quarta-feira, 8 de julho de 2020

Biden e o Brasil, Editorial , FSP

Bolsonarismo teme derrota de Trump, mas rival democrata mostrou ser pragmático

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O candidato democrata à Presidência dos EUA, Joe Biden, responde a perguntas da imprensa durante evento em Wilmington, em Delaware
O candidato democrata à Presidência dos EUA, Joe Biden, responde a perguntas da imprensa durante evento em Wilmington, em Delaware - Kevin Lamarque - 30.jun.20/Reuters

Na sexta-feira passada (3), a campanha reeleitoral de Donald Trump postou em rede social uma mensagem prometendo que, sob o olhar do presidente americano, o Cristo Redentor estaria a salvo.

Seria apenas patético inserir o monumento carioca na discussão sobre a derrubada de estátuas ligadas a passados hoje politicamente incorretos nos EUA, ante ameaça de uma suposta “esquerda radical”.

A mensagem, todavia, diz muito sobre a relação Brasil-EUA após um ano e meio de genuflexão sem precedentes por parte do Planalto.

No dia seguinte, data da independência americana, estavam o presidente Jair Bolsonaro e comitiva numa deslocada confraternização em tempos de pandemia na embaixada dos EUA em Brasília.

Em tal cenário, a ascensão do ex-vice-presidente Joe Biden ao posto de favorito na disputa contra Trump, na eleição de novembro, levanta dúvidas sobre os já parcos dividendos de tal proximidade.

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Porque não bastou ao Itamaraty jurar aliança com Washington: a política externa encarna a identificação do bolsonarismo com Trump. Com isso, adversários do republicano convertem-se em inimigos do Planalto, ao menos na fantasia dos ideólogos de plantão.

Biden já tocara num dos pontos arruinados da imagem externa brasileira em março. “O presidente Bolsonaro deve saber que, se o Brasil falhar em ser o guardião responsável da floresta amazônica, então meu governo reunirá o mundo para garantir que o meio ambiente fique protegido”, disse.

Noves fora a bravata internacionalista, não parece um começo promissor para o Brasil caso o democrata venha mesmo a se eleger.

Biden, contudo, é um pragmático. Pode ser menos arestoso que Trump na relação com a China, mas a rivalidade estratégica entre as duas maiores economias no mundo seguirá, a despeito de quem estiver ocupando a Casa Branca.

Assim, ter um aliado regional de relevo longe dos interesses de Pequim, que são muitos, fará sentido.

Talento para refazer pontes Biden tem: foi sua ação pessoal que mitigou o afastamento de Dilma Rousseff dos EUA, após a presidente ser espionada pelos americanos.

Se conseguir ultrapassar a visão binária das relações internacionais, talvez seja possível ao governo Bolsonaro compor com os EUA sob Biden. Parece difícil, porém, confiar na racionalidade do grupo ora dirigente. O Cristo Redentor tende a seguir passando vergonha.

editoriais@grupofolha.com.br

Cidadão, não; engenheiro formado Elio Gaspari, FSP


A cena foi a mesma.

Na Barra da Tijuca, um fiscal da vigilância sanitária interpelou um casal num estabelecimento onde não se respeitava o isolamento social. O marido desafiou-o, dizendo que ele não tinha uma trena para medir os espaços. O fiscal disse: “Tá, cidadão”. Até aí, seria o jogo jogado, mas a senhora foi adiante:

“Cidadão, não. Engenheiro civil formado, melhor que você.”

Salvo os macacos, os bípedes passaram a usar o tratamento de “cidadão” durante a Revolução Francesa, que derrubou a hierarquia nobiliárquica.

Reprodução de imagem do fiscal abordando uma mulher em bar no Rio de Janeiro
'Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você', afirma mulher a fiscal no Rio de Janeiro - Reprodução

Dias depois a engenheira química Nívea Del Maestro foi demitida da empresa de transmissão de energia onde trabalhava. Em nota, a Taesa informou: “A companhia não compactua com qualquer comportamento que coloque em risco a saúde de outras pessoas ou com atitudes que desrespeitem o trabalho e a dignidade de profissionais que atuam na prevenção e no controle da pandemia”.

Com a mesma retórica, em maio passado, o joalheiro Ivan Storel recebeu um PM que foi à sua casa em Alphaville (SP) atendendo a um chamado que denunciava violência doméstica: “Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano.” (...) “Eu ganho R$ 300 mil por mês”, “você é um merda de um PM que ganha R$ 1.000.”

Storel viria a desculpar-se, dizendo que estava sob o efeito do álcool e dos remédios que toma por estar em tratamento psiquiátrico.

Dias antes, em Nova York, um cidadão que observava passarinhos no Central Park pediu a uma senhora que prendesse a coleira de seu cachorro.

Ela se descontrolou e chamou a polícia, dizendo que “um afro-americano está ameaçando minha vida”. Ela foi demitida da firma de investimentos onde ganhava US$ 70 mil anuais.

Nos três casos, a arma dos ofendidos foi a câmera de seus celulares. Postas na rede, as cenas viralizaram. É a mesma arma que registra a violência policial nas periferias das grandes cidades brasileiras.

As câmeras tornaram-se um remédio eficaz para combater os demófobos prontos para aplicar carteiradas sociais no “outro”, hipoteticamente inferior. Ao “você sabe com quem está falando”, o progresso contrapôs o “você sabe que está sendo filmado?”.

Mesmo dentro das suas lógicas infames, as duas senhoras estavam enganadas.

O fiscal da cena carioca era doutor em medicina veterinária pela Federal Fluminense e o afro-americano do Central Park formou-se em Harvard.

O fiscal do Rio, e o PM de São Paulo, representavam o Estado, que na cabeça dos demófobos é um ente a serviço do andar de cima. “A gente paga você, filho. O seu salário sai do meu bolso”, ensinou a senhora da Barra da Tijuca.

O afro-americano do Central Park lastimou que a vida da mulher tivesse virado de cabeça para baixo por causa da notoriedade que a cena viralizada lhe deu, mas recusou-se encontrá-la para um ritual de pacificação.

Em geral essas cenas de humilhação do “outro” duram poucos segundos e, sem os vídeos, não teriam consequência. Graças a eles, custam caro.

A vida dos brasileiros melhorará quando vídeos semelhantes, mostrando cenas de violência policial contra jovens do andar de baixo tiver algum efeito. Por enquanto ele é nulo, até mesmo porque em muitas cidades os policiais costumam prender quem os filma.

Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

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