quinta-feira, 5 de setembro de 2019

O QUE A FOLHA PENSA Borduna na Carta

São preocupantes os flertes confusos de Bolsonaro com atitudes autoritárias

O presidente Jair Bolsonaro, durante cerimônia no Palácio do Planalto - Adriano Machado/Reuters
O estilo autêntico, para usar uma expressão cultivada nos círculos situacionistas, do presidente Jair Bolsonaro (PSL) sobressaiu mais uma vez na conversa que travou com esta Folha na manhã da terça (3).
A resistência da Polícia Federal às tentativas de intrusão em nomeações de escalões inferiores, responsáveis por investigações envolvendo familiares do presidente, foi tachada pelo mandatário de “babaquice”. Sua intenção, afirmou, seria apenas a de dar uma “arejada”no comando daquela organização.
Ao ministro Paulo Guedes, outrora reverenciado como uma enciclopédia pelo chefe, sobrou a pecha de “chucro” na política. O titular da Economia também foi alertado para o risco de “tomar porrada” do presidente caso não apresente compensações convincentes para a sua obsessão por fazer reencarnar alguma forma de CPMF.
Outro que assumiu sob a expectativa de acumular superpoderes, embora sistematicamente solapado pelo presidente desde então, Sergio Moro foi qualificado de “ingênuo”. O ministro da Justiça, segundo Bolsonaro, seria rechaçado no Senado caso fosse indicado para o Supremo Tribunal Federal.
As farpas contra a correligionária e líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann, atingiram a pretensão da deputada de disputar a prefeitura paulistana com o apoio de Bolsonaro, que a acusou de ter “um pé em cada canoa”.
Tratou-se de uma crítica indireta às movimentações do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), cujas simpatias políticas pela parlamentar do PSL são notórias, apesar de ele estar obrigado a apoiar eventual recandidatura do atual prefeito, o tucano Bruno Covas.
Mas, como o estilo presidencial não parece combinar com sutilezas, Bolsonaro também mandou um recado direto a Doria: o desejo do governador de disputar o Palácio do Planalto em 2022 não passaria de uma “ejaculação precoce”.
A esta altura, parece claro que o chefe de Estado não quer mudar a conduta. Amanheceu nesta quarta (4) ofendendo a ex-presidente do Chile Michelle Bachelet, o que causou novo incidente diplomático.
Os prejuízos do destempero verbal —que envenena o ambiente da disputa política, perturba o dos negócios e deprecia a imagem do Brasil— são profundamente lamentáveis. Mas, quando ele ameaça romper diques da Constituição, aí tem-se bem mais que algo a lamentar.
“Se eu levantar a borduna, todo mundo vai atrás de mim e eu não fiz isso ainda”, disse o chefe do Executivo na conversa com a Folha. Espera-se que não tenha refletido suficientemente, como costuma acontecer, a respeito da bravata autoritária que deixou solta no ar.
A Carta não oferece bordunas ao governante. Manda impedir qualquer um que tente erguê-las contra o edifício do Estado de Direito.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Guerra ao parlevu, FSP, Ruy Castro

Se é para brigar com a França, Bolsonaro deveria parar de usar o bidê

Em janeiro, Jair Bolsonaro assinou decreto sobre a posse de armas com uma caneta Bic e disparou enfáticas ameaças de que iria “usar a Bic” para fazer e acontecer. Agora, ao declarar guerra ao presidente francês Emmanuel Macron, anunciou que deixará de usar a Bic por ela ser francesa. Trocou-a pela Compactor, brasileira. Ao abandonar uma marca de caneta por ela representar a cultura de seu inimigo, embora a Bic esteja no Brasil há mais de 60 anos, Bolsonaro deveria estender esse boicote a outros produtos originários da França.
Não deveria, por exemplo, continuar indo ao toalete, ao lavabo e ao bidê. Seu —perdão— menu teria de cortar canapés, patês, baguetes, caviar, bombons, croissants, croquetes, omeletes, filés, suflês, purês, champignons e maioneses. E sua mulher, a bela, jovem, irresistível, incomparável e inútil Michelle, teria de deixar de usar sutiã, lingerie, robe, echarpe, maquiagem, bustiê, pompom, peruca, viseira, maiô, batom e bijuterias.
Bolsonaro teria também de suprimir palavras que simbolizam bem o seu estilo de governar: o deboche, a revanche, a chantagem, o complô. Seus filhos não poderiam mais usar boné, tomar champanhe ou ir a boates. Os desocupados que o aplaudem na porta do palácio —sua claque— seriam dispensados. Seus netos ficam proibidos de ter gripe ou coqueluche. E Bolsonaro deveria se preocupar com o Queiroz —seu ex-chofer. Mas o principal é que, como presidente, ele parasse de cometer gafes.
E é bom que Bolsonaro não brigue com a premiê alemã Angela Merckel. A caneta Compactor, que ele adotou, nasceu na Alemanha, fabricada pela Compaktor Fullhalterfabrik, e veio para o Brasil em 1952, produzindo canetas-tinteiro. Só aderiu às esferográficas —uma invenção da Bic —em 1984.
Mas, para que canetas? Para assinar qualquer coisa, basta a Bolsonaro enfiar um dedo na tinta e fazer um xis.

O QUE A FOLHA PENSA Direito à cesariana

Nova lei paulista sobre partos no SUS suscita debate moral, médico e econômico

O governador de São Paulo, João Doria, que sancionou lei que facilita cesarianas no SUS - Amanda Perobelli - 21.fev.19
Ao menos três aspectos se misturam no debate —e o confundem— sobre a recém-sancionada lei paulista que autoriza realizar parto cesariano pelo SUS sem indicação médica a partir da 39ª semana de gestação: moral, médico e econômico. Convém desenredá-los.
O primeiro é o mais fácil de enfrentar. Há quem condene que certas mulheres prefiram a cirurgia ao parto normal por conveniência ou temor das eventuais sequelas da via natural. Os motivos seriam fúteis, julgam não poucos.
Tal visão está em descompasso com a noção contemporânea de autonomia do paciente, em especial da gestante sobre o seu próprio corpo. Quem defende que ela possa decidir sobre a própria continuidade da gravidez deve, por coerência, admitir que decida também sobre como vai se dar o nascimento.
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Há aí uma questão de equidade. Na prática, tal opção já se encontra disponível para parturientes de nível socioeconômico mais alto: pesquisas indicam que cesáreas respondem por mais de 80% dos partos em hospitais privados do Brasil, algo como o dobro da taxa observada na rede pública.
Se pacientes e médicos elegem com maior frequência a cirurgia na rede particular, por que não estender o mesmo direito a quem depende da rede do SUS?
Decerto suscitam preocupação os dados que sugerem ser a elevada a média brasileira de cesarianas, em torno de 55%. No restante do mundo, apuram-se taxas mais próximas dos 20%.
Muito se debate qual seria um nível ideal de cesarianas, vez que as condições de saúde e socioeconômicas variam muito de país para país. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já considerou que, se o índice fica abaixo de 10%, mulheres que precisam da cirurgia podem acabar sem o procedimento, com perigo para ela e a criança.
Entretanto se sabe hoje da dificuldade de estimar uma taxa ideal, acima da qual haveria riscos.
Tendo em conta esses limiares, parece evidente que o caso brasileiro se coloca fora da curva global. Não será restringindo o acesso de mulheres pobres às cesáreas, contudo, que se corrigirá essa distorção, e sim com melhor esclarecimento de pacientes e até profissionais de saúde sobre os benefícios do parto natural.
Por fim, cabe registrar que o governador João Doria (PSDB) sancionou a lei sem que se conheça estudo projetando qual seria o custo da extensão dessa escolha para gestantes atendidas nos hospitais do estado. Na rede pública, a oferta de serviços precisa estar condicionada aos recursos disponíveis.