sábado, 19 de outubro de 2019

O mal do século, Helio Schwartsman, FSP

Querer determinar como os outros devem viver é praga que afeta a todos

O irrefreável desejo de determinar como os outros devem viver suas vidas se tornou o novo "mal du siècle". É uma praga que afeta a todos, dos religiosos que querem banir o pecado, à nova direita, que empastela exposições de arte, passando pela esquerda, em especial uma modalidade autoritária de feminismo que adora suprimir a autonomia das mulheres.
Esse grupo conseguiu com que o Congresso aprovasse um projeto de lei que obriga todos os serviços de saúde do país a comunicar à polícia, num prazo de 24 horas, toda suspeita de violência contra a mulher, independentemente da vontade da vítima. A notificação já é hoje compulsória, mas de forma anônima e em princípio só para as autoridades sanitárias, que não têm o poder de iniciar investigações criminais.
A mudança proposta me parece desastrosa, sob vários ângulos. É claro que o poder público precisa combater a violência contra a mulher, mas sem atropelar sua autonomia. Se é dado a um homem decidir se denuncia ou não uma agressão que tenha sofrido, não vejo por que a mulher não deva ter idêntica prerrogativa de escolha.
Manifestação em São Paulo pela proteção às mulheres - FotoRua/Folhapress
Igualmente grave, a norma erode o sigilo da relação médico-paciente, um princípio milenar fundamental não apenas para que exista confiança entre as duas partes mas também para que pessoas que tenham sofrido algum agravo à saúde no curso de atividades ilícitas não deixem de procurar socorro.
Há até um sutil veneno filosófico na nova regra, já que ela caminha na contramão do respeito à privacidade. E o direito à privacidade, é bom refrescar a memória de feministas, foi a base do argumento jurídico que, nos EUA, serviu para a legalização do aborto. É também o direito que poderá sustentar uma eventual descriminalização do uso de drogas, em ação que está sob análise do Supremo.
Jair Bolsonaro vetou o projeto de lei. Não creio que ele tenha muita ideia do que fez, mas agradeço.
 
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

O QUE A FOLHA PENSA Mundo a 3%

Cai projeção para PIB global, mas cenário ainda não é desfavorável para o Brasil

Indústria têxtil em Huaibei, no norte da China, país que vive desaceleração econômica - AFP
Como tem sido recorrente, o Fundo Monetário Internacional revisou para baixo suas projeções para o crescimento econômico mundial. Para este ano, a nova estimativa é de alta de apenas 3%, a menor desde a crise financeira de 2009. 
Não se trata de inclinação recessiva, uma vez que tal ritmo se encontra apenas um pouco abaixo do que o FMI considera ser o potencial do Produto Interno Bruto global. O problema é que a fraqueza torna a conjuntura mais sujeita a choques, inclusive políticos. 
Um risco considerável está no acirramento dos confrontos comerciais entre Estados Unidos e China, que já causa algum impacto na dinâmica do investimento e das trocas de mercadorias.
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Neste ano, por exemplo, as grandes surpresas negativas se concentram na atividade industrial e nos volumes de transações comerciais, próximos da estagnação. 
A fragilidade fica mais evidente quando se observa que a desaceleração é sincronizada —todas as principais regiões mostram perda de dinamismo. Com a inflação baixa, as autoridades já reagem por meio de afrouxamento monetário. 
Quase todos os bancos centrais mais importantes vêm cortando juros, de modo a preservar o crescimento. Na Europa, o custo do dinheiro desceu ainda mais ao território negativo. Mesmo nos EUA, que ainda ostentam a menor taxa de desemprego em 50 anos, as taxas têm caído, em tendência oposta à observada no ano passado.
Preocupa que autoridades monetárias tenham de usar seu já esvaziado arsenal para controlar os danos da agenda destrutiva de Donald Trump. Quando a próxima crise vier, poderão estar sem munição. 
Daí o clamor crescente para que a politica fiscal —na forma de maiores gastos públicos ou cortes de impostos— tenha um papel maior, ao menos nos países com os orçamentos em ordem, caso da Alemanha e de alguns países asiáticos.
Por ora, contudo, não é improvável a continuidade do ciclo de expansão, ainda que medíocre. A liquidez mundial continua ampla e não há sinais que sugiram uma nova crise financeira iminente. 
Sem nova recessão global, o cenário atual não se mostra negativo para o Brasil, que pode prosseguir na trajetória de leve retomada econômica. Os juros internacionais baixos favorecem política similar aqui. Tudo isso compra algum tempo para que o país prossiga na agenda de reformas. O risco, como sempre, é o de acomodação.

Rostos e emoções, Luís Francisco Carvalho Filho, FSP

O Brasil é mercado promissor para tecnologias de reconhecimento facial

Se a vigilância total e instantânea ainda é distopia literária, relativamente distante, a erosão da privacidade pelo aparelhamento tecnológico incomoda.
Poder público e corporações privadas (além de delinquentes, é claro) devassam a vida íntima e cotidiana das pessoas.
Por diversos motivos. O reconhecimento facial é, estrategicamente, objeto de desejo de governantes de diferentes países.
Cidades da China capturam a identidade de pedestres que danificam equipamentos urbanos ou violam normas de trânsito.
Sistema de reconhecimento facial do governo da Bahia flagra primeira foragida em estação rodoviária
Sistema de reconhecimento facial do governo da Bahia flagra primeira foragida em estação rodoviária - SSP-BA
Em São Paulo, cidade recortada por rios imundos e fedidos, foram instalados sensores nas portas de entrada dos trens da linha 4-Amarela do metrô para captar a emoção (alegria, indiferença) de passageiros expostos a peças publicitárias: liminar do Tribunal de Justiça proibiu a iniciativa em 2018.
A polícia de Cardiff, capital do País de Gales e sede da partida final da Liga dos Campeões da Europa em 2017, entre Juventus (ITA) e Real Madrid (ESP), identificou equivocadamente 2.297 pessoas (92% das amostras) como possíveis criminosos. Em matéria de segurança pública, é um significativo rebanho de falsos positivos.
A inteligência artificial estimula a sofisticação do erro. Algoritmos também são concebidos a partir de instruções tendenciosas ou falíveis.
A entrevista de Sam Gregory, da organização Witness, ao jornalista Nelson de Sá, publicada na quinta-feira (17) pela Folha, sobre vídeos deepfake (falsificação de rosto, gesto, voz de alguém em determinada imagem), é indicativa de que sistemas de escaneamento das faces não são imunes a fraudes.
O Brasil está vivamente interessado no reconhecimento facial para fins de segurança pública e empresas fornecedoras paparicam autoridades que acreditam, sinceramente, em sua eficiência. O tema não desperta tanta oposição, pois, afinal, é para o “bem” de todos.
O Metrô de São Paulo quer observar estações, trens e áreas operacionais.
O Rio de Janeiro, mesmo falido, anunciou em dezembro parceria entre o Disque Denúncia e empresa britânica para localização de criminosos que integram banco oficial de imagens, eventualmente surpreendidos por câmeras do programa Facewatch.
Na Bahia, estado governado pelo PT, teste experimental de reconhecimento facial durante o Carnaval identificou 3 milhões de rostos na multidão de foliões em Salvador e permitiu a prisão de integrante do bloco As Muquiranas, fantasiado de mulher e procurado por homicídio.
Em janeiro, 12 parlamentares eleitos pelo emergente e conturbado PSL foram conhecer, a convite do Partido Comunista, a experiência chinesa.
Um dos turistas políticos, deputado Bibo Nunes (RS), é autor de projeto de lei sobre desenvolvimento, aplicação e uso de tecnologias de reconhecimento e banco de dados, no Ministério da Justiça e Segurança Pública, com biometria facial e emocional de pessoas com mandados de prisão.
Para a surpresa de especialistas, o presidente Bolsonaro instituiu por decreto, cheio de impropriedades técnicas, o Cadastro Base do Cidadão, que, no futuro, conterá “características biológicas e comportamentais mensuráveis da pessoa natural que podem ser coletadas para reconhecimentos automatizados, tais como palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar”.
Desenvolvimento tecnológico é sempre bem-vindo, mas é bom ficar de olho vivo. É tempo de governos nefastos.
Luís Francisco Carvalho Filho
Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).