sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

4/4 AS MINAS SEGURAM TODAS Angélica Santa Cruz (definitivo)

 Comecei a ler com atenção sempre que topo com algum conteúdo que trata do envelhecimento – não do ponto de vista filosófico ou demográfico, mas dos efeitos físicos. Fui agarrando algumas respostas de interesse pessoal. Por que a voz da minha mãe ficou mais grave, parecida com a da minha avó? Por causa da presbifonia, alterações vocais que aparecem quando os músculos da laringe perdem força e as cartilagens endurecem. Por que a expressão sorridente dela passou a sair nas fotos meio carrancuda? Porque com o tempo ela foi perdendo o controle dos músculos. Por que ela não se lembra do que almoçou hoje, mas é capaz de recitar poemas e modinhas inteiras que aprendeu na infância? Porque a memória remota falha, mas vai buscar os registros mais antigos – no caso dela, um conjunto precioso de um tempo em que uma educação oral ensinava as crianças a dizer poemas e canções.

Achar respostas para os efeitos físicos de todos os graus de envelhecimento, com a profusão de informações disponíveis por aí, é fácil. Mas para aprender sobre cuidados práticos o caminho é outro. Aqui entra uma rede que, como se sabe, é essencialmente feminina. Pesquisas mostram que as chances de uma pessoa não ter de ir para uma casa de repouso na velhice estão diretamente relacionadas ao número de filhos – e ter por perto uma filha é crucial. Quando chega a hora de tomar pequenas medidas que são na verdade grandes rendições existenciais – como colocar a primeira fralda geriátrica ou pedir ajuda da primeira cuidadora – as iniciativas e as trocas de informações vêm das mulheres.

Uma olhada pelos corredores dos hospitais dedicados à geriatria é um passeio pela tradição nociva que, com raras exceções, exime os homens da rotina de criação dos filhos

A cada internação, as enfermeiras ensinam macetes diferentes – da melhor maneira de ajeitá-la na cama a um jeito de rasgar a fralda para acomodar melhor ao corpo. As cuidadoras comparecem com dicas de higiene – como usar uma colherzinha para dar os comprimidos na boca, quando usar luvas descartáveis etc. As filhas que passam a cuidar pessoalmente ou a coordenar esses cuidados quase sempre estão ensanduichadas entre a criação dos filhos, a administração da casa e o mercado de trabalho – é uma jornada quádrupla.

A ausência de homens nesse ambiente é escandalosa. Uma olhada pelos corredores dos hospitais dedicados à geriatria é um passeio pela tradição nociva que, com raras exceções, exime os homens da rotina de criação dos filhos e, mais adiante, os retira da linha de frente dos cuidados com os idosos. É uma nova fronteira do feminismo: homens, não basta aprender a dividir as tarefas com os filhos e com a casa, assumam também os cuidados com os nossos velhos! E é uma briga inglória. Envolve uma sociedade com pavor de lidar com a finitude de seus parentes e que trata o envelhecimento deles como um fracasso, um peso, um assunto para tirar da frente. No antropocentrismo em que fomos parar – e de onde achamos que dá para controlar a natureza, a vida, a passagem do tempo, a morte – a velhice que exige cuidados virou um defeito a ser escondido. Acho que esse é um dos grandes temas dos nossos tempos.

Cuidar da minha mãe às vezes é espinhoso. Assumir a administração financeira e dos 15 remédios que ela toma por dia não é um passeio na praia

Cuidar da minha mãe às vezes é espinhoso. Assumir a administração financeira e dos 15 remédios que ela toma por dia não é um passeio na praia. Foi ela quem criou a gente – e a inversão dos papéis é esquisita. Assim como acontece em qualquer núcleo familiar, não é um universo instagrâmico o tempo todo. De vez em quando estouram uns quebras entre ela e a minha irmã, ou entre ela e eu, ou entre a minha irmã e eu – todos rapidamente resolvidos logo adiante, ainda bem. Mas é um ciclo de vida da nossa família, como outro qualquer. Perguntando a mesma coisa cinquenta vezes, de vez em quando dizendo que queremos matá-la com tantos remédios, guardando presentinhos em uma caixa para uma vizinha de quatro décadas atrás como se fosse vê-la de novo em algumas horas, conversando com amigos imaginários, zoneando nosso esquema de trabalho por não querer tomar banho na hora que se encaixaria melhor na rotina, ela ainda é ela. A minha mãe está ali, lindona em mais esse período da vida. É o grande fio de afeto que liga as nossas horas fundamentais, as nossas incríveis noites de Natal.

Filho único, meu marido deixou anos atrás a possibilidade de uma vida acadêmica no exterior e voltou ao Brasil para ficar até o fim perto da mãe que sofria as sequelas de um AVC. Com o pragmatismo dos cientistas, costuma me dizer que nada, nada mesmo, substitui a tranquilidade emocional de saber que fez tudo o que podia pelo bem-estar dos pais em seus momentos de dependência. Ele está certo, eu acho.

Você aí, cuide do seus idosos.

ANGÉLICA SANTA CRUZ dirigiu oito títulos da editora Abril, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo, repórter especial do Estado de S.Paulo, editora da Veja e chefe de sucursal do site NO.com.


3/4 TUDO À VISTA – UM MERCADO CARO E COMPLEXO Angélica Santa Cruz - Revista Gama

 Nas divisões geracionais inventadas pelos sociólogos e usadas pelo marketing para definir levas de humanos, a minha mãe está entre os veteranos, o pessoal que nasceu entre 1925 e 1944 e antecedeu os baby-boomers, nascidos entre 1944 e 1964. Os dois grupos testemunharam na vida adulta um planeta próspero, uma janela temporal de paz, uma era em que as novas gerações tendiam a ser melhores do que seus pais nos indicadores de sucesso em voga – nível de escolaridade, poder aquisitivo etc. Agora, na velhice, são cobaias da maior expectativa de vida da história da humanidade. E uma das grandes descobertas dessa longa estrada é que viver muito em geral exige inúmeros serviços e enormes recursos.

Os cuidados com a minha mãe levaram nossa família a descobrir a existência de coisas como o IPC-3i, índice que mede a inflação para o consumidor com mais de 60 anos. Nos fizeram virar craques nos planos de descontos das redes de farmácias. Nos obrigaram a descobrir a profusão de lojas especializadas em produtos para os velhos e convalescentes – camas reclináveis, andadores, cadeiras de rodas, fitas e bolas para fisioterapia, colchões infláveis casca de ovo, adaptadores para banheiro, oxímetros, assentos elevados, concentradores, cateter nasal, medidores de glicose e umidificadores estão entre as nossas compras. Produtos grandes, como as camas, são mais alugados do que vendidos – dado que o consumidor-alvo nem sempre tem muito tempo pela frente.

Na velhice, são cobaias da maior expectativa de vida da história da humanidade. E uma das grandes descobertas é que viver muito exige inúmeros serviços e enormes recursos

As compras jamais são parceladas no cartão – pelo mesmo motivo. E são lugares assépticos, uma extensão do ambiente hospitalar. Farejando a oportunidade mercadológica, já vi gente sugerindo uma repaginação para que esses ambientes fiquem mais palatáveis – à maneira do que é feito com os impérios de consumo kids e teen. É uma boa ideia, embora seja difícil imaginar uma cadeira para banho passando por um reposicionamento de marca. Quando se lida com idosos, todo cuidado é pouco – inclusive com cores. Tapetes azuis, por exemplo, podem provocar em quem tem demência o pânico de estar prestes a cair em um precipício – para esse público, tem que ser vermelho. Sob o ponto de vista de uma idosa de classe média – afinal de contas ainda sortuda por estar entre o menos de um terço da população brasileira que ainda tem um plano – o mercado de saúde é caro e complexo.

Nas internações hospitalares, enfermeiros diferentes divididos em turnos entram no quarto com prontuários nas mãos. Se não tiver um acompanhante diligente e com a memória do que foi feito nas horas anteriores, é grande a chance de que eles ofereçam um remédio errado, ou na hora errada. Em cada entrada, é preciso repetir os detalhes sobre o motivo da internação e o histórico de doenças. Fisioterapeutas novatos aparecem para o exercício diário, também desavisados das particularidades da paciente. É uma falta de comunicação cansativa, às vezes arriscada para um idoso sem companhia, mas rotineira inclusive nos bons hospitais.

O sistema de cuidados com a saúde da minha mãe é caro, não a enxerga direito e às vezes não sabe direito o que está fazendo

Liberada das internações, minha mãe fica em home care. Funciona assim: o plano de saúde terceiriza a coordenação geral dos cuidados para uma empresa, que arregimenta os profissionais e quarteiriza a contratação dos produtos que são obrigados a fornecer. Médicos e enfermeiros que fazem o acompanhamento, no geral, são profissionais admiráveis. Mas cada pedido de serviço – para trocar o concentrador, para repor o oxigênio etc – passa por túneis infinitos de telefonemas, informações desencontradas, demoras preocupantes.

Uma vez minha mãe caiu na cozinha. A gente pediu uma ambulância, porque temia levantá-la sem ajuda especializada e causar ou piorar alguma eventual fratura. Nas horas de espera, seguiram-se quase uma dezena de telefonemas atordoantes, de empresas e pessoas diferentes – quase sempre fazendo as mesmas perguntas. Para que ela se mantivesse calma, colocamos almofadas no chão e deitamos ao seu lado. A ambulância enfim chegou e, a caminho do hospital para fazer exames, a jovem paramédica pedia ajuda para avaliar se a oxigenação da minha mãe era suficiente.

O sistema de cuidados com a saúde da minha mãe é caro, não a enxerga direito e às vezes não sabe direito o que está fazendo. Nessa engrenagem, ela chegou perto de virar história por várias vezes – escapou porque tem o acompanhamento de uma geriatra atenta, que a trata há mais de uma década, conhecida e respeitada pelos médicos dos hospitais.

ANGÉLICA SANTA CRUZ dirigiu oito títulos da editora Abril, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo, repórter especial do Estado de S.Paulo, editora da Veja e chefe de sucursal do site NO.com.


2/4 PICADINHAS, PICADONAS – A INFANTILIZAÇÃO, Angelica Santa Cruz - Revista Gama

 A minha mãe adorava ser dona-de-casa, mas foi para o mercado de trabalho quando ficou viúva e revelou habilidades extraordinárias de sobrevivência na selva. Apostou tudo na nossa educação. Certa vez, vendeu a geladeira da casa – vermelha como o casaco da Jane Fonda – para pagar algumas das mensalidades atrasadas do bom colégio em que me matriculou. Enquanto penhorava a aliança de casamento para pagar o resto, me ensinou a não deixar que ninguém da direção me retirasse da sala de aula para falar do atraso, algo relativamente comum na época. Com uma vida cheia dessas histórias de heroísmo anônimo e circunstancial que às vezes transformam as mulheres comuns em grandes mulheres, ela é, enfim, admirável. Mas a dependência a leva para uma fronteira borrada. Em meio aos cuidados de que precisa agora, quase sempre acaba tratada como se tivesse se descolado da mulher encantadora que é.

No livro “O Brilho do Bronze”, o historiador Boris Fausto revisita em um diário o luto pela morte de sua mulher, com quem viveu por 49 anos. A certa altura, ele escreve:

“11 de SETEMBRO
SOPINHA
Leio na Folha uma entrevista de Paulo José, que luta contra o mal de Parkinson há anos – luta que dispensa adjetivos ou advérbios. Falando de como lida com a doença no contato com outras pessoas, ele lembra algo que também sinto. Diz que é irritante ser tratado como criança pelas enfermeiras do hospital: – Chegou a sopinha! Vovô vai tomar a sopinha agora! Ao que ele responde, irritado – Porra, caralho! Que sopinha o quê! Já passei por situações como essa e fico pensando de que cabeças iluminadas saiu a ideia de infantilizar os idosos, como se a morte à espreita nos fizesse recuar, ilusoriamente, à condição de criança.”

Todo o sistema de cuidados em volta dos idosos é viciado nesse tratamento infantilóide. Cuidadoras tendem a confundir demonstração de carinho com regressão

Todo o sistema de cuidados em volta dos idosos é viciado nesse tratamento infantilóide. Nas internações, enfermeiros de fato avisam que está na hora de tomar um banhozinho, tomar o remedinho e, a mais tétrica de todas as versões, tomar uma picadinha. Cuidadoras tendem a confundir demonstração de carinho com regressão. Estudos mostram que esse tratamento diminui, humilha e pode levar à depressão. A razão é óbvia: se alguém te arrasta de volta para o começo da sua vida, esvazia tudo o que você construiu ao longo dela. No caso da minha mãe, foi muita coisa. Ainda assim, de uma forma geral, tenho a impressão de que ela consegue se defender sozinha desse tipo de tratamento, na maioria das vezes com boas respostas atravessadas.

O ponto delicado está nos casos em que ela não consegue – aí a gente precisa intervir. E intervenções são sempre desmoralizantes. A administração da vida financeira é um clássico desses momentos em que os idosos perdem a autonomia. No imenso universo Big Data, com gerações de lead qualificado, cruzamento de mailings e geolocalizações, eles são um pote de ouro, um alvo do tamanho do sol, para enganações. O telefone da minha mãe toca o dia inteiro, com vendedores com vozes de mel oferecendo, com insistência quase criminosa, suplementos vitamínicos, planos funerários, pacotes de TV a cabo, seguros, consignados.

Operadoras de telefonia enfiam nas contas mensais da casa serviços não contratados em letras minúsculas, provavelmente porque sabem que ela teria dificuldade de identificá-los. Desse balaio, emerge também a incrível capilaridade dos golpistas. Um deles, com acesso à base de dados de uma empresa de seguros que faliu há décadas, ligou dizendo que ela tinha direito a uma bolada por ter vencido uma ação que nunca abriu contra a instituição – e para ajudá-la a ter acesso ao dinheirão, precisaria dos documentos e de um adiantamento para pagar os custos do processo. Ela acreditou, mas teve o lampejo de telefonar antes para a minha irmã e consultá-la. A muito custo, foi convencida de que era um golpe.

As pegadinhas para ganhar uma bolada do nada – quase irresistíveis não só para idosos – chegam de todos os lados, inclusive dos grandes bancos

As pegadinhas para ganhar uma bolada do nada – quase irresistíveis não só para idosos – chegam de todos os lados, inclusive dos grandes bancos. Quando a minha mãe ainda morava sozinha, a cinquenta metros da minha casa, dei uma passada para vê-la em um horário pouco comum. Encontrei na portaria um gerente de banco prestes a subir, com uma papelada em mãos para oficializar um empréstimo que ele a convenceu a fazer, por telefone. Era muito dinheiro, fatiado em prestações que ela não poderia pagar nem com expectativa de vida de 200 anos. Expliquei que a minha mãe não precisava, que a gente cuidava dela, que já mostrava sinais de dificuldades de raciocínio e de julgamento, me despedi do sujeito. O gerente insistiu, disse que eu não tinha nada a ver com aquilo, respondeu que havia combinado direto com uma adulta, só faltava uma assinatura.

O tom da conversa foi subindo – e acabou com ele do outro lado da rua berrando ameaças, agitando furiosamente uma pasta, e eu, da janela do apartamento dela, gritando: “tomara que tenha alguém agora fazendo com a sua mãe o que você quis fazer com a minha!”. O sujeito enfim foi embora, liguei para o banco e me disseram que ele, funcionário terceirizado, queria apenas captar clientes. A minha mãe ficou me olhando amuada, meio envergonhada – parecia de fato uma menina. Briguei com ela também (“por que não contou pra gente? viu como escapou por pouco?”) – e depois passei a semana destruída.

Tempos depois, minha irmã descobriu que ela tinha sete contas-poupança com saldos insignificantes em outro banco, abertas quando ia buscar a aposentadoria e não conseguia se desvencilhar de atendentes insistentes que precisavam cumprir metas e ofereciam novos produtos. Fechar as contas exigiu que a levássemos à agência em um momento em que já estava frágil, com dificuldades de mobilidade. Constatar que a mesma mulher que preparou as duas filhas para os perigos da vida agora poderia levar ganchos sem nenhuma esquiva foi uma perturbação. Muito antes do “Dilema das Redes”, a gente começou a proteger os dados dela de uma maneira meio neurótica.

A minha mãe virou alvo fácil de diminutivos, alvo fácil de pequenas e grandes enganações. No dia a dia dos cuidados, o equilíbrio entre protegê-la a esvaziar suas vontades está sempre por um fio. Nem sempre a gente consegue.

ANGÉLICA SANTA CRUZ dirigiu oito títulos da editora Abril, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo, repórter especial do Estado de S.Paulo, editora da Veja e chefe de sucursal do site NO.com.