sábado, 7 de setembro de 2019

Por que o borogodó de Brigitte incomoda tanto?, FSP

A primeira-dama da França liberta outras mulheres que querem envelhecer com mais liberdade

O corpo, no Brasil, é considerado um verdadeiro capital, especialmente para as mulheres. O corpo capital é um corpo jovem, belo, magro e sensual.
Mostrei no livro “Por que os homens preferem as mulheres mais velhas?”, pesquisando 50 casais em que os homens são pelo menos dez anos mais jovens do que suas parceiras, que os capitais mais importantes nesses relacionamentos não são nem juventude nem corpo, muito pelo contrário. 
A primeira-dama francesa, Brigitte Macron, durante inauguração de um centro sobre história medieval em Azincourt - Denis Charlet - 29.ago.19/AFP
O que os homens valorizam em suas relações, que são bastantes felizes e satisfatórias, são companheirismo, maturidade, cuidado, compreensão, bom humor, segurança e autoconfiança. E eles dizem mais: essas características eles só encontraram nas mulheres mais velhas com quem se casaram. 
Nesses 50 casos, a juventude não é considerada um valor, uma vez que as mulheres mais jovens com que eles se relacionaram foram consideradas pegajosas, inseguras, controladoras, competitivas e infantis.
É interessante destacar que, para esses homens, as mulheres mais velhas são muito mais atraentes por terem capitais que as jovens não têm, como elegância, charme e o que eles chamam de borogodó. As mais jovens podem ter um corpo bonito, mas não têm borogodó.
Mas o que seria borogodó? É uma espécie de carisma, de atração, de ímã que essas mulheres mais velhas têm e que seduz as pessoas. 
Os casos recentes de homens que xingam mulheres mais velhas de feias são típicos de uma mentalidade preconceituosa que associa o envelhecimento feminino à feiura.
É importante ressaltar que esses preconceitos e acusações com relação ao envelhecimento feminino não vêm só de homens. Muitas vezes as próprias mulheres são cruéis com as outras mulheres que envelhecem. 
É só lembrar o caso da atriz Betty Faria, que foi acusada por mulheres de ser uma velha ridícula por ir à praia de biquíni aos 72 anos.
Nosso país está se tornando velho muito rapidamente. No entanto, os discursos, comportamentos e valores ainda revelam a crença de que ser jovem é igual a ser bonito.
A geração que está hoje com mais de 60 anos é a mesma geração que fez a revolução comportamental dos anos 1960, que mudou tudo o que se pensava a respeito de casamento, de amor, de sexualidade, de corpo e que está inventando uma nova forma de envelhecer. 
Só que, como os valores resistem às mudanças, muitas pessoas continuam enxergando feiura e não beleza na velhice.
O que é mais belo e atraente em Brigitte Macron é o fato de ser uma mulher independente, inteligente, confiante, madura, segura, autêntica, espontânea. 
Ela não mudou seu estilo e sua personalidade porque fez 66 anos ou porque se tornou avó. Ela continua sendo ela mesma. E é isso o que querem as mulheres de mais de 60 anos que pesquiso. Elas dizem: “É o melhor momento de toda a minha vida, nunca fui tão livre, nunca fui tão feliz. É a primeira vez que posso ser eu mesma”.
Brigitte é admirável, diria até invejável, porque nunca deixou de ser ela mesma. A sua beleza, charme, elegância vêm do fato de não ter mudado por ter envelhecido ou por ter casado com um homem 25 anos mais novo. 
Ela segue com suas saias curtas, seus jeans justinhos e camisetas. Ela é considerada, sim, por muitos homens e mulheres, charmosa e interessante. 
Ela tem muito mais borogodó do que mulheres mais jovens que vivem para agradar e se exibir para os outros.
Em minha pesquisa, peço um exemplo de um “belo envelhecimento”, e a atriz Fernanda Montenegro aparece em primeiro lugar. Quando pergunto o porquê, as respostas são sempre no sentido de dizer que ela é autêntica, digna, elegante, madura, segura, verdadeira.
Quando peço um exemplo de homem que tenha envelhecido bem, em primeiro lugar aparece Silvio Santos, mas por motivos bem diferentes: ele tem sucesso, prestígio, dinheiro, poder.
Quando pergunto sobre uma mulher que tenha envelhecido mal aparecem atrizes ou apresentadoras de TV que namoram garotões, que usam minissaia e decote, e que, segundo os pesquisados, não sabem se comportar de acordo com a idade. Aparecem também cantoras e atrizes que fizeram muitas cirurgias plásticas e, segundo eles, transformaram-se em “monstros”.
Quando a pergunta é sobre o homem que envelheceu mal, eles não citam ninguém.
Na nossa cultura, as mulheres mais velhas são muito mais julgadas e condenadas pelos seus comportamentos e por suas aparências. O que foge do padrão é condenado por homens e mulheres. 
Então, quando dizem que uma mulher que envelhece é feia, simbolicamente está se falando muito mais do que da aparência física, está se fazendo um julgamento moral sobre seu comportamento, sobre suas vestimentas, sobre o fato de escolherem se relacionar com homens mais jovens. 
Brigitte se tornou um símbolo de liberdade das mulheres de várias partes do mundo por ter tido a coragem de ser ela mesma. Isso é o que muitos acham ser a verdadeira beleza ou o tal do borogodó.
Quando uma mulher é livre para ser ela mesma, em todas as fases da vida, não só quando envelhece, ela está questionando todos os padrões que aprisionam as mulheres de todas as idades. 
Mas, ao mesmo tempo em que ela está incomodando, e muito, ela está libertando outras mulheres que querem envelhecer com mais liberdade, mais felicidade e mais autenticidade, sendo elas mesmas.
Mirian Goldenberg
Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio, é autora de "A Bela Velhice".

Recolhimento de HQ viola o Estado de Direito, FSP

Tentativa de intervenção da prefeitura na Bienal não só lembra a atuação da censura, mas afronta decisão do Supremo

Renan Quinalha
SÃO PAULO
O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, anunciou que mandaria recolher o que chamou de “livros com conteúdos impróprios para menores” expostos na Bienal do Livro. 
Depois de ter notificado extrajudicialmente a organização, ameaçando apreender a obra e mesmo cancelar o evento, fiscais da prefeitura compareceram ao local numa verdadeira operação de intimidação para verificar o que estava sendo vendido.
O objeto de toda a preocupação da administração municipal se resume à história em quadrinhos “Vingadores –A Cruzada das Crianças”, publicada há sete anos no país e na qual há uma cena com dois homens totalmente vestidos se beijando.
Coleção oficial de Graphic Novels , VINGADORES a cruzada das crianças, de Allan Heinberg & Jim Cheung - Foto: Reprodução
​O primeiro aspecto que salta aos olhos é o de que não há obscenidade ou pornografia nesse material ficcional. Há uma representação gráfica de um beijo gay entre dois personagens. Não há aquilo que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, caracteriza como “cena de sexo explícito ou pornográfica” envolvendo criança ou adolescente.
Tampouco o material seria impróprio ou inadequado, de acordo como artigo 78 do ECA, diante da inexistência de “mensagens pornográficas ou obscenas” que exigiriam embalagens lacradas ou opacas.
Aliás, o artigo 79 do mesmo estatuto prescreve que as publicações e revistas devem “respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal, em 2011, com base nos princípios da igualdade e da não discriminação, já reconheceu como famílias as uniões conjugais formadas por pessoas do mesmo sexo. Assim, um beijo gay, sem qualquer obscenidade, em nada agride tais valores.
Além de não estar materialmente amparada na Constituição, que consagra em alta conta a liberdade de expressão artística independentemente de censura ou de licença, a atitude de Crivella viola, na forma, competências e procedimentos caros ao Estado democrático de Direito.
A prefeitura não tem o poder policial de busca e apreensão de publicações sem que haja um controle judicial de um pedido desta natureza, garantindo-se os direitos a o contraditório e à ampla defesa.
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Em maio de 1969, o general Humberto de Souza Mello oficiou ao Dops do então estado da Guanabara alertando que “tem sido observado, ultimamente, sensível aumento na circulação de livros e outras publicações de caráter licencioso, pornográfico e erótico, cuja difusão é feita indiscriminadamente não só em livrarias — como também em bancas de jornais, feiras de livros etc”.
Prosseguia o general advertindo que “a facilidade com que tais publicações são adquiridas, o interesse que tal tipo de leitura poderá despertar, particularmente na mocidade e, principalmente, seu conteúdo, constituem importantes fatores que vão sub-repticiamente abalando a pedra angular da sociedade democrática que é a família”.
Em nome da moral e dos bons costumes, durante a ditadura civil-militar de 1964, centenas de livros foram censurados previamente, apreendidos, retirados de circulação e incinerados na Companhia Municipal de Limpeza Urbana vinculada à prefeitura do Rio. A liberdade de expressão terminava na vontade de qualquer técnico da censura de plantão.
A tentativa de intervenção da prefeitura na Bienal não apenas lembra a atuação da Divisão de Censura de Diversões Públicas, extinta pela Constituição de 1988, mas configura uma afronta à recente decisão do STF que considerou a discriminação contra pessoas LGBT como análogo ao crime de racismo.
O próprio estado do Rio de Janeiro editou a Lei 7.041 em 2015 para punir “agentes públicos e estabelecimentos” por atos de discriminação baseados em “preconceito de sexo ou orientação sexual”.
É preciso apurar com rigor as responsabilidades neste caso, pois estamos diante de um passo significativo na crescente escalada de intervenções de instituições de Estado no campo da produção cultural.
As cruzadas morais contra a liberdade de expressão artística não começaram agora. Nos últimos dois anos, mostras de artes visuais, performances e peças de teatro vêm sendo atacadas em diversos locais do país. Editais sobre a temática da diversidade sexual e de gênero estão sendo suspensos. É preciso pôr um ponto final nessa história de censuras antes que seja tarde.