terça-feira, 23 de abril de 2024

Demissão por mau desempenho está mais perto do setor público, diz secretário, FSP

 Luany Galdeano

RIO DE JANEIRO

No ano passado, 341 servidores do Executivo federal foram demitidos por justa causa, em um universo de quase 571 mil pessoas. O número sobe para 5.193 se somados os profissionais que saíram a pedido, ainda bem menor do que o total de demissões em ramos do setor privado com quantidade semelhante de trabalhadores.

Áreas como tecnologia da informação e contabilidade e auditoria, por exemplo, com 578 mil e 521 mil trabalhadores, respectivamente, tiveram, no ano passado, 16,6 mil e 18 mil desligamentos.

Entre 2013 e 2023, a média de demissões foi de 326 ao ano. O maior número foi em 2018, com 372 servidores dispensados. Técnicos do seguro social e professores universitários concentram a maior quantidade de desligamentos dos últimos dez anos, com 293 e 283, respectivamente.

Imagem mostra cúpula para baixo e dois prédios compridos ao longo
Fachada do Congresso Nacional, em Brasília - Leopoldo Silva/Agência Senado

Os dados do governo federal são do Painel Estatístico de Pessoal e as informações do setor privado são do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) e da Rais (Relação Anual de Informações Sociais).

Hoje, servidores só podem ser demitidos por justa causa quando uma decisão judicial externa ao órgão público determina a exoneração ou quando o profissional é penalizado por má conduta no trabalho, constatada após PAD (processo administrativo disciplinar).

Constituição prevê o desligamento de servidores que não tiverem bons resultados em avaliações de desempenho. No entanto, esse recurso nunca foi regulamentado nacionalmente.

Enquanto no setor privado é possível que um trabalhador celetista perca o emprego do dia para a noite, o processo contra o profissional público pode levar meses, sem que necessariamente ele seja suspenso do cargo.

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O governo federal tem dado os primeiros passos para dispensar servidores com baixo rendimento por meio do PGD (Programa de Gestão e Desempenho), do MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos).

"Estamos mais próximos de desligamentos por falta de desempenho do que já estivemos no passado, sem dúvida nenhuma", afirma Roberto Pojo, secretário de Gestão e Inovação do MGI.

Com o PGD, que foi instituído em 2022 e reformulado no ano passado, a performance do profissional público é medida pelas entregas que ele faz. Segundo Pojo, o programa permite reunir evidências sobre o desempenho do servidor que tornaria sustentável um PAD.

A equipe dialogou com as áreas responsáveis pelos PADs com o objetivo de identificar os elementos que devem constituir um processo consistente.

"[O programa] cria o arcabouço que gera o fluxo necessário para que, chegando à posição extrema de abrir um processo administrativo que pode resultar numa demissão, isso seja possível", disse Pojo.

De acordo com ele, demitir o servidor é o último recurso. O programa prevê que, antes de chegar a esse ponto, o gestor faça avaliações constantes sobre a performance do profissional e adote estratégias para melhorá-la. Se o resultado negativo for recorrente, daí é possível dar início a um PAD.

O secretário afirma que deve levar um tempo para saber se o programa de fato levou a demissões por baixo de desempenho.

O PGD ainda precisa ser aprimorado, mas está no caminho correto para melhorar os indicadores que avaliam o rendimento do servidor, segundo Gabriela Lotta, professora de administração pública da FGV (Fundação Getulio Vargas). "Eles estão fazendo o programa para qualificar o trabalho, e isso, em alguns casos, pode significar ter de demitir."

De acordo com a professora, os PADs são processos morosos por garantirem que os servidores estejam certos até a última instância, uma vez que a administração pública protege o servidor de interferências políticas e econômicas.

Casos como o anunciado pelo presidente argentino Javier Milei, por exemplo, que demitiu 15 mil servidores em março, não podem ocorrer no Brasil. Mas ainda que o profissional público não seja facilmente demitido, o PAD ainda pode ser usado como instrumento de pressão.

Lotta é coautora de um estudo publicado no ano passado, com outros pesquisadores da FGV e da UnB (Universidade de Brasília), que mostra como esse recurso foi usado para interferir no trabalho de servidores durante o governo Jair Bolsonaro (PL).

Com base em dados de 2022 da CGU (Controladoria-Geral da União), os pesquisadores identificaram um aumento na instauração de PADs no Ministério do Meio Ambiente. Entre 2016 e 2018, houve uma média de 26 processos anuais. A mesma cifra chegou a 57 nos primeiros dois anos do governo Bolsonaro e, só em 2021, foram 90 ações.

"Os PADs nem eram corretos, uma parte importante era procedimentalmente equivocada, mas só de fazer um já cria custo para aquele servidor se defender", afirma. "É difícil exonerar porque a gente deve proteger o profissional desse tipo de desmando."

Estados e municípios também avançam pouco no tema, ainda que haja leis próprias que determinam demissão no caso de descumprimento das obrigações, segundo Vera Monteiro, professora de direito administrativo da FGV.

Já as iniciativas de análise de desempenho eficientes são ainda mais isoladas. Minas Gerais, por exemplo, regulamentou a avaliação e a demissão por baixo rendimento dos servidores estaduais em 2003.

Empresas públicas são casos diferentes, por terem trabalhadores contratados por regime CLT, enquanto servidores federais estão, em sua maioria, sob modalidade estatutária, que dá direito à estabilidade.

Entre celetistas, a demissão é mais simples, segundo Monteiro. Em fevereiro, o STF determinou que o desligamento sem justa causa nas empresas públicas deve ser "devidamente motivado".

Os dados mostram que ainda há uma discrepância entre demissões em empresas públicas e privadas.

Na Petrobras, por exemplo, houve 756 desligamentos em 2022, entre 38.682 funcionários. Desses, 533 saíram voluntariamente e 223 foram demitidos. Os dados são do relatório de sustentabilidade da empresa de 2022.

Já no setor privado, no mesmo ano, a área de atividades de apoio à extração de minerais, com um número próximo de trabalhadores (33,7 mil), teve 7.025 desligamentos, segundo informações do Caged.

Em órgãos públicos, a análise de desempenho pode solucionar tanto a demissão por baixo rendimento quanto a progressão de cargo sem critérios eficientes, de acordo com Monteiro.

"Muitas carreiras têm promoções automáticas sem nenhuma análise na qualidade do serviço, assim como não há processos de avaliação que levam ao desligamento do servidor por ausência de desempenho. São duas coisas que precisam acontecer em conjunto."

Geisel vetou apoio a general português que queria tomar poder após Revolução dos Cravos, FSP

 

SÃO PAULO

Em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos punha fim ao salazarismo, que já durava mais de 40 anos em Portugal, a ditadura mais longa da Europa.

O país começava a se reorganizar rumo a um regime democrático, mas nem tudo era festa: nos meses seguintes, ameaças internas colocariam em risco esses novos tempos, marcados por voto popular e livre expressão.

Um desses momentos em que o autoritarismo mostrou seus dentes aconteceu em 11 de março de 1975, quando paraquedistas sob o comando do general António de Spínola atacaram um regimento de Lisboa, o que seria um primeiro ato para um golpe. A mobilização fracassou, Spínola refugiou-se na Espanha e, em seguida, no Brasil.

O general Spínola, então presidente da República, durante cerimônia no palácio de Queluz, próximo a Lisboa, em maio de 1974 - AFP

O general não se deu por vencido. Insistia em recompor as forças para outra tentativa de tomar o poder e, três meses depois, entrou em contato com oficiais do Exército brasileiro pedindo uma colaboração imodesta: uma grande quantidade de armamentos e munições, além de uma área no interior do Brasil para treinamento de 600 homens. Tudo isso como preparativo para invadir Portugal.

Agentes do SNI (Serviço Nacional de Informação) reagiram de modo receptivo ao pedido de Spínola, mas o então presidente Ernesto Geisel respondeu enfaticamente: o Brasil não ajudaria o general. Ou seja, o penúltimo presidente da ditadura militar brasileira contribuiu para que uma nova articulação antidemocrática não fosse adiante em Portugal.

Esse episódio foi lembrado pelo historiador inglês Kenneth Maxwell na conferência sobre os 50 anos da Revolução dos Cravos no último dia 4 na USP. Ex-professor de universidades como Harvard e Yale, nos Estados Unidos, ele estuda as relações entre Brasil e Portugal há mais de 60 anos.

No caso das sondagens de Spínola no Brasil, Maxwell se baseou em cópias dos arquivos do SNI cedidas por seu amigo Elio Gaspari, colunista da Folha.

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O historiador inglês Kenneth Maxwell, um dos maiores brasilianistas em atividade, em visita à Folha em setembro de 2022; no início do mês de abril, ele apresentou uma conferência sobre os 50 anos da Revolução dos Cravos na USP - Zanone Fraissat/Folhapress

Para entender melhor o peso do não de Geisel, é preciso voltar ao início de 1974. Naquele momento, Portugal tinha cerca de 200 mil militares nas colônias na África, sobretudo em Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. Representavam 2% de toda a população portuguesa.

"A pressão sobre o Exército era intensa, particularmente sobre os jovens oficiais, que estavam muito cansados. Era uma guerra sem fim", diz o historiador à Folha. E, secretamente, esses oficiais organizaram o Movimento de Forças Armadas (MFA), formado principalmente por capitães.

Foram eles que, em 25 de abril, tomaram as ruas e os palácios de Lisboa, acompanhados por uma entusiasmada adesão popular e uma acanhada reação do governo.

Era um susto para Marcelo Caetano, que havia assumido o poder em 1968, substituindo o ditador António de Oliveira Salazar. O governo dos EUA, aliado de Caetano, também ficou espantado com a insurreição. Na conferência na USP, Maxwell citou Cord Meyer, então diretor do escritório da CIA em Londres: "Quando a revolução aconteceu em Portugal, os EUA tinham saído para almoçar. Foi uma surpresa total."

António de Oliveira Salazar, ditador que governou Portugal dos anos 1930 à década de 1960 - Keystone

Para presidir o país durante um governo provisório, foi escolhido –vejam só– o general António de Spínola, que havia sido governador de Guiné-Bissau. Ele não pertencia ao MFA, mas gozava de prestígio entre os integrantes do movimento pelas posições muitas vezes contrárias ao salazarismo e pela participação na conspiração dos capitães.

Além disso, foi a Spínola que, no dia 25, Caetano apresentou sua rendição.

Nos meses seguintes, porém, as divergências entre Spínola e o MFA se tornaram mais agudas. O general defendia um processo de descolonização progressivo enquanto os capitães preconizavam o fim imediato das guerras na África e a independência das colônias.

A posição do MFA se impôs e, em julho de 1975, os conflitos com as nações africanas foram oficialmente encerrados. Países como Angola e Moçambique se tornavam, enfim, independentes.

Além da questão ultramarina, Spínola promovia articulações para concentrar mais poder em suas mãos e, também nesse aspecto, distanciava-se dos anseios dos jovens capitães.

No final de setembro, o general buscava aliados em número suficiente para declarar estado de sítio. Como não obteve esse apoio, apresentou sua demissão do cargo de presidente da República. No seu lugar, assumiu Francisco da Costa Gomes, um general que zelava pela democracia, ao contrário do seu antecessor.

Daí em diante, Spínola se distanciou do novo regime, com posições cada vez mais radicais, o que nos leva de volta à sua tentativa de aproximação com o governo brasileiro.

Com o objetivo de invadir o norte de Portugal, segundo Maxwell, o general pediu a Geisel 34 metralhadoras, 16 pistolas, 2 fuzis automáticos com bocal lançador de granada, entre vários outros itens. O registro do SNI à época diz: "Spínola considera que, com cinco mil homens bem armados e adestrados, poderá invadir Portugal com êxito".

"Spínola poderia ter sido o Pinochet de Portugal", afirma o historiador sobre a hipótese do plano ter ido adiante.

No exílio, o general fundou o Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), grupo de extrema direita cujo objetivo era combater, segundo ele, a ditadura comunista no país. O fato é que as eleições de abril de 1975 e os pleitos seguintes demonstraram que o país estava firme em seus propósitos democráticos; além disso, os comunistas ganharam fôlego após a revolução, mas eram os socialistas a corrente dominante na esquerda.

Spínola morreu em agosto de 1996. Passados 27 anos, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, condecorou, sem alarde, o general com o Grande Colar da Ordem da Liberdade.

Erramos: o texto foi alterado

A Revolução dos Cravos ocorreu em 25 de abril de 1974, não em 25 de março, como este texto afirmava inicialmente. O trecho foi corrigido.

Como é que o Brasil é de direita e Lula está no poder?, FSp (definitivo)

 Dezoito por cento do eleitorado se considera de esquerda, 28% de centro e 41% de direita, segundo pesquisa do Ipec. Sendo assim, como é possível que tenhamos um governo de esquerda?

O fato é que Lula é muito maior do que a esquerda nacional. A mesma pesquisa também mostra isso. Dos que votaram nele no segundo turno em 2022, 33% se consideram de esquerda, 29% de centro e 27% de direita. É por isso que o espectro da aposentadoria de Lula —que tem, no máximo, sete anos de Presidência pela frente— deve tirar o sono de muitas lideranças do PT. Como não encolher depois que Lula sair de cena? Boulos, Gleisi, Janja; todos esses são esquerdistas de verdade, coisa que, no Brasil atual, não é vantagem.

É claro que esses rótulos omitem muitas variações internas e dão a ideia de fixidez em algo que é muito fluido, mas captam, sim, uma realidade: a população brasileira tende ao conservadorismo moral, à crença na responsabilidade individual (para o bem e para o mal), à crença em Deus e ao desejo por ordem na sociedade. Tudo o que foge muito disso tem dificuldades junto à opinião pública.

Apoiadora de Jair Bolsonaro durante ato na avenida Paulista, na campanha de 2022 - Miguel Schincariol - 7.set.22/AFP

E, no entanto, o debate público parece distante desses termos. Seja no direito penal, na proteção a minorias, no reconhecimento de costumes que ferem a moral dominante, nos acostumamos a dialogar com as ideias mais progressistas vindas da Europa. O único problema é que grande parte da população ficava de fora dessa conversa.

Muitas das conquistas em direitos humanos e em pautas progressistas só foram possíveis porque essa elite cultural tinha um acesso privilegiado aos espaços de tomada de decisão, seja no Legislativo, no Judiciário, na mídia, em institutos e think tanks, etc. Eu, embora seja de centro-direita, faço parte desse grupo, com visões de costumes francamente mais progressistas do que a média da população brasileira.

A esquerda sempre apontou, corretamente, a enorme desigualdade econômica do nosso país. Está na hora de ela se defrontar, então, com uma de suas consequências: o abismo de crenças e valores que existe entre a elite cultural (aqueles que têm espaço na mídia, nas artes, nas universidades) e o resto da sociedade.

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Enquanto a esquerda progressista dominou o discurso nos meios institucionais, que falam de cima para baixo, como quem ensina, a direita aprendeu a falar no nível da população. E hoje todos falam em pé de relativa igualdade, todos têm voz. E então aquelas opiniões francamente de direita, antes vistas como "atrasadas" e até desprezadas pela elite cultural, hoje se fazem ouvir sem medo. Vivemos um momento mais democrático.

Mais democracia não significa necessariamente mais direitos de minorias e pautas progressistas. Significa apenas que as visões do povo estarão mais fielmente reproduzidas na política, sejam elas quais forem. É por isso que sentimos que vivemos uma série de retrocessos em pautas importantes, e isso pode estar apenas começando.

Pelos próximos anos, os debates mais importantes do Brasil devem se dar no campo da direita. O problema é que boa parte da direita mostrou se sentir à vontade com a violação das regras do jogo democrático se isso for o necessário para vencer. Conseguiremos reconciliar a opinião majoritária de direita ao funcionamento da democracia liberal, da qual ela tantas vezes se sentiu alienada e desprezada? Esse é o desafio.

Bolsonaro foi o ataque violento à própria democracia. Depois dele, terão que surgir alternativas que carreguem os valores da direita dentro das regras do jogo democrático. E os participantes tradicionais desse jogo, por sua vez, vão ter que aceitar e se acostumar com o fato de que a direita de verdade tem todo o direito de existir, propor seus valores e vencer.