sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Escolas cívico-militares: erro, viés ou o quê? Priscila Cruz, FSP

Não há evidências do impacto da militarização no ensino público

Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos pela Educação - Zé Carlos Barretta - 23.ago.18/Folhapress
Priscila Cruz
Não é surpresa a defesa de escolas militares pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL). Mas basear uma política nacional de educação nesse modelo é autoengano, viés ideológico ou plataforma eleitoral? O que podemos afirmar: trata-se de um erro de diagnóstico e de priorização.
Em primeiro lugar, é importante diferenciar escolas militares —que basicamente atendem os filhos de militares— das cívico-militares, escolas regulares com a presença de militares em algumas funções na gestão escolar. 
Ministério da Educação anunciou que vai investir recursos na ampliação de colégios cívico-militares. A justificativa são os resultados das escolas militares: elas têm média 7 no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) do ensino fundamental e médio, frente à média nacional de 4,9. Já as cívico-militares ficam mais próximas da base do que do topo, com 5,6.
Se mais aprendizagem nas escolas públicas é o resultado esperado, um estudo de impacto deveria ser capaz de mostrar que o modelo cívico-militar é responsável pelo diferencial de nota do Ideb, independentemente de outros fatores.
Entretanto, não há evidências do impacto da militarização das escolas públicas, diferentemente de tantas outras políticas, como formação de professores, primeira infância, qualidade do currículo e da prática pedagógica, gestão escolar, participação das famílias e educação Integral.
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Com efeito, o que mais explica os resultados das escolas militares são os fatores extraescolares. Algumas delas selecionam estudantes por meio de provas, como num vestibular, e assim têm a tarefa de ensinar para quem já tem aprendizagem acima da média. Mas o que mais explica o Ideb maior é o nível socioeconômico médio dos alunos, que são em maioria de famílias de classe média ou média alta, bem diferente da média nas escolas regulares. 
Pode ser então que a justificativa seja apenas mais segurança. É inegável o fator “disciplina” nessas escolas, e justo que as famílias desejem um ambiente seguro aos seus filhos. Mas o preço é o senso de repressão e da supressão da individualidade dos alunos.
As boas experiências no Brasil mostram que escolas bem geridas também têm muito mais disciplina e segurança, sem ampliar a evasão dos alunos que não se encaixam no modelo militarizado e com o favorecimento de projetos pedagógicos mais colaborativos e sintonizados com as competências para o século 21. 
Foi esse o caminho seguido pela Colômbia, que convivia com altas taxas de criminalidade e violência pública: em vez de militarizar as escolas, elaboraram padrões de competências cidadãs, melhoraram a formação docente, engajaram famílias, professores e alunos e investiram na gestão das escolas.
O êxito levou à instituição de um Sistema Nacional de Convivência Escolar, com a adoção de um exame para medir as competências cidadãs e a inclusão de uma "cátedra da paz" em todas as instituições de ensino colombianas. Além de resultados excelentes nas escolas, a Colômbia ultrapassou o Brasil no Pisa, avaliação internacional de aprendizagem, em 2015.
Tudo isso posto, a política pública nacional não deveria ser, portanto, de ampliação de escolas de tempo integral, de fortalecimento da gestão escolar (incluindo seleção com critérios técnicos e formação de diretores), de enfrentamento da má qualidade da formação dos professores no Brasil, de promoção da paz?
Sem dúvida, mas é um caminho que exige muito mais da gestão governamental do que colocar militares nas escolas.
Priscila Cruz
Mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School (EUA), é presidente-executiva e cofundadora do movimento Todos Pela Educação

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Elogio aos moderados, FSP

Polarização e estridência são marcas da democracia atual. O Pew Reserch Center mostrou que, em pouco mais de duas décadas, a proporção de democratas e republicanos que tem uma opinião muito desfavorável do partido rival cresceu, na média, de 19% para 57%. Os dados são fartos nessa direção. Divergência e confrontação de opostos sempre foram (e continuarão sendo) uma virtude da democracia, mas hoje se parecem mais com um de seus vícios.
Há muitas razões para isso. Pipa Norris, pesquisadora de Harvard, fala de um processo de confrontação cultural. Haveria, na democracia global, uma reação conservadora ao avanço da sociedade de direitos e das pautas progressistas que marcaram o avanço democrático global no período recente. Outros veem nisso o contrário: a reação do homem comum e sua cultura de bom senso reagindo aos excessos da retórica identitária, à falência das velhas elites e suas instituições, partidos, mídia, sindicatos, subitamente disfuncionais e descartáveis.
Não é difícil de perceber que a polarização dá o tom mesmo para explicar o mal-estar da democracia atual. Uma coisa parece certa: a internet tem muito a ver com isso. A neurocientista inglesa Susan Greenfield matou parte da charada quando definiu o mundo digital como um ecossistema de baixa empatia. Mundo sem rosto, sem calor, sem meios tons, confortavelmente distante das pessoas de carne e osso. Foi ele quem criou o grande paradoxo: nos deu imensa liberdade, mas também o caos.
O Brasil fez bem a lição de casa da polarização. O país já vinha polarizado desde a época de ouro do lulismo. A retórica do “nunca antes neste país”, desaparecida no tempo, já continha a lógica da exclusão. Nós, o povo, contra vocês, a elite, que nunca fez nada direito. Tudo isso explodiu, do lado inverso, e em certa medida como a mesma fúria, após as eleições de 2014. Não é preciso ir muito longe recontando essa história. Bolsonaro é, entre muitas coisas, o resultado de um país que já vinha polarizado há muito tempo.
Meu ponto é argumentar que tudo isso tem levando a um certo cansaço. A última pesquisa Datafolha mostrou uma crescente rejeição ao estilo do presidente, ainda que mais de 40% prossigam achando que ele sempre, ou na maioria das vezes, se comporta bem. O país segue dividido, ainda que cada vez mais desconfiado.
O desafio brasileiro, para além do amor ou do ódio ao presidente, é confrontar um certo estilo de fazer política. Este mesmo que nos levou ao mal-estar (alguns chamam de crise) da política atual. E é nesse ponto que se abre um espaço para a moderação.
Moderados, nos dias que correm, não gozam lá de grande conceito. Na era da guerra cultural, eles tentam estipular limites para a ação política. Tentam incorporar, pacientemente, uma visão plural de mundo e diferenciar a política da crença, sabendo que também a ideologia pode ser um tipo, por vezes mais perverso, de religião.
Moderados não gozam lá de grande prestígio porque são frequentemente confundidos com o centrismo político, ou ao menos sua caricatura. O tipo sem opinião, ou sempre disposto a negociar a sua opinião. É um engano tudo isso. Um moderado pode defender posições liberais ou socialistas, não é esse o ponto. Sua marca é recusar a posição de dono da verdade. E isso faz toda a diferença.
O moderado é o sujeito que não tem medo de lidar com os fatos inconvenientes que podem afetar suas próprias posições. O presidente é autoritário? Elogia Pinochet? Inaceitável, ainda mais diante de certa oposição que jamais sujou a língua elogiando ditador nenhum.
O moderado é o tipo que sabe que o mundo é complexo. Ele gosta de Popper e sua teoria da falseabilidade: em vez de correr atrás de mais cisnes brancos que confirmam sua teoria, ele vai atrás do cisne negro. Busca dolorosa. Ninguém gosta do cisne negro, aquele fato maldito que nem sequer deveria existir. Mas que está lá, me provocando a manter o espírito aberto. E a lembrar que só a crença e o fanatismo se fundam em ideias que nunca podem estar erradas.
Por tudo isso, os moderados têm uma contribuição a dar ao Brasil de hoje. A democracia é feita de firmeza de posições, mas também da capacidade de produzir consensos. As reformas que soubemos fazer, nos últimos anos, nos dão um sinal nessa direção. Um sinal ainda frágil e incerto, mas o melhor que temos para seguir em frente.


Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.