quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Antonio Delfim Netto Nossos conflitos, FSP

Sociedade humana só será estável com regras do jogo bem definidas e aceitas consensualmente

Nenhuma sociedade democrática pode realizar, com eficiência e pacificamente, sua tarefa primordial: garantir sua subsistência material pelo trabalho de cidadãos relativamente iguais, pois “é preciso comer para poder viver e, afinal, filosofar”... Isso exige um mínimo de tolerância entre cidadãos com diferentes “visões” de mundo, que se dispõem a aceitar um acordo sobre “regras do jogo estáveis”. Uma Constituição resultante de um consenso mínimo que obriga a todos e cria um “poder incumbente” transitório, que ela mesmo exige renovar-se em prazo certo, através do voto majoritário no sufrágio universal.
Cria-se, assim, a possibilidade de que qualquer “visão” de mundo (mesmo as mais extravagantes) tenha a oportunidade de tentar realizar-se na eventualidade de ser majoritária dentro das “regras do jogo”, construídas consensualmente.
O “poder incumbente” vitorioso comanda as instituições permanentes que se organizam no Estado. Este tem, com elas, que administrar os inevitáveis conflitos que emergem no exercício do poder, como já apontaram Thucydides há 22 séculos, Maquiavel há cinco e Marx há quase dois. Os conflitos estão se tornando mais violentos e desejam acelerar uma nova arbitragem, que nega o “núcleo duro” das regras do jogo.
Trata-se de uma minoria que quer fazer à força o que poderia fazer pacífica e ordenadamente quando for maioria eventual no sufrágio universal. Para eles, a política é um jogo de soma nula: todo ganho de um pequeno subconjunto da sociedade é, necessariamente, uma perda equivalente de outro subconjunto. Negam os benefícios da cooperação (tão visíveis na divisão do trabalho e no comércio internacional) e não enxergam sua externalidade: com a negociação, todos ganham, ainda que alguns ganhem mais do que outros. 
A sociedade humana, em que os agentes têm interesses, pensam e lutam por eles, é o “loco” de uma troca permanente entre forças antagônicas: associação e competição. Só será estável com “regras do jogo” bem definidas e aceitas consensualmente.
Nos últimos 50 anos, é a segunda vez que o nível dos conflitos ameaça quebrar as “regras do jogo”. A primeira foi em maio de 1968. Agora se repete com o avanço de fraudes tecnológicas gestadas por uma alquimia cibernética capaz de produzir “intenção de voto virtual” na internet. Até agora, não se materializaram nas urnas. Se e quando isso acontecer, nos levará à democracia direta, que há 2.500 anos Platão mostrou ser porta aberta para a tirania.
O caso brasileiro é estranho: as fontes do conflito são preconceitos identitários sem nenhum suporte empírico, uma conspiração globalista da ONU e a descoberta de um lázaro “comunista”. Que pobreza!
Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.

Rei dos animais, Ruy Castro, FSP

Bolsonaro se vê como um leão. O STF se verá como uma hiena?

Quando se julgavam esgotados os epítetos, afrontas e apodos dirigidos a Jair Bolsonaro —nunca um presidente da República se prestou tanto a ser desqualificado—, eis que ele próprio acrescentou à sua galeria o título que lhe faltava. O vídeo produzido por sua equipe e protagonizado por um leão identificado com o seu nome, acossado por hienas marcadas com os logotipos de seus supostos inimigos, não deixa dúvida. Ele é o rei dos animais.
Essa repentina majestade, no entanto, não o livrará de continuar a ser tratado com casca e tudo, inclusive pela turma com quem andava antes de chegar ao Planalto. Outro dia, seu próprio colega de partido, um certo Delegado Waldir, chamou-o de “vagabundo” e “essa porra” —quase fazendo o colunista sair em defesa da porra, injustamente rebaixada a Bolsonaro. 
Turma aquela que, de tão íntima, parece na iminência de lhe custar caro. Fabrício Queiroz, seu ex-boy, ex-motorista, ex-oficial de gabinete, ex-coordenador de contratações escusas e ex-amigo, ressuscitou em áudio esta semana, dando dicas a “Jair” sobre como melhor conduzir o poder e se queixando de que, alvo de um processo perigoso, está sendo abandonado pelos cúmplices, digo colegas. O vocabulário de Queiroz não é dos mais ricos. Consta de dez ou doze palavras, metade das quais, palavrões. Mas é injusto tirar as crianças da sala quando se sabe que ele vai falar na TV. Todo o governo Bolsonaro justifica que se tirem as crianças da sala.
Ao escalar o time de hienas que hostilizam o leão, Bolsonaro arrolou uma nova instituição ao seu rol de inimigos imaginários: o STF. O fato de o vídeo ter sido “apagado” e, como sempre, Bolsonaro ter se “desculpado” —desta vez, 24 horas depois—, não impede o vídeo de continuar no ar, atingindo milhões de pessoas. E, em todas as exibições, lá está o insulto: o STF é uma hiena.
Resta ver se o STF fará jus à descrição.
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.