segunda-feira, 22 de julho de 2024

FÁBIO BIBANCOS 'Não vai dar nada', esse mantra estúpido, FSP

 Fábio Bibancos

Dentista, é presidente do Instituto Bibancos de Odontologia e da ONG Turma do Bem

Precisamos reagir à perigosa ilusão da impunidade em uma sociedade despreocupada com as consequências. "Não vai dar nada". Esse mantra estúpido parece ter se tornado a filosofia de uma sociedade indiferente às consequências de suas ações. O "não vai dar nada" ecoa na mente de quem crê que viver sem responsabilidade é uma escolha viável, sem se preocupar com os danos causados.

Esse grito se espalha como um vírus, contaminando todos os aspectos da vida cotidiana. É ignorar a saúde, a lei e a moral. E, no online, esse sentimento de impunidade cresce. Homofobia, misoginia, acusações sem prova: tudo se torna válido quando se acredita que "não vai dar nada".

O dentista Fábio Bibancos, presidente da ONG Turma do Bem - Keiny Andrade/Folhapress - kandrade/Folhapress

Mas não é só online. É fácil encontrar deputados exercendo seus mandatos na base do "não vai dar nada". O que será que alguns deles pensaram quando aprovaram urgência em um projeto de lei que condena vítimas de estupro que engravidaram e tiveram de abortar, com penas bem maiores do que para seus algozes? "Não vai dar nada".

E assim estamos: "Assédio de diretores de grandes companhias? Disseminar ódio nas redes sociais? Criar grupos de ódio online? "Não vai dar nada".

O "não vai dar nada" chegou até os livros de história: no triste 8 de janeiro de 2023, quando os terroristas que invadiram os prédios dos Três Poderes também achavam que "não daria em nada". E muitos deles fugiram após quebrar suas tornozeleiras eletrônicas, provando que, para eles, realmente "não deu nada".

As catástrofes ambientais têm uma sementinha de "não vai dar nada". Cortar uma árvore? Jogar um papel no chão? Poluir o ar, usar agrotóxicos sem moderação, construir em áreas de preservação, ignorar desmatamento ilegal, permitir que mineradoras destruam ecossistemas... "Calma aí, não vai dar nada".

Enfrentamos uma pandemia na base do "não vai dar nada" e vimos mais de 700 mil mortes. A negação das vacinas e da ciência é outro fruto amargo desse pensamento.

A saúde, inclusive, é campo fértil (e também fatal) para o "não vai dar nada". Na era do "Dr. Influencer", a desinformação leva muitos a negligenciarem cuidados essenciais e seguirem conselhos perigosos.

No recente caso do fenol, temos uma cadeia trágica de "não vai dar nada" que culminou em desastre. A farmacêutica decide vender cursos de procedimentos estéticos sem qualquer critério rigoroso, porque "não vai dar nada". A influenciadora compra o curso e, sem a qualificação necessária, se sente habilitada a aplicar um peeling de fenol, confiando que "não vai dar nada". O paciente, em busca de uma solução rápida e barata, negligencia a pesquisa e entrega sua saúde nas mãos de alguém, acreditando que "não vai dar nada".

A crença de que nossas ações não têm consequências é uma ilusão perigosa e letal. Vidas são destruídas e instituições são abaladas pela estupidez e imprudência. Precisamos erradicar essa mentalidade e estabelecer uma cultura de responsabilidade. Nossas ações importam —e muito. E, em um cenário como esse, nossas reações importam mais ainda.

Em um país sério, essas atitudes seriam coibidas com rigor. O poder público deveria ser o primeiro a mostrar que não há lugar para "não vai dar nada". No entanto, a única instituição que demonstrou alguma preocupação foi o STF. Já a maioria dos políticos segue acreditando que seus projetos de lei vão passar impunemente, influenciados por uma sociedade sem reação. É preciso despertar antes que mais vidas sejam destruídas pela ideia imbecil de que nada importa.

domingo, 21 de julho de 2024

Santa Inquisição foi feita para matar cátaros, não para perseguir mulheres, Luiz Felipe Pondé, FSP

 


Afinal, de onde surgiu o mal? Sei que é comum se descartar essa questão como sendo bobagem. Tudo é relativo, logo, não existe o mal nem o bem, nem o certo e o errado. Qualquer bom cético considera esse tipo de afirmação, quando feita de forma gloriosa, coisa de iniciante. A origem do mal sempre preocupou a filosofia e as religiões.

Eu posso, por exemplo, assumir que aquilo que chamamos de "o mal" nada mais seja do que a descrição aterrorizada dos efeitos da contingência cega sobre nós. Tese consistente e que, a propósito, o filósofo da religião Mircea Eliade, no século 20, dizia ser a causa primeira das religiões, "o terror da contingência".

Título: Os cristãos sombrios  A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com tinta nanquim e pincel sobre papel branco. Depois, a ilustração foi escaneada, colonizada e montada digitalmente para formar uma composição. Traços do pincel em preto sobre fundo amarelo chapado e alguns tons de branco.  Na horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, a ilustração figurativa não apresenta uma narrativa linear. Elementos e figuras soltos, estilizados em traços leves compõem a situação. Ao centro, uma fogueira queimando 3 livros. Abaixo, à esquerda, 3 figuras humanas sentadas em cadeiras diante a uma mesa com seus notebooks e papéis. Essas figuras, masculinas, usam roupa de religiosos e estão diante à fogueira. No canto superior, à esquerda, a figura de um sol e uma outra face embaixo, envoltos por asas. Ao lado, três homens antigos religiosos, juntos, observam. No canto superior, à direita, uma multidão de pessoas que parecem também observar a situação. Abaixo, uns 6 livros abertos, de baixo para cima, vão se transformando em formatos de pássaros voando em direção ao horizonte distante.
Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Pondé de 21.jul.2024. - Ricardo Cammarota/Arte/Folhapress

A natureza do mal, enfim, a causa do mundo ser como é —um lugar de dor e morte— sempre foi objeto de reflexão no cristianismo. Se por um lado sinto saudades de Deus, como diz uma personagem no filme de Manuel de Oliveira "O Convento", por outro, o Diabo me parece mais fácil de crer.

Vou dizer hoje para você que, se eu fosse um religioso, o que não sou, minha total simpatia iria para os hereges cátaros medievais, dos séculos 12, 13 e 14. Seu epicentro geográfico foi o sul da França e o norte da Itália, e seu primos, os bogomilos, eram dos Bálcãs, região da Bulgária e da Romênia.

Me parece que esses cristãos sombrios, em meio ao universo das teologias existentes, tinham razão sobre o mundo e os atormentados que nele habitam.

A famosa Santa Inquisição foi sistematizada e posta em prática para matar os cátaros —e não, como pensa o senso comum feminista, para perseguir mulheres, apesar de que, claro, matou muitas mulheres, principalmente as cátaras. Bernardo Gui foi, talvez, o maior inquisidor envolvido nas fogueiras que queimaram os cátaros.

A palavra "cátaro" vem do grego "katharói", que pode ser traduzido por "puros". Eles nunca usaram o termo para si mesmos, mas a inquisição os chamou de cátaros, e assim ficou. Eles se referiam a si mesmos como "bons homens" e "boas mulheres".

Seria impossível aqui entrar nos meandros sociais, políticos, econômicos e pastorais que a igreja cristã cátara significou. Apenas deixemos claro que reis e a igrejaromana os perseguiram e mataram em guerras e fogueiras por quase três séculos.

Concentremo-nos na sua teoria da criação do mundo. Mas, antes de tudo, que fique claro que a espiritualidade cátara se fundamentava numa experiência existencial evidente e não em mera filosofia, catequese ou escrituras sagradas. A experiência do mal se impõe como fato inquestionável no mundo e nos corpos.

Nossos hereges eram dualistas. Dualismo é uma teoria segundo a qual existem dois princípios criadores que atuam na realidade —portanto, não um deus único. Um principio da realidade visível e um da invisível. Matéria versus espírito ou alma, basicamente.

O dualismo na herança cristã antiga e medieval tem cauda longa. Desde os agnósticos nos primeiros séculos, passando pelos maniqueus persas pouco depois, até os bogomilos e cátaros na Idade Média, os dualistas cristãos acreditavam —e existem textos "revelados" sagrados deles que atestavam essa crença— que o mundo material foi criado por um deus mau e por isso existe a morte, o envelhecimento e a violência da natureza e do cosmos que esmaga todos os corpos.

Já o mundo invisível, imaterial e perfeito foi criado por um deus bom que enviou o Cristo, puro espírito, para nos pôr a par da tragédia.

Somos fruto dessa dualidade: um corpo precário que prende um espírito a princípio livre. Anjos que, na sua inveja de Deus, tombaram no abismo que é esse mundo físico. A reprodução era proibida a fim de negar ao Diabo mais vítimas.

A propósito, esse dualismo existe no islã também. A etnia iazidi, chacinada pelo califado do Estado Islâmico no passado recente —ninguém deu a mínima bola na época—, partilha de cosmologia semelhante. Uma comunidade iazidi vive em paz na Armênia. Um anjo mau recebeu de Alá o direito de fazer o que quisesse conosco e com o mundo. Para os cátaros, esse anjo mau era o Diabo, claro.

Vivesse eu no sul da França ou no norte da Itália entre os séculos 12 e 14, provavelmente simpatizaria com os cátaros.