quinta-feira, 9 de julho de 2020

Fala 'cidadão, não' mostra restos de uma atrasada estrutura de classes, FSP


Grande semana para quem lê jornais e revistas. Começou com o texto de João Moreira Salles, na revista Piauí de julho, sobre a morte e a destruição como os únicos valores do bolsonarismo e do próprio Bolsonaro.

O texto é paradoxalmente chocante —choca e, ao mesmo tempo, nada nos é lembrado que já não soubéssemos. Diferente do que acontecia nos fascismos tradicionais, o bolsonarismo não tem um projeto de nação, só uma paixão destrutiva.

Ilustração de homem em uma espreguiçadeira com os braços atrás da cabeça e as pernas cruzadas. Ele veste camisa social, gravata, calça e sapatos. Seu rosto é amarelo, mas está coberto com uma máscara de rosto inteiro vermelha, e uma máscara descartável flutua em cima da máscara. Há fumaça branca saindo dos furos para os olhos da máscara. A espreguiçadeira está em cima de um monte de lixo
Luciano Salles/Folhapress

pandemia, com sua corte de mortos, de doentes e de vidas arruinadas, não lhe inspira compaixão: ela é apenas mais uma figura esperada do triunfo da morte. E o presidente comenta: “E daí?”. Talvez sua própria contaminação pelo vírus apenas o confirme em seu gosto pela morte.

No segunda, Leonardo Sakamoto comentou o caso (apresentado no Fantástico de domingo) da mulher que, na Barra da Tijuca, achou intolerável ser tratada como uma simples “cidadã” pela fiscalização da Vigilância Sanitária e respondeu que o marido não era “cidadão, não”, mas engenheiro civil, com uma formação “melhor do que a sua”.

De forma engraçada, isso foi dito a Flávio Graça, superintendente da Vigilância, que é médico veterinário, com mestrado e doutorado. De qualquer forma, desde a Revolução Francesa, “cidadão” é a mais nobre maneira de os membros de uma comunidade se chamarem uns aos outros. Mas, claro, comunidade não era a preocupação da mulher da Barra…

O comportamento dela expõe “séculos de nossa formação”, ou seja, mostra os restos de uma miserável e atrasada estrutura de classes, a qual ainda circula pelos esgotos nauseabundos de nossa história. Ora, para Sakamoto, o bolsonarismo é um esgoto que Bolsonaro tornou orgulhoso de si.

Todos, indivíduos e sociedades, evoluímos e nos transformamos em cima de restos persistentes e malcheirosos, que seguem circulando nos nossos porões e, de vez em quando, regurgitados por um bueiro, inundam uma ou outra sarjeta. Administrar esses restos e seus odores é, para cada cultura e para cada indivíduo, uma questão de saneamento básico (veja-se, recentemente, a regurgitação racista e a trabalheira que está custando devolvê-la ao esgoto).

Agora, o Brasil, como sabemos, tem um problema de saneamento: o esgoto mal precisa regurgitar, ele circula livre pelas nossas ruas —e frequentemente pelas mais luxuosas delas.

Volto ao texto de João Moreira Salles, que termina assim: “Em 2018, 57,7 milhões de brasileiros sufragaram a versão piorada de um regime odioso [a ditadura militar]. Outros 11 milhões anularam ou votaram em branco. No fim das contas, talvez fosse inevitável chegarmos a isso. Bolsonaro não é diferente do país que o elegeu. Não todo o Brasil, nem mesmo a maioria do Brasil (uma esperança), mas um pedaço significativo do Brasil é como Bolsonaro. Violento, racista, misógino, homofóbico, inculto, indiferente. Perverso”.

Só discordo um pouco de João Moreira Salles porque não acho que os restos no nosso esgoto pertençam apenas aos brasileiros que elegeram Bolsonaro. Os restos são de todos nós. Os que elegeram o presidente regurgitaram e continuam regurgitando esses restos pelas ruas e eventualmente se orgulham deles, como a mulher da Barra. Os outros, que votaram contra, são os que conseguem esforçadamente conter seus restos no seu devido lugar: o esgoto. A diferença entre os dois é só essa.

Em outras palavras, a extraordinária mediocridade desse governo não representa 15% ou 30% ou 40% dos brasileiros. Ela (e aqui está sua força) representa o Brasil em algo essencial: seus esgotos históricos.

Alguns se orgulham desses esgotos; para outros, Bolsonaro exemplifica e presentifica o pior, aquela parte de nós da qual nos envergonhamos. Ele é nossa vergonha.

Justamente, mais um texto da semana: a revista Serrote de julho traz “O Vínculo da Vergonha”, um breve ensaio de Carlo Ginzburg, o grande historiador italiano. O texto começa assim: “Há muitos anos, percebi de repente que o país a que pertencemos não é, como quer a retórica mais corrente, o país que amamos, e sim aquele do qual nos envergonhamos. A vergonha pode ser um vínculo mais forte que o amor”.

A vergonha constitui um vínculo justamente porque é vergonha de coisas das quais outros da nossa comunidade se orgulham, e nossa vergonha assinala que as compartilhamos, as reconhecemos como “nossas” —ou como partes de nosso esgoto comum.

Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)

Decreto que prorroga corte de jornada e salário deve sair nos próximos dias, FSP

BRASÍLIA

O presidente Jair Bolsonaro deve publicar nesta quinta-feira (9) ou nos próximos dias o decreto que prorroga as regras para empresas cortarem salários e jornadas ou suspenderem contratos de trabalho.

A extensão pode ser feita por meio de decreto presidencial graças a um aval dado pelo Congresso durante a tramitação da medida provisória 936, que criou o programa. Os parlamentares inseriram no texto, sancionado nesta semana, a possibilidade de a prorrogação ser feita por ato do Poder Executivo.

O programa prevê atualmente que, durante o estado de calamidade pública, o patrão poderá acordar a redução proporcional de jornada e salário de seus empregados por até três meses. Já a suspensão temporária do contrato pode durar até dois meses. Nos dois casos, o trabalhador recebe uma compensação de renda do governo.

O Ministério da Economia informou que, com a prorrogação, o prazo máximo passará a ser de quatro meses para ambas as modalidades.

Em casos de acordos já existentes, a pasta diz ser necessário novo trato entre patrão e empregado para prorrogar prazos além dos inicialmente estabelecidos. “Sempre precisa de novo acordo se os termos forem alterados”, afirmou Bruno Dalcolmo, secretário de Trabalho, neste mês.

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Segundo os técnicos, ficam mantidas as condições de não demitir durante o período em que valer a redução ou suspensão e também em período equivalente, sob pena de multa.

Conforme mostrou a Folha em maio, o ministro Paulo Guedes (Economia) queria prorrogar a medida por entender que ela estava dando certo. "Está funcionando tão bem esse da complementação salarial que eu mesmo tenho vontade de estender", disse o titular da área econômica.

Até agora, 12,2 milhões de trabalhadores já tiveram redução de salário ou suspensão de contrato por meio do programa. Dados divulgados pelo Ministério da Economia na semana passada mostram que pouco mais da metade dos participantes (52%) tiveram redução de salário.

Desses, 2,2 milhões (19% do total do programa) tiveram corte de 70% de salário. O setor que mais usa a medida é o de Serviços, com 46% dos acordos firmados. Em seguida, estão Comércio (25%) e Indústria (23%).