patrimônio foi em 2019. O roteiro era "Prostituição e confinamento: um percurso pela antiga zona do baixo meretrício do Bom Retiro (1940-1953)", guiado pela
antropóloga Paula Janovitch. Fiquei maravilhado com os relatos sobre a região, Paula levava diversas fotos para substituir a falta de prédios antigos no triângulo entre as ruas dos Timbiras e Cesare Lombroso.
Dessa vez a experiência foi num ônibus, mais precisamente num trólebus, conhecido como Machadão, por conectar a rua Cardoso de Almeida, em Perdizes, com a rua Machado de Assis, na Aclimação. Os veículos têm aquelas duas hastes ligadas à rede elétrica e são climatizados. Fazem também uma rara homenagem para Machado de Assis em São Paulo.
A linha de trólebus traça uma narrativa da cidade em meados do século 20, quando teve grande desenvolvimento imobiliário. É uma aula de educação patrimonial. Entre 1930 e 1960, nos tempos do prefeito Prestes Maia, o Centro passou por uma profunda reforma urbanística, avenidas foram abertas e surgiram novos bairros de classe média.
A característica principal do Machadão é cruzar muitos pontos turísticos da cidade. Pacaembu, Higienópolis, prédios do arquiteto João Artacho Jurado, rua Major Sertório, território afro-oriental da Liberdade, Cambuci, Pateo do Collegio, Mosteiro de São Bento, Viaduto do Chá, Galeria Metrópole são só alguns exemplos de lugares do percurso. Pode ser considerado o trólebus mais cenográfico da cidade.
É também a linha mais antiga em funcionamento. Pode ser considerada um prolongamento da via inaugural de 1949, que ligava a praça João Mendes, no Centro, à praça General Polidoro, na Aclimação. Depois, esse percurso foi ampliado até a rua Cardoso de Almeida e até a rua Machado de Assis.
Em abril deste ano, o sistema de trólebus completou 75 anos em São Paulo, onde está a maior frota desse tipo de veículo no Hemisfério Sul. São 200 distribuídos em nove linhas.
Na Jornada do Patrimônio, o trólebus ficou lotado, com cerca de 60 pessoas, muitas de pé, interessadas em conhecer mais sobre a cidade e fazer isso usando transporte público. "Vi que mais gente do que eu imaginava tem interesse em fazer turismo em ônibus", afirma Maria Luiza Paiva, coordenadora do "Circulando Essepê", organizador do evento.
Nesse momento, o ônibus se torna um local de intercâmbio cultural e de turismo. Pela janela passa o cinema da cidade, com prédios históricos e lugares que desapareceram porque ganharam novos usos.
No público havia muitas famílias de pais com crianças, estrangeiros, moradores de Perdizes que usam o ônibus normalmente e curiosos interessados na experiência de percorrer uma linha ancestral ou em descobrir alguma informação pouco divulgada. Um ou outro estava interessado em debate. Tinha muito diálogo entre os viajantes. O caminho de ida e volta durou 1h30, com uma escala de 15 minutos na Aclimação.
Durante a o percurso do Machadão, na Jornada do Patrimônio, cumpri a função de mediador, contando histórias e guiando os espectadores para as referências arquitetônicas da cidade.
A experiência do turismo urbano interno se tem expandido nos últimos anos. Cada vez mais pessoas querem conhecer melhor a cidade onde vivem e visitar suas atrações. Também há um interesse em encontrar novos locais que fujam do óbvio. É aí que entra o Machadão.