Eu descobri que havia duas justiças no Brasil. A que se anuncia nas manchetes e a que se cumpre na prática. Passei 45 anos cobrindo polícia, entrando em presídios, ouvindo promotores, delegados, juízes, investigadores e famílias destruídas pela violência. Nesse tempo todo, uma coisa nunca mudou: a matemática penal brasileira. Ela segue tão confusa quanto o país que a criou. Quanto mais casos vejo, mais claro fica que essa conta não fecha, nunca fechou e talvez nunca tenha sido feita para fechar.
Muita gente me pergunta quanto tempo um condenado vai ficar preso. As pessoas veem sentenças de 100, 26, 19 anos e acham que isso é o tempo real. Mas no Brasil não funciona assim. O número anunciado é só o começo. Pela lei, mesmo somando tudo, o máximo são 30 anos que uma pessoa pode ficar na cadeia.
Nos últimos meses, analisando linhas de tempo de processos famosos, vi com nitidez algo que sempre soube. A pena brasileira é um quebra-cabeça que se desfaz e se redistribui numa velocidade que a sociedade não imagina.
No caso de Anna Carolina Jatobá, condenada pela morte da enteada Isabella, a pena de 26 anos e 8 meses se divide assim: 9 anos em regime fechado, cerca de 35%; 6 anos no semiaberto, 23%; e mais de 11 anos no regime aberto, acima de 40%. Para Sandrão (Sandra Regina Ruiz Gomes), condenada pelo sequestro e homicídio de um adolescente de 14 anos, a lógica é a mesma. De 27 anos impostos, constam 11 anos no fechado, cerca de 1 ano no semiaberto, uma agressão a agente penitenciário no meio do caminho e, mesmo assim, progressão posterior garantida, com mais de 12 anos previstos no aberto.
Boa parte dessa engrenagem nasceu em 1940, quando o Código Penal foi criado. O Brasil era rural, sem facções, sem milícias, sem tráfico estruturado, sem comandos de dentro das cadeias. A legislação nasceu para outro país. Na época, o criminoso típico era o batedor de carteira.
O Código Penal é a porta de entrada do sistema. Ele define o crime e a punição. Já a Lei de Execução Penal (LEP), de 1984, é a porta dos fundos. Ela diz como a pena é cumprida, como o preso trabalha, quando progride e quando sai. É ali que nasce a sensação de que a pena diminui, porque essa lei permite remição e benefícios que muita gente não entende e que reduzem muito a pena real.
A progressão buscava estimular trabalho e disciplina, mas as linhas de tempo mostram uma distorção constante. O regime fechado varia entre 35% e 45%. Semiaberto entre 18% e 25%. Aberto ou livramento acima de 40%. Quase nunca o fechado passa da metade. Em muitos casos, não chega a 10 anos. Suzane von Richthofen cumpriu 13 anos em regime fechado dos mais de 39 anos da sua condenação. A maior parte se cumpre fora dos presídios. E o regime aberto, cumprido fora do presídio em casa própria ou em albergue, onde boa parte da pena se estende longe das celas, é muito mais simbólico do que real.
Enquanto isso, voltou a ganhar força em Brasília a proposta de prisão perpétua para crimes supergraves, como homicídio qualificado, feminicídio brutal, estupro de vulnerável, estupro seguido de morte, chacinas, terrorismo, participação em facções e sequestro prolongado. A intenção seria impedir progressão nesses casos. A proposta ressurge em meio a uma crise de confiança na Justiça.
As saídas temporárias, como benefício, também alimentam a sensação de impunidade. Na saidinha de fim de ano, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo de 2024, 34.547 presos foram liberados e 1.382 não retornaram, cerca de 4%. Quase um presídio inteiro de Tremembé. O país que antecipa progressões é o mesmo que convive com grupos criminosos que já não temem o Estado. Isso não é coincidência.
No fim das contas, a sociedade pede pouco. Pede clareza. Quer pena real, transparência, coerência. Quer entender quanto tempo alguém condenado por crime grave ficará realmente privado de liberdade. Quer deixar de ser surpreendida por uma porta de saída que sempre esteve ali desde o primeiro dia da sentença.

Nenhum comentário:
Postar um comentário