domingo, 24 de março de 2019

Rasputin à brasileira, Cristovão Trezza, FSP

Olavo de Carvalho replica o modelo da eminência parda, mas não à risca

Quem acompanhou a brigalhada em torno do butim fundamentalista do MEC, comandada a controle remoto por um furibundo Olavo de Carvalho, deve ter se perguntado qual o sentido daquilo.
Acabo de ler um livro que trata justamente de um caso que é um modelo das eminências pardas, o russo Grigóri Iefimovitch Rasputin (1869-1916): "Raspútin - Fé, Poder e o Declínio dos Románov", do pesquisador americano Douglas Smith (Companhia das Letras; trad. de Berilo Vargas).
Rasputin é uma figura inacreditável, cuja vida suscitou as mais estapafúrdias teorias conspiratórias. Filho de camponeses de um rincão da Sibéria, tornou-se um "stárets", uma espécie de guia espiritual popular da velha Rússia, nascido diretamente da fé medieval, à margem das religiões oficiais.
É o "louco santo", andarilho que vai de vilarejo a vilarejo fazendo premonições e pequenos milagres. Em pouco tempo, Rasputin ganha adeptos, e com eles vêm as acusações de heresia, abuso de mulheres, orgias satânicas e vigarice pura e simples.
Ilustração de Vânia Medeiros para Cristóvão Tezza de 24.mar.2019.
Vânia Medeiros
Na outra ponta do império, na sofisticada São Petersburgo, está o czar Nicolau 2º (1868-1918). Consta que, ao saber que assumiria o poder, teria dito, em pânico: "o que será de mim e da Rússia?".
Era uma boa pergunta: seu governo foi uma sequência granítica de desastres que culminaram com a queda da monarquia e a implosão de 1917. Casado com a imperatriz Alexandra, tiveram quatro filhas, mas faltava um herdeiro homem.
Nesse momento, surge um misterioso francês, monsieur Philippe, a quem nenhuma instituição concedeu um diploma, mas que atraía filas de pacientes, tratados com "fluidos psíquicos e forças astrais". Famoso na França como charlatão, acabou amigo do poderoso casal russo e, antes de morrer, garantiu que o próximo filho do czar seria homem.
O pensamento mágico se reforça na casa Románov quando nasce afinal um herdeiro homem, o "czarevich" Alexei. Mas se descobre que ele é hemofílico, doença contra a qual a ciência da época não sabia o que fazer. É nesse ponto que Rasputin e a Idade Média russa se encontram com a alta aristocracia.
O simplório camponês de barba desalinhada, olhar magnético e roupas clericais, pela inexplicável capacidade de acalmar as crises de hemorragia do jovem herdeiro, torna-se durante uma década o homem mais poderoso da Rússia, capaz de dar palpites militares, sugerir políticas sociais e fazer e desfazer ministros, às vezes por meio de simples bilhetes cheios de erros, rabiscados ao czar ou à czarina, lidos sempre com reverência e fervor religioso impressionantes.
A Rússia inteira falava de Rasputin, em manchetes escandalosas diárias. Diziam que era agente da esquerda ou da direita. Panfletos denunciavam desde supostas vinculações satânicas de Rasputin até traições germanófilas; era assunto dos informes secretos das chancelarias da Inglaterra, da França, da Alemanha, todos atrás do segredo de sua influência.
Sátiras e lendas faziam dele o pai de Alexei e amante da czarina. Uma charge distribuída aos soldados durante a Primeira Guerra mostrava o kaiser alemão medindo o tamanho de um projétil, ao lado do czar, ajoelhado, medindo o pênis de Rasputin. Quem quer que sugerisse ao czar ou à czarina o afastamento do conselheiro (e foram uma legião) entrava em desgraça.
Ao mesmo tempo, o "stárets" era o homem mais vigiado do império pela Okhrana, a polícia secreta da época, e milhares de relatórios cobriram praticamente cada minuto de sua vida nos últimos anos. Maquinações febris e malucas de ministros e autoridades articulavam-se para acabar com Rasputin, enquanto o império afundava.
Em dezembro de 1916, o "diabo santo" foi enfim assassinado a tiros por um complô liderado pelo príncipe Félix Iussúpov, um dos nobres mais ricos e excêntricos da Rússia. O crime, recebido com uma histeria de júbilo pelo país inteiro, renderia interpretações inesgotáveis. Dois meses depois, caiu a monarquia, como havia previsto o próprio Rasputin.
Em seu monumental trabalho de historiografia, Douglas Smith, que teve acesso a documentos só há pouco tempo liberados na Rússia, separa ponto a ponto a lenda dos fatos e nos dá uma imagem bastante nítida do fenômeno Rasputin. É um paradigma de eminência parda, mas não exageremos.
Enquanto o filósofo do governo brasileiro humilha publicamente a Presidência com recados furiosos, boçais e grosseiros, seguindo a norma política da estupidez permanente, Rasputin, sob a mística da monarquia, respeitava profundamente o czar, mesmo quando este não seguia seus conselhos, e jamais sussurrou uma vírgula contra ele.
Cristovão Tezza
Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

Reinaldo José Lopes - Sem árvores, o Brasil torra, FSP

Com mais desmatamento, país pode ficar 1,5°C mais quente até 2050

“O som selvagem da motosserra nunca silencia onde quer que árvores ainda sejam encontradas crescendo”, escreveu J.R.R. Tolkien, o filólogo e autor de “O Senhor dos Anéis”, em carta datada de 30 de junho de 1972, no ano interior à sua morte. Nisso, e ao classificar as máquinas que queimam combustíveis fósseis de “motores de combustão inferna” (um trocadilho com “interna”), o criador dos hobbits ainda é uma voz profética. Afinal, é bem possível que o tal som selvagem nos carregue um pouquinho mais para perto do Inferno nos próximos 30 anos.
Chame-me de alarmista se assim o desejar, gentil leitor, mas um estudo publicado na semana que passou por cientistas brasileiros aponta justamente nessa direção calorosa (no mau sentido). Ao analisar como o desmatamento tem afetado o clima local no Brasil e no mundo, eles calculam que uma derrubada sem freios pode aumentar a temperatura média do país em 1,45°C até 2050. Como já disse aquele sábio do jornalismo esportivo, 2050 é logo ali, amigo.
Repare que eu disse “clima local” ali em cima. A análise, que está na revista científica de acesso livre Plos One, levou em conta não a quantidade de gases causadores do aquecimento global emitidos pelo desmatamento —algo que vai para a atmosfera e acaba afetando a temperatura média do mundo todo, em certa medida. No lugar disso, o estudo considera as mudanças climáticas de pequena escala geradas quando uma área antes florestada perde sua cobertura de árvores.
A equipe do estudo, que inclui Gisele Winck, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e Jayme Prevedello, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), explica didaticamente que o efeito climático local das florestas depende principalmente de duas variáveis.
A primeira é o albedo –grosso modo, uma medida de quanto o solo reflete ou absorve a luz. A folhagem escura das florestas corresponde a um albedo relativamente baixo, que absorve a radiação solar e, portanto, tende a esquentar.
Entretanto, é preciso a considerar a segunda variável, a evapotranspiração –grosso modo, a maneira como as florestas “suam”. E, nesse caso, a seta aponta para o outro lado: ao transpirar, as florestas refrescam mais a superfície da Terra do que a vegetação mais aberta, como pastagens.
Com esses princípios em mente e com dados sobre cobertura florestal e clima no mundo todo, Winck, Prevedello e seus colegas se puseram a fazer as contas. Acabaram concluindo que a presença de florestas tem efeitos variados dependendo da região do mundo onde se encontram.
Nas regiões tropicais e, em menor grau, nas zonas temperadas, florestas tendem a ter um efeito local de ar-condicionado, diminuindo a temperatura. Perto dos polos, a situação se inverte – basicamente porque, quando não há a folhagem escura da mata, temos chão coberto por neve, que tem um albedo elevado – o branco, afinal de contas, reflete toda a luz solar.
Bem, como você sabe, moramos num país tropical (a parte do “abençoado por Deus e bonito por natureza” tem ficado menos verossímil). Pelos cálculos da equipe, se o desmatamento não for controlado com seriedade, enfrentaremos o calorzinho nada agradável descrito acima daqui a 30 anos. Parece-me uma razão mais do que suficiente para botar uma focinheira nas motosserras selvagens.
Reinaldo José Lopes
Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Restaurante de shopping representa o fracasso da humanidade, Marcos Nogueira, FSP


Duas considerações sobre o lamentável episódio das crianças barradas na exposição do Mickey em um shopping de São Paulo
1. Baita ideia de jerico da prefeitura de Guaratinguetá. Premiar alunos carentes com visita ao playground dos ricos paulistanos é um atestado de falta de noção.
2. Graças ao incidente, as crianças tiveram uma experiência pedagógica preciosa. Saíram de casa para se divertir com o ratinho da Disney e deixaram a inocência nos bueiros da Vila Olímpia. Voltaram para casa cientes de sua posição na sociedade.
Todo shopping center é um mausoléu da civilização. O JK Iguatemi, em particular, se parece com uma tumba gigante. Um caixote de pedra branca e corredores frios, onde só falta a inscrição em baixo-relevo para avisar às gerações vindouras: “Gente, deu merda.”
O mais bizarro é que um dos pontos altos da excursão era o lanche na praça de alimentação. Qual o sentido de viajar 200 quilômetros para comer fritura e açúcar embalados no papelão com propaganda infantil?
Comer em shopping deveria ser uma conveniência. Algo como a barraca de pastel das feira: você foi fazer compras, bateu fome, a comida está ali ao lado… Virou o programa das famílias, casais e grupos de amigos que consideram o mundo aqui fora perigoso demais.
O shopping é um gueto invertido. Para evitar o convívio com os indesejáveis, a elite se tranca voluntariamente em gaiolas de luxo. Abre mão da própria liberdade para não se imiscuir.
O setor da alimentação percebeu a aversão dos abonados às calçadas, seus pombos e seus pedintes. Cada vez mais restaurantes abrem em shopping centers.
Jantar neles é uma experiência singular. Você entrega o carro blindado ao valet e caminha brevemente por uma galeria que poderia estar em Dubai ou na Flórida.
Aí entra a mágica dos arquitetos: o ambiente do restaurante é projetado para dar a ilusão de que não se está num shopping. Um simulacro de restaurante de rua, sendo que a rua real está a poucos passos dali. Demencial.
A bolha de brilho e glamour tem suas imperfeições. Uma é a lei, que garante o acesso público aos centros de compra. Outra falha é inerente ao capitalismo: é preciso faturar, e não é mole faturar com um modelo de luxo puro-sangue.
Assim, surgem as praças de alimentação. Para lá se dirige, na hora do almoço e na happy hour, a massa de recepcionistas, secretárias, contadores, cabeleireiros, motoristas, manicures e outros tipos pouco fulgurantes. Às vezes, vêm até umas excursões de escolas do interior.
Enquanto os ricos tentam fugir do povão, o povão quer sonhar com coisas que nunca vai poder comprar. Comer batata frita enquanto observa as madames engaioladas.
Para os pobres, shopping center é um zoológico de gente rica.
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