terça-feira, 7 de julho de 2020

Vera Iaconelli De arremedo a panaceia, FSP

2020 não será um ano letivo válido para todos

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Rafael, 7, mal chegava na escola e já corria para combinar o jogo de bafo com os colegas. Na roda de boas-vindas, não conseguia esperar sua vez para contar o que tinha feito no fim de semana. Era ávido pelos olhares e elogios vindos dos professores, qualquer pista de que fosse considerado inteligente e querido. O intervalo passava voando, com a pressa de brincar e a torcida para que os pais tivessem colocado alguma surpresa no lanche. Quando batia o sinal, corria para os braços de quem o buscasse, suado e cheio de novidades para contar. Dormia no caminho de volta para casa, tão exausto que estava. Ao longo do dia, quase sem perceber, aprendia a ler, escrever, contar, refletir, responsabilizar-se.

Com o isolamento social forçado, sua experiência escolar reduziu-se a horas intermináveis diante de uma tela plana, da qual emergem figuras bidimensionais embaçadas e vozes metálicas de colegas e professores. Os pais a seu lado tentam ajudá-lo, mas eles mesmos estão constrangidos de participarem das atividades do filho, assim como os professores sob seus olhares. Lamentam o tempo gasto com as aulas, que concorre com o trabalho remoto, com o cuidado da casa e de si mesmos. A escola cobra a mensalidade para bancar funcionários e instalações que estarão lá quando Rafael voltar, mas a renda da família caiu consideravelmente. Pais, professores e alunos estão visivelmente cansados, somado ao luto pela perda de parentes e amigos. A festa junina virtual foi a gota d'água de "non sense". Tanto esforço dos adultos e a criança parecia alheia à tarefa de fazer bandeirinhas. Rafael é um estudante privilegiado, exemplos mais realistas deveriam incluir o fato de que 4,8 milhões de alunos brasileiros nem sequer têm acesso à internet.

Uma vez que a nós coube encarar uma das maiores crises sanitárias, sociais, econômicas e políticas dos últimos cem anos, o que pensar disso?

Primeiro, que o que se passou a chamar erroneamente de "homeschooling" nada mais é do que um ensino emergencial, basicamente, um arremedo alçado à categoria de panaceia. Até o ensino médio, a escola não é redutível ao virtual, embora deva se beneficiar de alguma hibridez. Balizar a aprendizagem infantil com a produtividade do home office nos dá a dica do rumo canhestro no qual algumas propostas de "educação" se baseiam. É o neoliberalismo fazendo escola.

Professores --que muitas vezes também são pais de alunos-- têm tido um comportamento louvável e têm adoecido na tentativa de se adaptarem à experiência virtual compulsória, para a qual não foram treinados ou contratados. Devemos toda nossa gratidão e atenção a eles.

Em 1918, as escolas fecharam e houve aprovação automática. Agora, urge que reflitamos sobre metas realistas e alcançáveis para o nosso tempo. Se as crianças conseguirem manter o que já sabiam, estaremos no lucro, mas, obviamente, essa não será a regra. Mesmo os adolescentes, mais cognitivamente aptos ao ensino remoto, padecem de solidão e desmotivação pela falta do ambiente social. Cada comunidade de ensino --pais, professores, alunos, escolas e Estado-- deve pesar o real sentido da educação em suas vidas, ou ainda, o real sentido da vida em seu projeto educativo. Fingir que o ano escolar de 2020 foi igualmente válido para todos os alunos é alçar a indiferença à categoria de política educacional. A única lição válida e possível a ser tirada por crianças e adultos neste ano seria de solidariedade, cidadania e luto. O resto é negacionismo e oportunismo.

Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Cecilia Machado Informalidade, por quê?, FSP

Lidar com a informalidade envolve atacar suas causas, e não remediar suas consequências

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A existência de muitos trabalhadores e empresas na informalidade —incluindo de forma ampla trabalhadores sem carteira e por conta própria e empresas sem registro— revelou-se enorme custo para a mitigação dos efeitos econômicos da pandemia. As políticas implementadas, como o auxílio emergencial e as linhas de crédito para pequenas empresas, foram de difícil implementação e pouco focalizadas.

Fica evidente que os custos sociais da invisibilidade são bastante altos, especialmente em crises como agora. Também é claro que uma política de assistência que contempla base mais ampla é solução possível para as vulnerabilidades dos informais. Mas, se a informalidade deriva do funcionamento no nosso mercado de trabalho, faz sentido remediá-la por meio de assistências?

A pergunta ganha relevância no contexto brasileiro porque nossa economia conta com 40% da força de trabalho e 65% das empresas na informalidade.

A magnitude do fenômeno deixa claro que a informalidade não está aí por acaso. Se, de um lado, os custos se traduzem em políticas públicas menos acessíveis e menor base tributária, de outro, há benefícios.

informalidade ganha propósito quando as regras do mercado de trabalho são muito rigorosas, quando os impostos são muito altos, quando a produtividade do trabalho é incompatível com o salário mínimo estipulado. É a margem de ajuste quando nada mais pode ceder.

Mas, ainda que a invisibilidade dos informais tenha suas características indesejáveis ressaltadas na pandemia, acabar com a informalidade pode não gerar ganhos líquidos inequívocos para a sociedade. A formalização da economia é frequentemente acompanhada pela eliminação de postos de trabalho e por empresas inviáveis em ambiente regulados. Já os ganhos dependem bastante da maneira como a informalidade é atacada e envolvem entender suas causas.

Uma possibilidade seria aumentar a coercibilidade da formalização, através, por exemplo, do aumento das fiscalizações e de punições para quem emprega informais.

No Brasil, Almeida e Carneiro (2012) estimam que uma maior fiscalização diminui a informalidade e aumenta o desemprego, mas que parte da formalização se dá via salários mais baixos, especialmente quando o mínimo não é restrição, mostrando que os trabalhadores valorizam os benefícios da carteira assinada e estão dispostos a receber menos em troca deles.

Outra alternativa compreende facilitar a entrada e a permanência das empresas na formalidade, através de redução de impostos e facilidade nos registros, propósito de programas como o Simples e o Microempreendedor Individual (MEI).

Os efeitos de políticas nessa direção, entretanto, têm sido modestos. Monteiro e Assunção (2012) mostram que o Simples teve efeitos positivos só na formalização das empresas do comércio varejista.

Rocha, Ulyssea e Rachter (2018) revelam que a simplificação trazida pela MEI formaliza firmas já existentes. Em ambos os casos, o custo fiscal foi muito superior aos benefícios da formalização.

Por fim, é preciso considerar que a atual legislação trabalhista e tributária gera ganhos no conluio entre empresas e trabalhadores, que tem incentivos a repartir ganhos desse excedente no mercado informal.

Van Doornik, Schoenherr e Skrastins (2020) mostram que comportamentos estratégicos em demissões, e decorrente elegibilidade ao seguro-desemprego, são mais frequentes em regiões com maior leniência
à informalidade.

É equivocado lidar com os informais só pela lente das assistências. Ao contrário, o financiamento do governo e de todas as suas políticas públicas vem justamente de um mercado de trabalho dinâmico e produtivo.

A população que perde seus empregos precisa estar visível, não só para os auxílios como também para receber treinamento e qualificação, através das chamadas políticas ativas de (re)inserção no mercado de trabalho. Lidar com a questão da informalidade envolve atacar suas causas, e não
remediar suas consequências.

Cecilia Machado

Economista, é professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV.