A tragédia humanitária e sanitária em que estamos mergulhados nos confronta com uma crise ética e civilizacional de igual gravidade. Estamos todos perdendo com a negligência criminosa do governo. Mas quem tem dinheiro acha que pode contornar a demora na imunização passando à frente dos que deveriam estar em primeiro lugar: profissionais de saúde, idosos e quem tem comorbidades.
No começo deste mês, soube-se que clínicas privadas negociavam diretamente com uma farmacêutica na Índia a compra de vacinas, alegando tratar-se de ação complementar ao SUS. Agora, a coluna Painel informa que grandes corporações negociam com o Ministério da Saúde a compra de doses no exterior.
Metade seria entregue ao SUS, metade ficaria para funcionários das empresas e seus parentes. Cientistas renomados tem insistido que vacinação é estratégia coletiva, que só dá resultados quando aplicada em larga escala. Ninguém está a salvo do vírus individualmente ou em pequenos nichos. No Império, o voto era "censitário", de acordo com a renda do cidadão. Agora, estaríamos diante da vacina "censitária". Uma ilusão que só agravaria a desigualdade realçada pela pandemia.
Do ponto de vista ético, a generosidade de Albert Sabin deveria ser o nosso norte neste momento. O cientista renunciou aos direitos de patente da gotinha contra a poliomielite, o que permitiu proteger milhões de crianças no mundo inteiro. Solidariedade. É disso que mais precisamos.
Não se trata de demonizar o setor privado, que pode ajudar de muitas outras formas, como em logística, armazenamento e transporte. Desde que suas ações reforcem a política pública e não concorram com ela. As empresas não confiam na capacidade do governo federal? Procurem os governos estaduais, que podem e devem mobilizar suas estruturas e capilaridade.
Contra o coronavírus, já temos vacinas. Precisamos, desesperadamente, de um antídoto contra a barbárie.
Na última coluna em que defendi o impeachment de Bolsonaro,dia 11, eu pregava para convertidos. Em duas semanas, a maré virou, e apossibilidade de afastamentodo presidente se tornou o grande tema nacional. O que houve nesses 15 dias?
A mudança não se deu no panorama geral. A inadequação do presidente e de seu governo, consubstanciada na sucessão de eventos passíveis de enquadramento como crime de responsabilidade, já estava presente.
Também já estavam em curso fenômenos que sabíamos que afetariam negativamente a popularidade da gestão, como o fim do auxílio emergencial e a segunda onda da epidemia. Ainda que tenham contribuído para a mudança, esses fatores não são bons candidatos a "tipping points" (pontos de virada).
Moro: O depoimento de Moro sobre seu pedido de demissão é o primeiro passo da investigação aberta pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, e autorizada pelo STF. O objetivo é descobrir se as acusações feitas pelo ex-juiz contra Bolsonaro são verdadeiras ou se ele mesmo pode ter cometido crimes.Adriano Machado - 13.mai.20/Reuters
O que surgiu de novo na última quinzena foram os relatos de pacientes morrendo por asfixia em Manaus, devido à incompetência do governo em assegurar estoques adequados de O2, e a constatação de que, também por culpa do governo, o Brasil só conseguiu uma quantidade mínima de vacinas.
Enquanto países que se prepararam, como Israel e o Reino Unido, já imunizaram coortes importantes da população e podem estar colhendo os frutos em termos de redução das hospitalizações, no Brasil não conseguimos doses nem para inocular os profissionais de saúde que lidam diariamente com a doença.
Ambas as "novidades" reúnem atributos de "tipping points" poderosos, que falam diretamente a nossos cérebros. A história de Manaus cutuca nosso medo ancestral de morrer por asfixia. A das vacinas apela a uma realidade alternativa muito desejada que só não se concretizou porque alguém (Bolsonaro) fez uma terrível besteira.
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Os próximos dias dirão se a mudança de humor veio para ficar ou se não passa de um soluço. De qualquer forma, erra quem acredita que o apoio do volúvel centrão é proteção suficiente contra uma virada genuína da opinião pública.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
Considerado por parlamentares como favorito para assumir a presidência da Assembleia Legislativa de São Paulo, em março, o deputado estadual Carlão Pignatari (PSDB) responde a pelo menos quatro processos na Justiça por improbidade administrativa e, em dois deles, já foi condenado à perda do mandato e dos direitos políticos. Ele recorreu das sentenças e, num processo em que o desfecho estava prestes a retirá-lo do cargo, negociou um acordo com o Ministério Público de São Paulo (MPSP).
O caso teve início quando Pignatari era prefeito de Votuporanga (2000-2008), e sua gestão deixou de cumprir uma ordem judicial que o obrigava a comprar remédio para um morador da cidade. O medicamento não foi adquirido e, três meses depois, a pessoa morreu.
O deputado Carlão Pignatari (PSDB) na tribuna do plenário da Alesp, o Legislativo estadual Foto: José Antônio Teixeira/ALESP
Os neto do morador de Votuporanga pediram indenização por danos morais, e a Justiça condenou o município a pagar R$ 50 mil à família. A Promotoria de Justiça do município entrou com uma ação contra Pignatari por improbidade, na qual alega que houve dano ao erário e que ele teve responsabilidade no caso.
Já deputado, Carlão foi absolvido em primeira instância por falta de provas. “Não obstante a oportunidade para produção de novas provas, o Ministério Público nada requereu. Impossível pois, a condenação do chefe de governo municipal”, afirmou o juiz Sergio Martins Barbatto Júnior, da 5ª Vara de Votuporanga, que absolveu o parlamentar.
No ano seguinte, um acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou Pignatari a pagar a indenização com juros, além de determinar a perda do cargo público e dos direitos políticos por cinco anos. Os promotores alegaram que não haviam produzido provas porque consideravam que a responsabilidade do então prefeito já estava comprovada, tese acatada pelo TJ.
Em agosto do ano passado, a defesa de Pignatari fechou um acordo com a Promotoria de Votuporanga pelo qual ele aceitava pagar a indenização e as custas processuais, mas evitava a cassação de seus direitos políticos. O deputado foi a primeira pessoa no Estado de São Paulo a fechar um acordo de não persecução civil aprovado pelo Conselho Superior do MPSP. Esse tipo de acordo foi criado com o pacote anticrime, de autoria do ex-ministro Sérgio Moro, em 2019.
Outra condenação de Pignatari ocorreu em 2015, no caso que ficou conhecido como "Escândalo dos Sanguessugas", envolvendo irregularidades na compra de ambulâncias. Ele foi denunciado na Justiça Federal por ter assinado dois convênios entre o município de Votuporanga e a União, nos quais o Ministério Público Federal apontou direcionamento de licitações para beneficiar firmas de um grupo empresarial.
A sentença também prevê a perda de mandato, mas o caso tramita há mais de quatro anos em segunda instância, sem decisão, e o Ministério Público Federal pede que a Justiça mantenha a condenação e a pena de multa no valor de R$ 259,2 mil.
O deputado também responde a dois processos por improbidade relacionados à Operação Fratelli, deflagrada em 2013 pelo Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (Gaeco) do MPSP. Ele é acusado de participar de supostas fraudes em licitações praticadas por um grupo de empresas, no caso que ficou conhecido à época como "Máfia do Asfalto" e envolve fraudes a licitações em 78 municípios.
Nas ações, o MPSP diz que a prefeitura de Votuporanga, em conluio com as empresas, teria simulado concorrências para direcionar o resultado. As ações ficaram suspensas durante anos, pois um habeas corpus apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF) questionava a legalidade das provas. O STF julgou que as provas derivadas de interceptações telefônicas são ilícitas e não podem ser usadas. Uma das ações aguarda a sentença do juiz, e a outra ainda não foi aceita pela Justiça.
No ano passado, Pignatari foi investigado em outro inquérito do Ministério Público, após o Estadão revelar que uma lei de sua autoria havia beneficiado uma empresa da qual é sócio. A lei em questão praticamente impediu o governo paulista de vender um produto hospitalar para entidades filantrópicas, excluindo o principal concorrente da companhia da qual o deputado é investidor. O inquérito foi arquivado após a promotoria considerar que não havia provas de que Pignatari tivesse se beneficiado.
Defesa
Procurado pela reportagem, Pignatari disse que não foi intimado pessoalmente da decisão sobre a compra do remédio pela prefeitura de Votuporanga, “daí a absolvição em primeira instância”. Por meio de nota, a assessoria do parlamentar informou ainda que “agora, firmado o acordo e homologado, mesmo sem admitir culpa ou dolo na omissão, o deputado ressarciu os danos que a administração municipal possa ter sofrido, visando a extinção da ação, contando, inclusive, com parecer favorável do Ministério Público Federal”.
Em relação ao caso das ambulâncias, o deputado alegou que ele próprio registrou boletim de ocorrência “contra atos dos representantes” das empresas vencedoras da licitação. “Fosse conivente com toda a situação que lhe rendeu equivocada condenação, teria agido dessa forma?”, afirmou sua assessoria.
Sobre os outros processos, Pignatari alegou que “a acusação de fraude em licitações pende de julgamento em primeira instância". De acordo com a assessoria do parlamentar, “a improcedência para esse caso é o que se espera em razão da lisura dos procedimentos licitatórios na prefeitura de Votuporanga”.
Disputa
Embora seja considerado pelos deputados estaduais como o nome que deve assumir o comando do Legislativo paulista, Pignatari tem evitado falar publicamente sobre a candidatura. Na Alesp, há especulação sobre a possibilidade de nomes do PSOL e do Novo disputarem a presidência, mas os partidos ainda não lançaram candidatos oficialmente. O deputado Coronel Telhada (PP) estuda lançar sua candidatura, mas seu nome ainda não ganhou adesão na oposição e entre deputados independentes, cujos votos seriam necessários para torná-lo um concorrente competitivo (no total, a Alesp tem 94 deputados).