terça-feira, 5 de janeiro de 2021

RONALDO DE ALMEIDA O sacrifício de Crivella, FSP

 Ronaldo de Almeida

Professor do Departamento de Antropologia da Unicamp e pesquisador do Cebrap, é autor de ‘A Igreja Universal e seus demônios’

Após a eleição de Marcelo Crivella para a Prefeitura do Rio de Janeiro, em 2016, publiquei nesta Folha o artigo “Os espinhos na carne de Crivella” (17.nov.2016), valendo-me da metáfora bíblica citada por ele durante a campanha eleitoral.

O espinho assumido por Crivella era sua prisão por um dia (vejam só!), durante a juventude, por ter usado de violência para expulsar o vigilante morador de um terreno da Igreja Universal. A história foi divulgada pela revista Veja durante a campanha, com a foto de capa de Crivella fichado pela polícia. Esta capa só saiu no Rio de Janeiro, enquanto no restante do país a revista estampou a prisão de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados.

Naquele artigo afirmei que o prefeito eleito teria outros três ferrões a lhe maltratar a carne: a Rede Globo, que temia (teme) a concorrente TV Record; o próprio vínculo com a Igreja Universal; e os esquemas de corrupção dos atores políticos que desembarcaram em sua candidatura no segundo turno contra o hoje deputado Marcelo Freixo, do PSOL.

Ao lado da antropóloga carioca Lívia Reis, do Iser (Instituto de Estudos da Religião), acompanhei in loco os passos da campanha de Crivella naquele segundo turno. Como morador de São Paulo, senti que poucos paulistanos se aperceberam de alguns sinais já presentes na eleição municipal no Rio que explodiram nacionalmente em 2018. Em São Paulo, o pleito havia sido decidido logo no primeiro turno com João Doria (PSDB), candidato da antipolítica que se apresentava como gestor de empresas e com discurso neoliberal.

Mas, na cidade maravilhosa, Crivella se apresentava como “cuidador de pessoas” e fortemente ancorado no discurso conservador dos costumes. “Ideologia de gênero”, casamento gay, aborto, família tradicional, entre outros, foram mobilizados contra seu opositor, gerando pânico moral. Em 2020, na campanha da reeleição, Crivella tentou reavivar esse clima contra Eduardo Paes (DEM), mas não colou.

Sobre a vulgaridade de sua gestão, destaco apenas dois episódios. O primeiro foi o clientelismo religioso quando ofereceu aos evangélicos de sua base de apoio o contato de uma assessora (“a Márcia”) para resolver problemas pendentes com a prefeitura. O segundo episódio foi o dos “Guardiões do Crivella”, grupo formado por pessoas pagas para atrapalhar o trabalho da imprensa na frente de hospitais da prefeitura. A assessora Márcia e o recrutador dos “guardiões”, o pastor Marco Paulo de Oliveira Luciano, são ligados à Igreja Universal.

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Não é raro na Igreja Universal a sobreposição de fiéis e militantes (pagos e não pagos); de pastores e mediadores comunitários; e de bispos, empresários e atores políticos. Trata-se de uma engrenagem econômica-política-religiosa que se retroalimenta e da qual o ex-prefeito Crivella é uma das partes centrais.

Entre os que foram alcançados pelos mandados de prisão está o pastor Paulo Lopes, ex-suplente de Crivella no Senado —que já foi responsável pela Folha Universal (principal jornal impresso da Igreja Universal) e é considerado o articulador político da igreja no Rio de Janeiro. Foi preso também o ex-tesoureiro de campanha, Mauro Macedo, primo do bispo Edir Macedo.

Este não é o primeiro escândalo de alguém central da Igreja Universal. O ex-deputado federal Bispo Rodrigues, então articulador político da igreja no Congresso Nacional, esteve envolvido no caso do mensalão em 2004 e renunciou. Depois foi alvo da Polícia Federal na “Operação Sanguessuga”, em 2006.

Sem titubear, Edir Macedo sacrificou o seu bispo, assim como tantos outros que comprometeram o tabuleiro de seu “Plano de Poder” (título de um dos seus livros).

Mas o que fazer agora com o seu quadro político mais promissor e que também é um parente, o filho da irmã? Quando Crivella se referiu ao seu espinho na carne, na campanha de 2016, tinha em mente o que chamou de um “erro de juventude”.

Perguntei ao final do meu artigo de 2016 se os possíveis espinhos que ele teria na gestão poderiam se converter em uma coroa (de espinhos). Hoje, pergunto se essa coroação, como no mito cristão, será seguida também de um sacrifício. A ver.


Pablo Ortellado - Minha despedida, FSP

 Com esta coluna encerro minha colaboração com a Folha.

Tentei aproveitar o espaço para comentar a agenda política nacional de duas perspectivas diferentes: como observador de esquerda independente e como estudioso da polarização política e das mídias sociais.

Como investigador que acompanha a literatura acadêmica, aproveitei o espaço para divulgar estudos que poderiam interessar a um público mais amplo, como o livro de Paolo Gerbaudo ("The mask and the flag") sobre os movimentos sociais dos anos 2011-2013, o livro de Farris e Benkler ("Network propaganda") sobre a segmentação do público leitor nas mídias sociais ou a etnografia de Arlie Hoschschild ("Strangers in their own land") sobre a nova direita americana.

A investigação que coordeno na USP com Marcio Moretto, observando o comportamento nas mídias sociais e medindo a opinião do público em manifestações de rua, permitiu constatar (com perplexidade) o apoio ativo à reforma da Previdência, a desconexão da esquerda de certas posições populares e os impactos do bolsonarismo na expansão da Covid.

Como comentarista político, busquei exercitar a independência dissociando meus juízos políticos da minha identidade de esquerda.

A polarização política tem produzido uma espécie de hipertrofia das identidades sociais políticas como ser "de esquerda", "feminista", "patriota" ou "conservador". Essas identidades passaram a ser ardorosamente partilhadas por um público mais amplo, muito além dos círculos ativistas, gerando uma dinâmica relacional destrutiva que é pouco apoiada em divergências substantivas.

Por esse motivo, busquei conscientemente me afastar das minhas próprias identidades políticas que eram fruto de uma longa trajetória de envolvimento com os movimentos sociais autônomos e a contracultura.
Em vez de estimular o ardor esquerdista, produzindo indignação, de um lado, e coesão com o grupo, de outro, busquei discutir as questões políticas de maneira independente, sendo bastante crítico com a esquerda parlamentar quando me pareceu necessário.

Num contexto de polarização, nossa responsabilidade política principal é a de criticar o próprio campo, já que o adversário jamais nos dará ouvidos. Isso me levou a polêmicas no jornal sobre o fascismoargumentos fiscais e o stalinismo.

Gostaria de sublinhar que a Folha me proporcionou a mais completa liberdade editorial, mesmo quando exerci um contraponto às posições do jornal, defendendo a expansão do gasto social e uma maior regulação do Estado.

Agradeço ao jornal e aos seus leitores por esses três anos de reflexão.

Pablo Ortellado

Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.