quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Bolsonaro explora a paranoia como método político, FSP

Presidente quer convencer o país de que é vítima de uma ameaça permanente

Cercado por hienas e conspirações socialistas, Jair Bolsonaro quer convencer o país de que é vítima de uma ameaça contínua. A insistência do presidente em retratar críticos como vilões e atribuir seus infortúnios a complôs delirantes mostra que ele pretende governar em estado permanente de paranoia.
Esse estilo político foi descrito pelo historiador americano Richard Hofstadter num ensaio de 1964. Ele tomou emprestado o termo clínico para descrever um discurso baseado no exagero, na suspeição, no alarmismo e em fantasias conspiratórias.
A tática é apresentar o jogo democrático como um conflito entre o bem e o mal, anulando qualquer expectativa de moderação e convocando uma luta constante. "Visto que o inimigo é considerado totalmente mau e desagradável, ele deve ser totalmente eliminado", escreveu.
Governos com inclinações autoritárias costumam se apegar a esse método para destruir a legitimidade de instituições que delimitam seus poderes. Conluios são a justificativa ideal para quem quer adotar medidas excepcionais e punir rivais.
Nos últimos dias, Bolsonaro e sua equipe sugeriram repetidas vezes que os protestos no Chile e o resultado de eleições livres na Argentina não são produtos da vontade popular, mas uma intentona esquerdista que ameaça também o Brasil. O presidente até alertou os militares e pediu que eles ficassem de prontidão para reprimir manifestações.
Ao divulgar o vídeo em que retrata quase todos os seus críticos como animais agressivos e aproveitadores, o bolsonarismo amplia o recado: a fonte do perigo não são apenas opositores formais, mas qualquer personagem disposto a contrariar seus interesses ou sustentar uma desaprovação legítima ao governo.
O próprio Bolsonaro deixa claro que tudo não passa de enganação. Depois de lançar o alerta sobre o risco vermelho, ele divergiu de si mesmo. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o presidente disse achar que a esquerda "não tem futuro no Brasil num curto espaço de tempo".
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Chile põe o liberalismo em xeque?, Helio Schwartsman, FSP


Por que só agora veio a rebelião?


Os protestos no Chile são uma demonstração de que as receitas econômicas liberais não funcionam? A resposta a essa questão depende dos óculos com que a visualizamos.
Para quem porta as lentes do historiador, que valorizam os feitos do passado, é difícil falar em fracasso do liberalismo. Do início dos anos 2000 até os dias de hoje, o PIB per capita chileno saltou de US$ 11,3 mil para US$ 26,3 mil, e a pobreza extrema, que atingia 36% da população, despencou para 8,6%. Na América do Sul, não encontramos outro caso de melhora assim significativa num espaço de tempo tão curto. Revoluções decerto não produzem resultados tão positivos.
O problema da visão do historiador é que as pessoas não vivem no passado. Elas estão no presente e com os olhos voltados para o futuro. E o ser humano, como já ensinava Schopenhauer, é uma máquina de desejar que não pode ser desligada. Quando ele consegue algo que queria, já está desejando o próximo item de uma lista que nunca se esgota.
Se essa é uma característica da natureza humana que nos torna eternos insatisfeitos, também é um dos motores do progresso material da humanidade. Vez por outra, desemboca em protestos como os do Chile. É preciso cuidado, porém, para não superestimar o poder explicativo da desigualdade. Ela, afinal, como os Andes, domina desde sempre a paisagem chilena. Por que só agora gerou a rebelião? O fenômeno é, no mínimo, mais complexo do que se imagina. Tem mais a ver com a quebra de expectativas do que com os níveis brutos de desigualdade.
A missão do bom político é fazer a ponte entre o passado e o futuro. Ele precisa satisfazer o insaciável apetite da população, alimentando-o com objetivos realistas, sem destruir as estruturas que se mostraram úteis para gerar riqueza, ainda que pouco eficazes para distribuí-la. Vamos descobrir nas próximas semanas se Sebastián Piñera está à altura do desafio.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".