domingo, 24 de março de 2019

Em uma década, judicialização da saúde pública e privada cresce 130%, FSP

Estudo inédito mostra perfil dos processos; em SP, demandas contra planos de saúde lideram

Cláudia Collucci
SÃO PAULO
O número de ações judiciais relativas à saúde no Brasil aumentou 130% entre 2008 e 2017, um crescimento muito mais rápido que o observado no volume total de processos (50%).
No período, o volume de ações em primeira instância pulou de 41.453 para 95.752, totalizando quase 500 mil processos. Em segunda instância, foi de 2.969 para 40.658, somando quase 270 mil.
São demandas contra o SUS e contra planos de saúde que requerem de novos remédios e procedimentos de alta complexidade a coisas básicas, como leitos hospitalares, consultas e medicamentos.
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Os dados são de um estudo nacional inédito sobre a judicialização da saúde realizado pelo Insper, sob encomenda do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), e divulgado nesta segunda (18) em um seminário no Hospital Sírio-Libanês.
Além de mostrar o crescimento de processos, o trabalho revelou diferenças regionais da judicialização de segunda instância. Na região norte, os pedidos por leitos estão presentes em 75,2% das demandas (uma única ação pode envolver vários itens). Já no sudeste, esse pleito foi responsável por 36,7% das ações.
"O Brasil é diferente na judicialização da saúde. Há vários tipos, com perfis e efeitos distintos. Há necessidade de políticas apropriadas para cada um desses problemas", diz Paulo Furquim, professor do Insper e um dos coordenadores do estudo.
Presente no evento, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse que, no SUS, há judicialização "de acesso pontual a medicamentos que estão na rede nacional, e de uma quantidade enorme de pequenas cirurgias, que são frutos da desorganização do sistema, da falta de informatização e do subfinanciamento".
Porém, segundo ele, a judicialização que mais preocupa é a que busca a incorporação de novos insumos e tecnologias. O ministro afirma que uma das saídas encontradas será o compartilhamento de risco com a indústria.
Ou seja, o laboratório precisa comprovar a eficácia do remédio distribuído à população, sob risco de ter de devolver o recurso aos cofres públicos. Na Itália, por exemplo, 65% das decisões utilizam dessa estratégia.
Em relação às demandas judiciais contra o SUS, medicamentos aparecem em 73,8% dos casos. Os importados respondem por 11% deles.
Para o ministro Dias Toffoli, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), é importante encontrar saídas para minorar a participação da Justiça na resolução de conflitos ligados à saúde.
"Os magistrados não podem administrar o orçamento das empresas de saúde," afirmou ele durante o evento.
Toffoli, que também preside o CNJ, disse que o conselho tem ações para monitoramento e para a resolução de demandas na área.
Em uma delas, feita em parceria com os hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês, um núcleo (eNAT-Jus) fornece pareceres técnicos para dar apoio às decisões sobre questões de fornecimento de medicamentos, procedimentos e tratamentos médicos.
"O objetivo é dar ao juiz os subsídios para que ele possa decidir, com base na melhor evidencia científica, se aquele pedido faz sentido, se o paciente vai se beneficiar", diz Luiz Fernando Reis, diretor de ensino e pesquisa do Sírio.
Para o pesquisador Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, há casos em que a judicialização prejudica o paciente.
"O juiz considera demais a prescrição médica na decisão. Muitas vezes, por conflitos de interesse ou não, o médico pode estar com uma conduta equivocada em relação ao melhor tratamento ao paciente e isso, sem órgãos de filtragem, pode ser perigoso."
Porém, há muitas ações pedindo produtos ou serviços que deveriam estar disponíveis à população. No Pará, por exemplo, a maior parte da judicialização por medicamentos se refere a remédios que estão na lista do SUS.
Esse tipo de demanda é diferente da observada frequentemente em São Paulo, em que pacientes muitas vezes solicitam procedimentos ou medicamentos não previstos no SUS ou pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar.
No estado de São Paulo, 82% dos processos (116.518) se referem a planos de saúde. "Isso indica que o sistema privado está muito mal regulado ou que não entrega o que promete ou ainda que o usuário é mais brigão, tem mais cidadania e vai buscar seus direitos", diz Fernando Aith.
A pesquisa também mostra que apenas 2,3% das ações são coletivas, de um total de 13% do total que tratam de temas coletivos, o que revela que a judicialização da saúde se dá muito mais pela via individual do que pela coletiva.
Em casos de segunda instância, há maior predomínio de ações coletivas na região Norte, sobretudo no Pará (25,6%) e Roraima (18%), e menor no Sul e no Sudeste (no Rio Grande do Sul, de apenas 0,44% e em São Paulo, de 2,8%).
O estudo também analisou o conteúdo das decisões de antecipação de tutela (liminares). No SUS, pede-se mais medicamentos. Já na saúde suplementar, são as dietas, insumos ou materiais, leitos e procedimentos.
Erramos: o texto foi alterado
Uma versão anterior do texto citava incorretamente o índice de ações judiciais coletivas relativas à saúde em segunda instância em Roraima. O correto é 18%. O texto já foi corrigido.
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comentários

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NACIB HETTI

19.mar.2019 às 10h38
As agências reguladores foram criadas na fase das privatizações, com o objetivo de proteger o consumidor. Só que elas foram aparelhadas, no governo petista, com representantes dos prestadores de serviços. O resultado está aí.

HEITOR VIEIRA DE RESENDE

19.mar.2019 às 10h18
Médico no interior de SP, vejo pessoas de classe média recorrer à Justiça para obter um remédio de marca, disponível no SUS como genérico. Alguns deles nem mesmo caros são. Pacientes saudáveis de convênios consultam 3 especialistas numa só manhã, os quais solicitam toda a parafernãlia de exames de suas especialidades ( 95% negativas). O número de faltas de clientes do SUS às consultas agendadas nos AMEs é grande. Enfim, o caos.

Nossos monstros, Daniel Martins de Barros, O Estado de S.Paulo

Nossos monstros

Casos como o da boneca Momo só nos assustam porque damos atenção

Daniel Martins de Barros, O Estado de S.Paulo
24 de março de 2019 | 05h00
Os monstros alimentam-se de atenção. Quanto mais nos focamos neles, mais aterrorizados ficamos - seu poder sobre nós aumenta. Por outro lado, qual a influência em nossas vidas dos monstros que ignoramos? Nenhuma. O poder que eles têm depende de nós. Isso vale tanto para os monstros imaginários quanto para os reais.
Vejamos o caso da tal boneca Momo. Nos últimos dias, espalhou-se novamente o boato de que ela estava de volta para aterrorizar nossas crianças. Segundo a lenda - já se pode chamar essa história de lenda urbana -, em meio a vídeos exibidos no YouTube Kids, a imagem horrorosa apareceria mandando as crianças se cortarem. 
Nossos monstros
Daniel Martins de Barros.  Foto: Hélvio Romero
Foi um desespero. Grupos de WhatsApp em polvorosa, pais e mães desesperados, especialistas ensinando a falar com os filhos sobre o assunto. Detalhe: os vídeos nunca foram achados. ONGs de segurança infantil na rede não localizaram os links, a polícia procurou e não achou, Google e YouTube foram chamados a apresentar as imagens e não conseguiram. Ainda assim haverá leitores me xingando por não acreditar na Momo.
Assim como na lenda da Baleia Azul, esses casos só nos assustam porque damos atenção. Há pouco tempo, os pais deixavam os filhos com seus celulares e relaxavam, mas logo ficaram inquietos ao se darem conta dos perigos da tela não vigiada. A tranquilidade parecia ter voltado aos lares com os algoritmos que filtram automaticamente conteúdos impróprios. Mas eis que surge a Momo e nos acusam novamente de negligência. Daí o desespero.
Se nós entendêssemos que o mundo virtual é como o mundo real, não deixaríamos as crianças pequenas andarem sozinhas por ele. Estaríamos de olho no conteúdo que consomem e, quando surgisse um monstro, ele não teria poder, pois não alteraria nossa rotina. Mas dar atenção a uma criança real é mais trabalhoso do que a um monstro imaginário. Muitos monstros reais também extraem de nós mesmos sua energia.
A cobertura da tragédia em Suzano é o tipo de atenção que faz os monstros reais ganharem força. A veiculação em massa das imagens aumenta o alcance do sofrimento e do medo, afetando a vida de pessoas que não seriam tocadas pela tragédia - a maioria da população. Como se não bastasse, as repetimos em looping, ampliando a intensidade do mal que podem fazer. E tudo isso sem qualquer ganho - noticiar tais eventos não alivia a dor de ninguém, não traz mortos de volta, não ajuda a prender assassinos nem a prevenir novos casos.
E aqui entra a parte mais perigosa. Esses crimes, via de regra, são modalidades de suicídio. E já se sabe que dar detalhes, mostrar métodos, especular sobre as motivações, fazer alarde, tudo isso aumenta a chance de novos casos. Sim, leitor: tudo que não se deve fazer em casos de suicídio nós temos feito quando ele é antecedido por homicídios. E estimulamos novos casos.
Mas não é só. Esses crimes têm um componente importante de espetáculo. Há uma rede de incentivo para eles, na qual se exalta a mensagem que transmitem. Sua cobertura intensiva, portanto, aumenta a chance de novas ocorrências, pois amplia o alcance da mensagem macabra. Ao darmos palco para seus autores, dando-lhes destaque na TV, nas rádios, nos jornais, fazemos exatamente o que eles querem que aconteça. E também estimulamos novos casos.
Ouso propor um desafio. Lancemos uma diretriz antes que outro massacre ocorra. Nela, nos comprometemos a não alimentar monstros reais com nossa atenção. Não mostraremos seus rostos. Não diremos seus nomes. Não divulgaremos suas cartas. Recusamos a contribuir para o sofrimento que eles causam. Todos os veículos que quisessem poderiam manifestar sua adesão.
Assim, esses criminosos perderiam um incentivo para agir, outros suicidas potenciais não seriam contagiados, e o público descobriria quem prioriza vidas ou vendas.
*DANIEL MARTINS DE BARROS É PSIQUIATRA