terça-feira, 7 de julho de 2020

O STF e as sandálias Havaianas, FSP

Servidor precisa de aperfeiçoamento, e não de esbulho na verba alimentar

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Régis Rodrigues Bonvicino

Juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo

Alcir Pécora

Professor titular de Teoria Literária da Unicamp

É preciso entender que o primeiro bem comum de uma democracia é a lei.

Ao contrário do que afirma o editorial “Cegueira do STF”, desta Folha (26/6), o STF julgou com propriedade a ADI 2.238, declarando inconstitucional o parágrafo 2º do artigo 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que permitiria redução temporária de jornada de trabalho e salário. Está bem claro que, ao permitir o “temporário” à custa da lei, o objetivo do decreto era e é torná-lo permanente.

Sessão solene de abertura dos trabalhos do Judiciário no STF (Supremo Tirbunal Federal), em fevereiro
Sessão solene de abertura dos trabalhos do Judiciário no STF (Supremo Tirbunal Federal), em fevereiro - Pedro Ladeira - 3.fev.20/Folhapress

decisão do STF foi acertada, não porque há um ataque ao regime democrático no país, mas porque o artigo 37 da Constituição Federal veda a redução de salários. Ela prevalece sobre todos os artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma lei infraconstitucional. De resto, dentro desse mesmo artigo 37 já estão previstas as soluções legais para a regulação dos salários públicos.

É certo, entretanto, que o servidor guarda vínculo permanente e impessoal com o Estado. Não é preciso mais do que isso para que seja acusado de participar de um movimento corporativo maligno ao país. Trata-se evidentemente de uma falácia. Se há de se falar da debacle econômica de hoje, é preciso atribuí-la a quem tem poder econômico e a quem tem poder de fazer política econômica.

É quanto basta para evidenciar que a crise decorre da iniciativa privada a que falta iniciativa, sobrevivendo de rentismo e de outras práticas questionáveis. Também decorre da má administração pública da própria economia brasileira, que não começou agora, mas que piora a cada dia. Reconheça-se, aliás, que foram poucos os governos brasileiros com investimentos sequer satisfatórios em saúde, educação, ciência e tecnologia, segurança pública e outras áreas que correspondam à soberania territorial brasileira.

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Admitida a má gestão dos orçamentos da União, dos estados e dos municípios, fica claro que os eventuais “pesos” de despesa com pessoal devem ser equacionados por esses entes, e não ser custeada pela grande maioria dos servidores, que ganha pouco, ao contrário do que se divulga. O servidor público precisa de aperfeiçoamento, de maior eficácia, certamente, mas não de esbulho em sua verba alimentar.

Todos percebem que não há no país qualquer política coesa formulada para combater a Covid-19, com seus respectivos recursos materiais: hospitais, equipamentos, testes etc. Nessa situação de calamidade, são os funcionários públicos que têm formado a frente dessa batalha, com sacrifícios enormes, inegáveis. No entanto, por desfaçatez, até a pandemia é transformada em oportunidade para caça ao “funcionalismo público”.

Na verdade, a caça é ao espaço público, a tudo o que é público: desde uma praça até um grande orçamento. Essa é a estratégia ideal dos “agentes” do mercado: obter um atalho que exclua a iniciativa e o trabalho duro. Capitalismo entendido como olhos e mãos compridos para o erário público. Como nas privatizações dos anos 1990 e na criação das empresas “campeãs nacionais” nesse século, que não fizeram o país ter marcas brasileiras conhecidas e reconhecidas no mundo, exceto as sandálias Havaianas. Brasil, eterno exportador de “café”.

O país precisa de novas ideias que o façam retomar o caminho do crescimento justo, com diminuição da desigualdade social. O velho jogo de privatismo contra estatismo não trouxe e não traz benefícios à sua população.

A decisão da ADI 2.238 defende o espaço público, da universidade à saúde, incluindo-se o próprio Poder Judiciário. Não se negue a crítica aos entes públicos, mas é preciso que haja um pouco de ponderação aos absurdos agravos contra o Estado.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Pablo Ortellado Instituições mostram os dentes, FSP

Acuado por ações do STF, Ministério Público e Congresso, Bolsonaro baixa o tom, mas mantem estrago nas políticas públicas

governo Bolsonaro finalmente recuou, ainda que sem convicção e motivado pelo medo. Mas será que reações mais incisivas por parte do Supremo Tribunal Fderal, do Ministério Público e do Congresso vão conseguir preservar, num sentido mais substantivo, nossa democracia até 2022?

O sentimento de Bolsonaro é o de estar cercado. Há pelo menos cinco movimentações simultâneas que ameaçam o governo: os dois inquéritos que correm no Supremo, o das fake news e o que apura as manifestações antidemocráticas, o inquérito da Procuradoria-Geral da República que investiga a interferência na Polícia Federal e a investigação do Ministério Público do Rio sobre as rachadinhas de Flávio Bolsonaro. Mais ou menos em suspenso, aguardando o desenvolvimento dos fatos, estão os numerosos pedidos de impeachment no Congresso e os processos que podem cassar a chapa Bolsonaro-Mourão no TSE.

O presidente Jair Bolsonaro - Pedro Ladeira - 30.jun.2020/Folhapress

Na semana do dia 14 de junho, o mundo pareceu desabar para Bolsonaro: logo no dia 15, a PGR pediu a prisão dos bolsonaristas do grupo 300 que ameaçaram o STF e o ministro Alexandre de Moraes; no dia 16, o STF determinou buscas, apreensões e quebras de sigilo no inquérito das fake news, tendo como alvo youtubers influentes e grandes empresários ligados ao bolsonarismo militante; no dia 18, a pedido do Ministério Público do Rio, as polícias do Rio e de São Paulo efetuaram a prisão de Fabrício Queiroz, em Atibaia (SP).

Duas semanas depois, o Senado ainda aprovou um projeto de lei que pode dar mais instrumentos de investigação e assim jogar luz sobre as ações do gabinete do ódio.

Bolsonaro se recolheu, deixou de comparecer ao cercadinho para estimular a militância, parou de ir às manifestações semanais cotra os Poderes e tentou substituir um hiperideológico Weintraub por um Decotelli mais técnico. O Twitter do presidente mudou de tom e trocou cotoveladas por um tom mais institucional de celebração das realizações do governo. Youtubers bolsonaristas começaram a moderar o discurso e a apagar vídeos antigos com medo do STF. Apenas o negacionismo da gravidade da Covid segue em ritmo alucinado e delirante.

As últimas semanas trazem a esperança de que, apesar do sufoco, talvez nossas instituições tenham força para aguentar o tranco de quatro anos de Bolsonaro no poder. Mas, ainda que consigamos preservar a democracia, num sentido formal, vamos olhar para trás em 2022 e contar os mortos da Covid que poderiam ter sido salvos, vamos medir com assombro o desmatamento da Amazônia e teremos a gigantesca tarefa de reverter o desmonte das políticas federais de educação, ciência e cultura.

Pablo Ortellado

Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

Hélio Schwartsman Sob pressão, Bolsonaro diz e faz menos besteiras, FSP

Nova configuração política reduziu significativamente barbaridades e provocações do governo

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Em sua primeira encarnação, a mais autêntica, o governo Bolsonaro se deixou pautar pela chamada ala ideológica, que fazia e desfazia ministros (agora só desfaz) e mantinha o superego do presidente, que jamais fora muito atuante, prisioneiro. O homem chegou a divulgar um vídeo com cenas explícitas de urofilia.

É claro que não deu certo. Uma das fantasias do bolsonarismo ideológico rezava que negociar com parlamentares tradicionais era pecado, de modo que nenhum projeto relevante avançou no Congresso. A exceção é a reforma da Previdência, mas muito mais porque o Legislativo estava empenhado em fazê-la do que por iniciativa do governo.

O presidente Jair Bolsonaro participa de solenidade no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 30.jun.2020/Folhapress

A única coisa que o presidente conseguiu fazer foi, através de decretos, portarias e nomeações, enfraquecer instituições e políticas públicas, como a preservação ambiental, o desarmamento etc.

Veio então a segunda encarnação, na qual parecia que os mais pragmáticos militares dariam as cartas. Não deram. Quer dizer, até conseguiam fazer com que o presidente, por períodos limitados, contivesse seus piores impulsos, mas ele logo sucumbia a si mesmo. Também não deu certo. Vimos ampliar-se a presença militar no governo, mas sem nenhum aumento na eficácia da ação do Planalto.

Vieram então a epidemia, a recessão e o avanço de investigações criminais que podem comprometer o entorno presidencial. Bolsonaro sentiu que seu mandato estava em perigo, engoliu a seco a ideologia e entregou-se ao centrão. É a terceira encarnação.

Nada indica que o governo vá ganhar em funcionalidade, mas a nova configuração política serviu para desagrilhoar o superego do capitão reformado, que reduziu significativamente as barbaridades e provocações que exarava em ritmo semanal.

Pessoalmente, acho que o impeachment de Bolsonaro é uma obrigação moral da sociedade, mas é preciso reconhecer que, mantido sob pressão, Bolsonaro diz e faz menos besteiras.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".