quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Mariliz Pereira Jorge A burrice e o atraso, FSP

Governo adora se espelhar em políticas de EUA e Israel, mas não quando assunto é legalizar a maconha

O Brasil foi o último na América Latina a abolir a escravidão, em 1888. Quase um século separa a mudança iniciada nas sociedades mais desenvolvidas, como a Dinamarca, que proibiu em 1792 o comércio de escravos. Pelo andar da carruagem, o mesmo vai acontecer com outros temas que já passaram a ter o entendimento revisado, como a legalização da maconha. 
Não temos mais as barreiras de informação, comunicação e tecnologia, que sempre contribuíram para nos deixar na lanterninha do desenvolvimento. Mas a chance de a Anvisa debater o assunto com seriedade e acompanharmos os avanços e as transformações pelas quais o mundo passa esbarra no pior tipo de combinação: o conservadorismo e a burrice de nossos governantes. 
De um lado, o ministro da (falta de) Cidadania, Osmar Terra, insiste numa epidemia de drogas inexistente e acusa o "lobby maconheiro" para melar a regularização do uso medicinal da maconha. Do outro, o titular da Saúde se posicionou contra o plantio mesmo para as necessidades terapêuticas, porque "seria uma droga a mais para lutar." 
Cerca de 35 países já deram um passo à frente. É curioso que este governo, que adora se espelhar nas sociedades americana e israelense, ignore suas políticas sobre o assunto. Nos EUA, em mais de 30 estados, remédio de maconha é legal. Cerca de uma dezena liberou geral.
Israel pesquisa a maconha desde os anos 1960. Na década seguinte, aprovou o uso mediante receita. Em janeiro, novas leis abriram caminho para a exportação do produto, e, mais recentemente, o uso recreativo foi flexibilizado. Há apostas de que o mercado da erva vá ser a próxima "grande indústria" no país, que já tem mais de cem startups, além do clima considerado perfeito para a plantação. 
E a gente aqui, na rabeta da história, juntinho com os países mais atrasados, na mão de gente tosca, vendo o bonde civilizatório passar.
Mariliz Pereira Jorge
Jornalista e roteirista de TV.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Ambivalências do envelhecimento, Pondé, FSP

Se sua vida foi um fracasso, ao envelhecer este fracasso se torna mais evidente

O envelhecimento é um dos horizontes através do quais pensaremos o futuro. Nosso destino e nosso grande inimigo. Aqui já se impõe uma das suas ambivalências estruturais. 
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, morto em 2017, descreveu a modernidade como ambivalente (antes do seu conceito blockbuster de “modernidade líquida”). 
A modernidade é ambivalente porque ela cria soluções que geram problemas, numa derivação evidente do processo dialético, sem integração final das ambivalências.
Pois bem. Sobre o envelhecimento cai o típico véu da mentira contemporânea como método: mente-se porque o envelhecimento é uma ferida narcísica (Freud) que atinge em cheio a econômica da nossa autoestima.
Mente-se para produzir autoestima, um protocolo comum em nossos dias, na educação, na política, nas redes sociais, no coaching, no mundo corporativo, na filosofia, enfim, na teologia. 
Aqui vai outra ambivalência do envelhecimento: quanto mais mentimos, mais nos afastamos do entendimento que pode nos ajudar a enfrentar esse horizonte inexorável. 
Mais longevidade, mais solidão, mais lazer, mais depressão, mais possibilidade de (re)fazer escolhas, mais sexo, mais gastos, mais férias, mais exames médicos, mais paranoia.
Esse processo é descrito pelo filósofo francês em atividade Pascal Bruckner, no seu recente “Une Brève Éternité: Philosophie de la Longevité” (“Uma breve eternidade: filosofia da longevidade”, em tradução livre), editora Grasset, Paris, como esquizofrenia do envelhecimento. 
Ilustração da coluna do Pondé do dia 30.set.2019
Ilustração da coluna do Pondé do dia 30.set.2019 - Ricardo Cammarota/Folhapress
Composto por agentes de difícil integração, o envelhecimento nos lança em experiências dilacerantes, apesar de ser melhor do que morrer cedo. E pra piorar, alguns (poucos) entre nós parecem envelhecer melhor do que outros, expondo a “desigualdade” até nesse campo.
Evidente que um dos marcos do bem envelhecer é a grana. Quanto mais pobre, mais a mercê da genética. Elemento de sorte que compõe a química do futuro de cada um de nós. 
Quanto mais grana, mais possibilidade de sucesso no controle do envelhecimento em todos os níveis: saúde, férias, melhor condições de trabalho, mais usufruto dos avanços técnicos, mais beleza pós-juventude, enfim, a longevidade em si é um produto como a última geração de iPhones.
Homens e mulheres envelhecem de modo diferente. O Viagra libertou, em grande parte, o homem do envelhecimento sem sexo. Como já disse várias vezes, o Viagra fez mais pela humanidade do que 200 anos de marxismo.
Por outro lado, a mulher sofre mais do que o homem nas mãos do imperativo da vaidade e da beleza. Algumas mulheres fazem intervenções a ponto de ficarem parecendo bonecas infláveis fora do prazo de validade. 
Homens que pintam o cabelo, portanto, fingem uma idade que não tem, são ridículos, logo, homens de cabelo branco têm valor no mercado dos afetos e do sexo. 
Ledo engano daqueles que tiraram rápido a conclusão de que o parágrafo acima seja um panfleto contra as mulheres. Pensar de forma panfletaria e militante é uma das chatices de nossa época. 
Não, mulheres envelhecem melhor do que homens em grande medida. 
Cultivam melhor as amizades, se interessam mais umas pelas outras (mesmo que com uma pitada de gosto por falar mal das “amigas”), têm mais vínculos com os filhos (isso tende a mudar porque os filhos estão em rápida extinção), têm interesses múltiplos, recomeçam a vida com mais facilidade, grande parte ainda tem a “vantagem secundária” de terem tido mais tempo sem ter que pensar só em grana e, portanto, de desenvolver mais interesses múltiplos. 
A emancipação feminina tende a eliminar essas “vantagens secundárias”. Mulheres gostam de conhecer mais coisas mais do que homens gostam. São mais curiosas e interessadas por uma gama gigantesca de novidades. Homens, na maioria dos casos, só pensam em duas coisas: mulher e trabalho. 
Talvez um dos maiores marcadores do envelhecimento seja a noção de legado, tão em moda nos espaços mimimi por aí. O fato é que a juventude detém o futuro como trunfo. O idoso detém o passado, e este é “verificável cientificamente”. 
Se sua vida foi um fracasso, ao envelhecer este fracasso se torna mais evidente do que nunca.
 
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filo