quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Guilherme Cezar Coelho - Supersalários beneficiam menos de 1% dos servidores e queimam o filme dos outros 99%, FSP

 

Guilherme Cezar Coelho

Economista e conselheiro da República.org, instituição dedicada à excelência do setor público brasileiro

[RESUMO] A partir dos resultados de uma pesquisa que comparou os gastos com supersalários no funcionalismo do Brasil e de outros países, autor sustenta que a remuneração no topo do serviço público do país consome recursos escassos, que poderiam ser empregados em políticas públicas, e está na raiz do estereótipo do servidor hiper-remunerado e ineficiente. Limitar os supersalários deve ser o início de qualquer reforma administrativa, com o objetivo de oferecer um Estado mais presente e competente para a população.

Os supersalários no serviço público são uma epidemia que só existe no Brasil. Entre agosto de 2024 e julho de 2025, o país gastou, no mínimo, R$ 20 bilhões em remunerações acima do teto constitucional, segundo um novo estudo realizado por Sérgio Guedes-Rei para a República.org e para o Movimento Pessoas à Frente. Esse é o maior valor absoluto em um comparativo internacional com outros dez países e vem crescendo rapidamente.

Quando o assunto é remuneração no topo do serviço público, o Brasil é ponto fora da curva em todos os gráficos —um péssimo sinal. Isso comparado a Argentina, Chile, Colômbia, México, Portugal, Itália, França, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos, países em sua maioria com renda média muito superior à nossa.

Dois prédios modernos com fachadas curvas de vidro refletem o céu azul e o sol forte. O sol aparece refletido no vidro do prédio à esquerda, criando um brilho intenso. O céu está parcialmente nublado com poucas nuvens.
Sede da PGR (Procuradoria-Geral da República), em Brasília; Judiciário, Ministério Público e carreiras advocatícias do Executivo concentram supersalários - Gabriela Biló - 22.ago.23/Folhapress

Segundo Guedes-Reis, o custo total dos supersalários no Brasil pode chegar a R$ 40 bilhões. A título de comparação, isso representa 40% do déficit do governo federal. Isto é, dinheiro público sendo gasto indevidamente, no momento em que o país luta por melhores serviços públicos, equilíbrio fiscal e juros menores.

Limitar privilégios deveria ser o cartão de visitas para qualquer reforma do Estado, iniciativa sobre a qual a maioria da população é favorável, segundo pesquisa recente Atlas Intel. Não conseguiremos melhor desempenho e organização no setor público sem corrigir tamanho mau exemplo vindo de cima.

Os supersalários beneficiam menos de 1% dos servidores públicos brasileiros e queimam o filme dos outros 99%. Distorções salariais desmoralizam quem trabalha pelo país e causam ressentimento na população. Ajudam assim a deslegitimar o Estado e deixá-lo vulnerável à captura por grupos de interesse ou autocratas.

Collor chegou à Presidência da República como caçador de marajás. Paulo Guedes, quando ministro da Economia, chamou funcionários públicos de parasitas.

Ironicamente, os supersalários estão concentrados no Judiciário, no Ministério Público e em carreiras advocatícias do Executivo —profissionais que justamente deveriam defender o Estado e a Constituição brasileira, agindo como guardiões da lei, da justiça e da razoabilidade no gasto público.

Segundo o levantamento de Sérgio Guedes-Rei, a partir de uma amostragem com 4 milhões de contracheques de servidores, ativos e inativos, 74% do gasto com supersalários se dá com juízes e membros do Ministério Público. São carreiras essenciais à democracia, mas que indevidamente se beneficiam de penduricalhos que chegam a ser, em alguns casos, 14 vezes maiores que o teto constitucional de R$ 46,4 mil mensais.

Com isso, o Judiciário brasileiro ocupa um pódio vergonhoso: é o segundo mais caro do mundo em proporção ao PIB. Só perdemos para El Salvador. No Executivo federal brasileiro, mais de 12 mil servidores também ultrapassam o teto, gerando um gasto de R$ 4,3 bilhões por ano. A maior parte das remunerações infladas vem de honorários advocatícios.

No Brasil, alguns salários públicos somados a penduricalhos chegam a ultrapassar os R$ 500 mil reais, e muitos contracheques com frequência passam de R$ 300 mil, como vimos recentemente no escândalo do fundo privado da AGU (Advocacia Geral da União), revelado por esta Folha.

Criado em 2016, esse fundo distribui aos membros da AGU valores obtidos em ações judiciais em que a União sai vencedora. Na prática, o fundo se converteu em uma máquina de criar supersalários e, pior, de desviar recursos que deveriam ir para o Tesouro Nacional, onde ajudariam a reduzir o déficit fiscal e, por consequência, os juros.

Segundo o TCU (Tribunal de Contas da União), 75% do montante do fundo não são sequer honorários, mas recursos públicos gerados por encargos jurídicos, que deveriam ser direcionados ao Estado e não ao bolso de uma minoria. Esse fundo chegou a acumular R$ 14 bilhões desde 2017. Dinheiro que faz falta para as contas públicas.

Apesar de o STF (Supremo Tribunal Federal) ter decidido em 2022 que tais honorários são constitucionais apenas quando respeitado o teto do serviço público, pareceres internos da AGU continuam permitindo que esse limite seja desobedecido. Não se trata de nuance jurídica, mas de flagrante descumprimento de uma decisão do Supremo.

Com medo de uma reforma administrativa que poderia enfrentar essas e outras distorções, em julho de 2025 a AGU distribuiu R$ 2,3 bilhões. Houve casos individuais em que os contracheques chegaram a R$ 613 mil. Uma afronta ao teto constitucional e à própria sociedade, que banca essa farra.

É importante entender que os supersalários também não criaram no Brasil um serviço público melhor, pois, sem critérios objetivos, os supersalários não trazem reais incentivos para melhor desempenho. As carreiras mais beneficiadas por esses privilégios são responsáveis por áreas como justiça, segurança pública (neste caso, juízes e Ministério Público) e ambiente de negócios —temas em que o nosso país vai muito mal.

Segundo o Banco Mundial, em seu Índice de Qualidade Regulatória (2023), o Brasil tira nota 40 (de 100), se analisarmos por percentis. Segundo o Índice de Segurança Jurídica e Regulatória do Insper e do Jota, o Brasil é nota 35 (de 100). Os supersalários no Judiciário também não foram capazes de conter a corrupção, como vimos no recente escândalo de vendas de sentenças no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Nesse ponto, seria interessante estudar a correlação entre corrupção e a prática dos supersalários, talvez partindo da teoria das janelas quebradas de James Q. Wilson e George L. Kelling. Esse estudo propôs que pequenas transgressões (janelas de carro quebradas, pichações, lixo nas ruas) incentivam comportamentos mais graves, tanto no âmbito da segurança pública quanto em outros contextos, como o corporativo ou o desenvolvimento pessoal.

Outro estudo possível, este já sendo desenvolvido por Guedes-Reis, é sobre os conflitos de interesse —como uma modalidade de corrupção ou, no mínimo, de parcialidade decisória— entre elites burocráticas em países de alta desigualdade, como o Brasil.

Uma referência principal aqui é o acadêmico sueco Bo Rothstein e seus estudos sobre capital social (confiança), em que se identifica a existência de uma armadilha social envolvendo desigualdade, coesão social e corrupção. Em resumo, altos níveis de desigualdade produzem baixos níveis de confiança social e nas instituições, que por sua vez facilitam a emergência de práticas corruptas, que então aprofundam a desigualdade e diminuem ainda mais a confiança social. Ou seja, desigualdade e corrupção em círculo vicioso.

Segundo o Datafolha, 83% da população reprova os supersalários, e uma pesquisa recente Atlas Intel mostra que 73% julgam essa situação totalmente injustificada. Esses privilégios corroem a percepção social do funcionalismo —70% de todos os servidores brasileiros ganham até R$ 6.189 mensais e 90% recebem até R$ 13.120, segundo dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais) de 2023.

O estereótipo do servidor como alguém hiper-remunerado, blindado e ineficiente é resultado direto de uma elite diminuta que sequestra para si o orçamento que deveria ser distribuído de forma mais eficiente, garantindo melhores serviços públicos.

Quando alguém de dentro do serviço público ousa denunciar o sistema, acaba perseguido. Esse é o caso da oficial de justiça Ticiane Natale, processada administrativamente após declarar em ato público que procuradores queriam enriquecer com penduricalhos. Em outro caso lamentável para o serviço público, a PGR (Procuradoria-Geral da República) abriu uma sindicância para apurar a conduta de servidores que criticaram o pagamento de penduricalhos para procuradores do Ministério Público Federal.

Daqui para frente

Felizmente, há soluções internacionalmente estabelecidas para impasses sobre salários públicos. O comparativo entre práticas salariais em 11 países no estudo de Sérgio Guedes-Reis mostra como Reino Unido, Alemanha, Itália e Chile, entre outros, adotam mecanismos que regulam supersalários. Uma das formas de limitar os salários é por meio de comissões independentes, responsáveis por calibrar remunerações e desenhadas para resistir a lobbies corporativos.

Regra número um: servidores não podem —nunca— definir sozinhos seus próprios salários. Regra número dois: o teto deve ser amplo e rígido, com limitação criteriosa de verbas indenizatórias —mais uma vez, que não podem ser definidas por quem se beneficia delas. Regra número três: implementar sanções e multas a quem descumpre o teto. Isso não existe hoje no Brasil.

Permitir a epidemia dos supersalários é insistir no patrimonialismo, esta velha doença brasileira que captura o público em benefício do interesse privado. Tratar disso exige coragem, enfrentamento, reformas profundas, transparência e pressão permanente da sociedade.

Qualquer reforma do Estado no Brasil tem que começar pelos supersalários. A atual discussão na Câmara dos Deputados tem que ir em frente, melhorando o relatório proposto, a partir do trabalho realizado até aqui pelo Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos.

Não existe vida boa sem um Estado efetivo e atrativo para novos talentos. No Brasil, é urgente reduzir privilégios e regular melhor os salários públicos e ir além: simplificar carreiras e colocar objetivos para órgãos e servidores, não com o objetivo de punir, mas de engajar esses profissionais, em benefício da população.

O atual governo deveria aproveitar a iniciativa do Congresso e fazer uma transformação do Estado, nome de uma das secretarias do Ministério da Gestão. Não fazê-la é ser conivente com privilégios e abrir espaço para aventureiros lançarem mão, desestruturando ainda mais o setor público.

Duzentos milhões de pessoas merecem um Estado mais presente e competente. Governos importam e muito para a qualidade de nossas vidas. Para se ter melhores serviços públicos, é preciso continuamente reformar o Estado. Pois, através de profissionais cada vez mais respeitados e responsáveis, governos serão mais efetivos —e atrativos para novos talentos. Essa é a vacina, o mapa do caminho, o mapa da mina.

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