Afinal, de onde surgiu o mal? Sei que é comum se descartar essa questão como sendo bobagem. Tudo é relativo, logo, não existe o mal nem o bem, nem o certo e o errado. Qualquer bom cético considera esse tipo de afirmação, quando feita de forma gloriosa, coisa de iniciante. A origem do mal sempre preocupou a filosofia e as religiões.
Eu posso, por exemplo, assumir que aquilo que chamamos de "o mal" nada mais seja do que a descrição aterrorizada dos efeitos da contingência cega sobre nós. Tese consistente e que, a propósito, o filósofo da religião Mircea Eliade, no século 20, dizia ser a causa primeira das religiões, "o terror da contingência".
A natureza do mal, enfim, a causa do mundo ser como é —um lugar de dor e morte— sempre foi objeto de reflexão no cristianismo. Se por um lado sinto saudades de Deus, como diz uma personagem no filme de Manuel de Oliveira "O Convento", por outro, o Diabo me parece mais fácil de crer.
Vou dizer hoje para você que, se eu fosse um religioso, o que não sou, minha total simpatia iria para os hereges cátaros medievais, dos séculos 12, 13 e 14. Seu epicentro geográfico foi o sul da França e o norte da Itália, e seu primos, os bogomilos, eram dos Bálcãs, região da Bulgária e da Romênia.
Me parece que esses cristãos sombrios, em meio ao universo das teologias existentes, tinham razão sobre o mundo e os atormentados que nele habitam.
A famosa Santa Inquisição foi sistematizada e posta em prática para matar os cátaros —e não, como pensa o senso comum feminista, para perseguir mulheres, apesar de que, claro, matou muitas mulheres, principalmente as cátaras. Bernardo Gui foi, talvez, o maior inquisidor envolvido nas fogueiras que queimaram os cátaros.
A palavra "cátaro" vem do grego "katharói", que pode ser traduzido por "puros". Eles nunca usaram o termo para si mesmos, mas a inquisição os chamou de cátaros, e assim ficou. Eles se referiam a si mesmos como "bons homens" e "boas mulheres".
Seria impossível aqui entrar nos meandros sociais, políticos, econômicos e pastorais que a igreja cristã cátara significou. Apenas deixemos claro que reis e a igrejaromana os perseguiram e mataram em guerras e fogueiras por quase três séculos.
Concentremo-nos na sua teoria da criação do mundo. Mas, antes de tudo, que fique claro que a espiritualidade cátara se fundamentava numa experiência existencial evidente e não em mera filosofia, catequese ou escrituras sagradas. A experiência do mal se impõe como fato inquestionável no mundo e nos corpos.
Nossos hereges eram dualistas. Dualismo é uma teoria segundo a qual existem dois princípios criadores que atuam na realidade —portanto, não um deus único. Um principio da realidade visível e um da invisível. Matéria versus espírito ou alma, basicamente.
O dualismo na herança cristã antiga e medieval tem cauda longa. Desde os agnósticos nos primeiros séculos, passando pelos maniqueus persas pouco depois, até os bogomilos e cátaros na Idade Média, os dualistas cristãos acreditavam —e existem textos "revelados" sagrados deles que atestavam essa crença— que o mundo material foi criado por um deus mau e por isso existe a morte, o envelhecimento e a violência da natureza e do cosmos que esmaga todos os corpos.
Já o mundo invisível, imaterial e perfeito foi criado por um deus bom que enviou o Cristo, puro espírito, para nos pôr a par da tragédia.
Somos fruto dessa dualidade: um corpo precário que prende um espírito a princípio livre. Anjos que, na sua inveja de Deus, tombaram no abismo que é esse mundo físico. A reprodução era proibida a fim de negar ao Diabo mais vítimas.
A propósito, esse dualismo existe no islã também. A etnia iazidi, chacinada pelo califado do Estado Islâmico no passado recente —ninguém deu a mínima bola na época—, partilha de cosmologia semelhante. Uma comunidade iazidi vive em paz na Armênia. Um anjo mau recebeu de Alá o direito de fazer o que quisesse conosco e com o mundo. Para os cátaros, esse anjo mau era o Diabo, claro.
Vivesse eu no sul da França ou no norte da Itália entre os séculos 12 e 14, provavelmente simpatizaria com os cátaros.
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