terça-feira, 15 de outubro de 2019

Especialistas afirmam que assembleias precisam aprimorar processos, O Globo

SÃO PAULO E RIO - A concepção de projetos nas assembleias legislativas do país precisa mudar para conter o ímpeto de deputados estaduais de criar leis que oneram cofres públicos ou interferem no ambiente de negócios sem atacar prioridades, dizem especialistas. Conforme revelou levantamento do GLOBO publicado no domingo, dezenas de propostas desse tipo ocuparam o tempo de deputados estaduais em Rio , São Paulo e Minas Gerais desde 2017, em meio ao quadro de crise nas contas públicas e baixo crescimento econômico.
Também foram encontrados exemplos na Câmara Legislativa do Distrito Federal. Melhorar a interlocução dos parlamentares com o Executivo e o setor empresarial e a revisão dos processos legislativos são alguns dos ajustes necessários segundo juristas e economistas.
Para Carlos Ari Sundfeld, professor da escola de Direito da FGV, o descolamento da realidade de muitos projetos nas assembleias resulta, em boa parte, da centralização das principais decisões políticas em Brasília. Na tentativa de se manterem relevantes, deputados estaduais acabam extrapolando suas atribuições e até legislando sobre o que já é regulado por lei federal. Muitos, como mostrou O GLOBO domingo, terminam barrados na Justiça.
— A população, de modo geral, ignora o motivo de uma assembleia legislativa existir. Por lei, uma assembleia deveria discutir orçamento e fiscalizar a máquina pública estadual — diz Sundfeld, para quem a crise fiscal enfrentada pelos estados é uma oportunidade para que as assembleias retomem sua relevância para a população.

Política supera critérios

Miro Teixeira, que foi deputado federal por 11 mandatos e hoje atua como consultor legislativo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), atribui parte do problema ao fato de, no Brasil, a mera apresentação de projetos ser usada equivocadamente como parâmetro de qualidade da atuação parlamentar. Dessa forma, uma profusão de projetos sem estudos de impacto, ainda que bem-intencionados, toma o lugar das prioridades nas assembleias.
— É preciso promover a consolidação das leis (harmonização), algo previsto na Constituição e em lei complementar, mas que raramente é feito. Hoje, o que há é um emaranhado que deixa o cidadão perdido no que há de mais essencial para ele, que é conhecer seus direitos — diz Miro. — Outra coisa essencial é passarmos a discutir mais profundamente, em todos os níveis, os orçamentos públicos. Hoje, esse debate é neglicenciado. O deputado tem que compreender que o poder público não gera dinheiro, faz a gestão do dinheiro do contribuinte.
Uma lei para ser aprovada na Assembleia do Rio (Alerj), por exemplo, primeiro pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e depois por várias comissões temáticas relacionadas ao objeto do projeto. Em cada uma delas, consome ao menos 14 dias de debates. 
Segundo Miro, há consultores parlamentares nas comissões técnicas capazes de apontar os impactos de cada projeto, mas nem sempre essa assessoria faz diferença:
— Mesmo assim, muitas vezes, prevalece a discussão política.
O presidente da Alerj, deputado André Ceciliano (PT), admite que muitos projetos são propostos pelos deputados na tentativa de agradar a um ou outro setor sem cálculo de impacto econômico, mas diz que têm buscado estimular o bom senso entre os parlamentares:
— A gente tem procurado fazer leis que possam garantir a defesa do consumidor, a transparência pública e normas para garantir receitas para o estado. Mas, dos 70 deputados, 36 são novos e chegaram com muito gás, querendo fazer. Temos procurado conscientizar os líderes e deputados para não abrir mãos de receitas e alertamos quando estão legislando criando despesas. A Alerj é uma casa plural e que funciona, cada parlamentar tem a liberdade de propor, apresentar e fomentar projetos.
Cauê Macris (PSDB), presidente da Assembleia de São Paulo (Alesp), ressalta que todos os projetos são avaliados pelas comissões:
— Cada parlamentar foi eleito e possui legitimidade para apresentar propostas de acordo com suas convicções. O presidente não tem poder de interferir nos projetos.

‘Custo Brasil’

Em nota, o governo de São Paulo diz manter diálogo constante com os deputados, mas ressalta que a Alesp “tem total autonomia para discutir e aprovar suas matérias, dentro dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal”. Os governos do Rio, de Minas e do DF não se manifestaram, assim como os chefes dos legislativos mineiro e do DF.
Para André Luiz Marques, coordenador do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, a maior integração entre os deputados em medidas prioritárias é essencial para vislumbrar uma saída da crise em Minas. A apresentação inicial do plano de recuperação fiscal do estado, diz, foi um primeiro passo na tentativa de acertar as contas. Mas, a exemplo do que aconteceu no Rio, afirma o pesquisador, não significou uma garantia de resolver todos os problemas.
— Esse não pode ser visto apenas como um plano do executivo estadual com o federal. É um plano para resolver uma situação calamitosa, e isso inclui o legislativo, e também o judiciário. Se eles não trabalharem de forma coordenada, vai ser garantia de insucesso — diz Marques.
Sem essa coordenação entre governos estaduais e suas assembleias, a consequência será que os governadores continuarão aceitando as despesas criadas pelos deputados, diz o economista-chefe da consultoria MB Associados, Sergio Vale:
— O ajuste continua sendo no lado da receita, aumentando arrecadação. É uma crise montada para os próximos anos — diz.
A economista Margarida Gutierrez, da Coppead/UFRJ, diz que essa mesma lógica vale para o excesso de regulação promovido por leis estaduais, que muitas vezes geram ônus desnecessários para as empresas:
- É o chamado custo Brasil, que diminui a atividade econômica e a arrecadação, e é particularmente pior para quem começa a empreender.
Colaboraram Rennan Setti, Camilla Pontes e Cássia Almeida

Equívocos que limitam nosso crescimento, Antonio Correa de Lacerda < OESP

nsistindo em incorrer em caminhos baseados em falsas premissas, resultado será um ‘mais do mesmo’

As escolhas de políticas econômicas não são neutras. Elas impõem perdas e ganhos a partir da decisão tomada, geralmente baseada num diagnóstico. Aí, no nosso caso, aparece o problema: o debate macroeconômico brasileiro é influenciado por sofismas que dificilmente se sustentam à luz das melhores teorias e bem-sucedidas políticas econômicas adotadas internacionalmente. Embora sejam de fácil assimilação e contem com a complacência do “senso comum”, analogias simplistas limitam uma discussão mais séria sobre as alternativas para a economia brasileira.
Um axioma de referência na visão convencional é de que a poupança seria um pré-requisito para o investimento. De acordo com essa assertiva, seria preciso comprimir os gastos públicos de forma a gerar um excedente para permitir ao Estado investir em infraestrutura e em políticas sociais. Essa é a base da visão de “austeridade” que tem prevalecido nas políticas econômicas adotadas no Brasil há pelo menos cinco anos. Começou no segundo mandato de Dilma Rousseff, sob o comando de Joaquim Levi, mas continuou posteriormente na gestão Temer/Meirelles, assim como atualmente, com Bolsonaro/Guedes.
Na verdade, uma análise baseada na boa teoria econômica e mesmo nas práticas de vários países exitosos, a relação é inversa: o resultado do investimento é que gera a poupança. Isso porque o Estado, além de ele próprio realizar investimentos, pode e deve recorrer ao seu poder de prover recursos para atender à demanda por financiamento dos projetos. Isso gera o benefício do efeito multiplicador do gasto público, que ajudará a impulsionar as atividades na economia, com reflexos positivos na produção, na geração de trabalho e renda e, finalmente, na demanda efetiva.
Um outro fator positivo é o efeito demonstração que gera para o setor privado, que, diante da retomada de atividades e da disponibilidade de financiamento a custos compatíveis com a rentabilidade esperada dos projetos, tenderá a investir.
O Estado é beneficiário desse ciclo virtuoso. Mais atividade econômica implica mais receita tributária, colaborando para o sempre desejado ajuste fiscal pelo lado da receita, e não só, como tem sido a prática nos últimos cinco anos, com foco principal na despesa.
O segundo equívoco, diretamente relacionado ao primeiro, está na visão equivocada de economia doméstica no que se refere ao orçamento público. A falsa ideia de que “o Estado tem de fazer como as famílias, que reduzem seu gasto na crise”, foi um dos argumentos para a aprovação, no final de 2016, da Emenda Constitucional 95. O problema, como apontei na época, é que a visão que sustentou sua adoção e aprovação parte de um vício de origem que desconsidera o papel do Estado, tanto o que lhe é definido na
Constituição federal quanto o de exercer seu poder de monopólio de emissão monetária e de dívida pública (ver PEC 241, autoengano e a economia do lar, Estadão, 16/10/2016, B2).
O resultado dessas falsas premissas e estratégias é um processo autofágico em que mais cortes significam mais crise e, portanto, desajuste fiscal, ao contrário do pretendido, uma vez que menos atividade econômica diminui a arrecadação, não só pela menor geração de impostos, mas com o aumento da dificuldade de empresas e famílias pagarem suas obrigações gerando crescimento da inadimplência.
Enquanto não nos livrarmos da insistência em incorrer em caminhos equivocados e baseados em falsas premissas, o resultado será um mais do mesmo. Sem mudar o foco, dificilmente lograremos êxito na reversão da crise e em atingir o almejado desenvolvimento sustentável, econômica, ambiental e socialmente.

*Professor-Doutor, Diretor da FEA-PUCSP, Conselheiro e atual Vice-Presidente do Conselho Federal de Economia (COFECON), é autor, entre outros livros, de “Economia Brasileira” (6ª Edição: Saraiva, 2018). Site: www.aclacerda.com

Fonte: Estadão