domingo, 31 de março de 2019

Todo dia é aquele Janio de Freitas, FSP

O golpe e a ditadura são lembrados todos os dias por cada um de nós

A ordem de comemorar os 55 anos do golpe de 64 seria, vinda de qualquer cabeça antidemocrática, uma provocação tola e de mau observador. No caso de Jair Bolsonaro, a incompreensão da realidade é, claro, muito maior. Inclui até a falta de percepção do que tem sido sua vida.
Comemorar —relembrar com outros—  o golpe e a ditadura em data determinada é redundância. Mais do que eventualmente inesquecíveis, o golpe e a ditadura são lembrados todos os dias, por cada um de nós, sem depender de vontade. Os restos de autoritarismo, apodrecidos mas ainda criminosos; os cacos de legislação, os privilégios e impunidades; as discriminações, boicotes e perseguição aos que não rezam pelo conservadorismo; as preocupações e temores com o golpismo latente —tudo isso integra ainda a vida neste país.
O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de hasteamento da bandeira do Brasil no Palácio da Alvorada, em Brasília
O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de hasteamento da bandeira do Brasil no Palácio da Alvorada, em Brasília - Antonio Cruz - 29.mar.2019/Agência Brasil/Reuters
Todos os dias são ainda lembranças e dejetos do 31 de março e do mais autêntico 1º de abril, com suas reproduções cotidianas por 21 anos.
Muitos milhares têm a agradecer o que receberam da ditadura, por via direta ou pelas circunstâncias. Por isso mesmo, também para esses beneficiados os dias são derivações do golpe. Entre os beneficiados, está Bolsonaro. Em posição particular e, por ironia, conquistada por meio da ditadura já na incipiente democracia.
Era o governo Sarney. Veja foi convidada à casa do tenente Bolsonaro para um "assunto importante". O tenente não apareceu na reportagem. Para os efeitos públicos, sua mulher então cumpriu o papel de porta-voz: ou o governo aumentava o salário ("soldo militar") dos tenentes, ou o abastecimento de água do Rio seria cortado pela explosão de bombas em um ponto crítico das adutoras. Foi oferecido para fotografia um croquis, bastante tosco, da linha de adutoras e das localizações.
Não houve o aumento exigido. Como reafirmação, um segundo plano seria a explosão de bombas em quartéis, com a pretensa participação de outros tenentes. Não houve aumento, mas a essa altura correram vagas informações de que o tal tenente estava sob inquérito. O processo daí decorrente foi até ao Superior Tribunal Militar.
O tenente Jair Bolsonaro agiu como terrorista. A publicação de Veja difundiu muita preocupação, tanto pelo anunciado ato terrorista, como pelo indício de grave agitação no meio militar, tão perto ainda do fim inconformado da ditadura. Para os militares, não houvera mudança essencial. O que incluía o STM, onde os dois juízes que evoluíram para a condenação à tortura e outras violências da ditadura, general Pery Bevilacqua e almirante Julio Bierrenbach, haviam sofrido a represália da exclusão. Ser apoiador da ditadura foi, desde 64, uma condição humana especial, com poderes e direitos acima de todos os códigos e convenções do convívio civilizado. O essencial dessa aberração parecia intocado, mas, afinal, o regime era outro.
Apesar disso, e embora não por unanimidade, o tenente terrorista foi absolvido. No centro de um conchavo, não lhe era sentenciada a devida condenação, mas passaria para a reforma. O que ainda lhe rendeu, como bonificação dada na época aos reformandos, promoção ao posto seguinte (por isso o "capitão Bolsonaro") e o soldo correspondente e integral.
Já na primeira eleição posterior à reforma, Bolsonaro candidatou-se a vereador no Rio. Foi eleito pelos militares e suas famílias, que depois lhe asseguraram sucessivas posses como deputado federal. Uma vida fácil e improdutiva na Câmara ou fora dela, assim como a eleição presidencial, que Bolsonaro só teve graças à ditadura. 
A continuidade do tribunal militar de índole ditatorial, quando a imprensa temia soar como provocadora e revanchista, protegeu o julgamento do tenente terrorista com um silêncio que mais tarde não haveria. Nem, portanto, a impunidade premiada.
Além dos restos de 21 anos anticivilizatórios, imagens de Jair Bolsonaro são lembranças diárias daquela desgraça nacional. A ordem de comemorações é só provocação redundante.

Empresas também cometem crimes, Paulo Feldman, FSP

Governos devem fiscalizar investimentos sociais

O professor de economia da USP Paulo Feldmann discursa no seminário "O Futuro do Emprego e o Emprego do Futuro" - Reinaldo Canato - 30.nov.18/Folhapress
Paulo Feldmann
Existe uma falsa ideia de que a criminalidade seja algo restrito ao âmbito de pessoas físicas, o que faz com que as empresas raramente sejam consideradas criminosas. Mas, quando se verifica o dano causado por algumas delas, conclui-se que estas agiram de forma criminosa, principalmente quando sabemos que poderiam ter previsto a ocorrência do dano e nada fizeram para evitá-lo.

Não estamos falando apenas da Vale e de sua inação nos casos de Mariana e Brumadinho. Este exemplo talvez seja o pior porque ceifou inúmeras vidas. Mas há outros, como o caso das empresas que construíram o Metrô do Rio de Janeiro: recentemente veio à tona que os cariocas pagaram muitos bilhões de reais a mais pelas obras em função dos acertos que as empreiteiras faziam entre si. Uma dessas empreiteiras, a Odebrecht, está sendo processada judicialmente no Brasil no exterior.

A Petrobras agora se coloca como vítima, mas é claro que poderia ter evitado a farra do pré-sal, feita por empreiteiras e  políticos corruptos. Até que ponto ela não facilitou a vida daqueles que se locupletaram com seus recursos? Aliás, nossos recursos.

A JBS reconheceu publicamente que subornou diversos governantes e parlamentares. O que essas companhias têm em comum além do fato de estarem entre as dez maiores empresas brasileiras? Todas elas se declaram ser socialmente responsáveis e fazem pesados investimentos em marketing usando esse mote.

Há cerca de 30 anos, Milton Friedman, prêmio Nobel de economia de 1976, dizia que empresas existem para dar lucro. Ele julgava uma insanidade alguém imaginar que elas deveriam fazer investimentos sociais.
 
Friedman combateu a filosofia da “Responsabilidade Social Corporativa” desde o seu nascedouro. É sua a frase de que “não existe almoço grátis”.  Ele resumia dizendo que a função social da empresa é dar lucro —e, de preferência, cada vez maior.

Acreditar que as empresas fariam investimentos sociais por conta e risco é provavelmente uma das razões para que os governos tenham cruzado os braços em algumas das graves situações mencionadas acima.
 
Se houvesse fiscalização séria no nosso país, quase tudo poderia ter sido evitado. Mas, infelizmente, não há; e muito menos punição severa.

Claro que o problema não acontece apenas no Brasil; mas, lá fora, as punições são muito mais frequentes. Não se pode esquecer que a maior empresa de consultoria e auditoria, a Artur Andersen, fechou as portas, assim como a Enron uma das maiores petroleiras do planeta.

O fato é que, para essas empresas, o envolvimento social tem sido muito mais um instrumento de marketing que uma contribuição efetiva para o bem da sociedade. Para reverter essa situação urge que o Estado adote uma nova posição, regulamentando com firmeza os setores e as atividades onde há risco de infrações. E, principalmente, fiscalizar e punir de forma implacável os infratores.
Paulo Feldmann
Professor de economia da USP, ex-presidente da Eletropaulo (1995-96, governo Covas) e sócio da EY (antiga Ernst & Young)

OPINIÃO JOSÉ CARLOS DIAS, MARIA RITA KEHL, PAULO SÉRGIO PINHEIRO, PEDRO DALLARI E ROSA CARDOSO Do golpe de 1964 à ditadura

Regime cometeu crimes contra a humanidade

Tanques do Exército na avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro, em 31 de março de 1964 - Divulgação/Arquivo Nacional
José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso
O golpe militar de 1964 que depôs o presidente João Goulart, foi violação deliberada e ilegal das regras constitucionais, apoderando-se dos órgãos e do poder político.
 
Apesar de se revestir de discurso dissimulador em defesa da democracia, o regime que emergiu do golpe de estado foi seu maior violador. 

O novo poder nem esperou sua formalização pelo Congresso Nacional para iniciar onda repressiva depuradora. Eliminadas as garantias constitucionais, mandatos políticos foram cassados, direitos políticos foram suspensos.

Logo no dia 1º de abril, os diversos comandos militares procederam a centenas de prisões. Perseguição violenta se abateu sobre indivíduos e organizações identificados com o governo anterior. Sete em cada dez confederações de trabalhadores e sindicatos tiveram suas diretorias depostas. Nos dias seguintes ao golpe, prenderam-se milhares de cidadãos, e a ocorrência de brutalidades e torturas foi comum.

Durante 21 anos os brasileiros estiveram submetidos a governos militares autoritários, sob cinco presidentes generais escolhidos pelo Alto Comando das Forças Armadas. Em seguida indiretamente “eleitos” por um Congresso manietado por cassações e obrigado sempre a escolher o general de Exército indicado. Nunca na República o país tivera tanto poder discricionário concentrado nas mãos de um chefe no vértice do Estado. 

Criou-se um ordenamento legal que permitia o controle da atividade política tolerada. Aperfeiçoou-se um sistema repressor complexo, que permeava as estruturas administrativas do poder público e exercia uma vigilância permanente sobre sindicatos, organizações profissionais, igrejas, partidos. Burocratas censuravam, intimidavam ou proibiam manifestações de opiniões e expressões culturais percebidas como hostis ao governo.

A repressão, eliminação de opositores políticos e graves violações de direitos humanos perpetradas durante 21 anos pelo regime instaurado pelo golpe de 1964 foram resultado de uma ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro.

Converteram-se em política de Estado, concebida e implementada a partir de decisões emanadas da Presidência da República e dos ministérios militares. Operacionalizada através de cadeias de comando, mobilizou agentes públicos em um contexto generalizado e sistemático de ataque do Estado contra a população civil. A tortura, sistematicamente empregada pelo Estado brasileiro desde o golpe de 1964, constituía peça fundamental do aparelho de repressão montado pelo regime. Tornou-se instrumento de poder e de preservação do governo, com destinação de recursos, ocupação de espaços e uso de pessoal próprio.

É fato documentado que entre o golpe de 1964 e 1985 prevaleceu no Brasil regime de exceção que torturou, matou e “fez desaparecer” milhares de pessoas —dentre elas, estudantes, militantes políticos e sindicalistas. Embora o número não seja definitivo, foram plenamente identificados 434 casos de mortes e desaparecimentos sob responsabilidade do Estado brasileiro, reconhecida por lei em 1985. 

Essa prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias e tortura, desaparecimentos forçados, execuções e ocultação de cadáveres que se abateu sobre milhares de brasileiros caracterizam o cometimento de crimes contra a humanidade. 

Por essas razões, exaustivamente documentadas pela Comissão Nacional da Verdade, instituída por lei e cujo relatório é a versão oficial do Estado brasileiro sobre o regime militar, o golpe de estado de 1964 e o regime que instaurou, são incompatíveis com os princípios da Constituição de 1988 que regem hoje o Estado democrático de direito. 

Comemorar o golpe de 1964 significa celebrar as graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade a partir deles perpetrados, e até hoje impunes, implicando intolerável apologia da violência. 
José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso
Ex-integrantes da Comissão Nacional da Verdade (CNV)