sábado, 9 de março de 2019

Bolsonaro carnavalizado, FSP

Um tuíte desastrado pode derrubar um governo?

O presidente teria feito melhor se, como no samba clássico "Camisa Amarela", de Ary Barroso, tivesse bebido um copo d'água com bicarbonato. Ou mesmo desaparecido no turbilhão da galeria.
Carnaval e poder não dão rima. Meu amigo Luiz Antonio Simas, o historiador das "coisas miudinhas", costuma lembrar dois episódios. Em 1892 o marechal Floriano decretou a transferência da folia para junho, argumentando que o verão era propício a epidemias; naquele ano, brincou-se duas vezes. Em 1912 o marechal Hermes da Fonseca mandou adiar a festa para que não coincidisse com o luto pela morte do barão do Rio Branco; foi pomposamente ignorado.
 
"Bolsonaro tuíta um vídeo obsceno de Carnaval e provoca polêmica no Brasil", diz o jornal espanhol El País
'Bolsonaro tuíta um vídeo obsceno de Carnaval e provoca polêmica no Brasil', diz o jornal espanhol El País - Reprodução
Bolsonaro levou uma lavada nas ruas. O bonecão com suas feições, mil vezes alvejado por latas de cerveja e pedras de gelo, teve de contratar segurança para descer as ladeiras de Olinda. Nos blocos, nunca antes na história deste país se viu tanta gente fantasiada de laranja. Ou bebendo água em mamadeiras com formato de pênis (fiquei sabendo que um acadêmico já está preparando a tese "A Carnavalização das Fake News"). Registre-se ainda o coro "Ei, Bolsonaro, VTNC", cantado de norte a sul.
Com enredo de crítica social e em homenagem à vereadora Marielle Franco, a Mangueira mostrou que o samba não se rebaixa. Uma alegoria, em especial, desagradou o presidente: o livro aberto com a frase "Ditadura assassina" escrita em caixa alta.
Bastou para que a Terça Gorda, para Bolsonaro, se transformasse num dia de fúria. Esqueceu que agora é o presidente, voltou aos tempos em que se contentava em atuar como deputado do baixo clero e correu destrambelhado para as redes sociais. Para atacar o Carnaval, cometeu o tuíte pornô, desviando de novo a discussão para a pauta de costumes. Milhões de brasileiros ainda caem nessa. Resta saber até quando.
Uma tuitada pode derrubar um governo? Aguarde as próximas lambanças.
Alvaro Costa e Silva
Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

sexta-feira, 8 de março de 2019

Existe uma solução para o 'burnout' da geração millennial?, FSP



Indivíduos suscetíveis ao esgotamento físico e mental são encorajados a exercitar a resiliência - mas será a solução?
Indivíduos suscetíveis ao esgotamento físico e mental são encorajados a exercitar a resiliência - mas será a solução? - Getty Images

Descrição de chapéuBBC News Brasil
RAJVINDER SAMRA
Em um artigo popular do site BuzzFeed, Anne Helen Petersen descreve como os millennials (pessoas nascidas entre 1981 e 1996) se tornaram a "geração do 'burnout'".
Ela se refere a algumas consequências gritantes do avanço do esgotamento físico e mental e identifica o que chama de "paralisia das incumbências", caracterizada pela dificuldade de realizar tarefas simples ou cotidianas.
Muitos fatores que contribuem para esse esgotamento estão enraizados nos desafios do mercado de trabalho e da situação econômica que os millennials enfrentam, de acordo com Petersen.
Ela também cita o que chama de "criação intensiva" como um fator determinante, uma vez que os millennials foram educados e preparados sem trégua pelos pais para o mercado de trabalho. Eles internalizaram a ideia de que precisam estar trabalhando o tempo todo ou mergulhar na incessante busca do "auto-aperfeiçoamento".

A competição e comparação social, incentivadas pelas redes sociais, podem contribuir para a sensação de 'burnout'
A competição e comparação social, incentivadas pelas redes sociais, podem contribuir para a sensação de 'burnout' - Getty Images

SEMELHANTE AO 'BURNOUT' PROFISSIONAL

O burnout da geração millennial tem muitas semelhanças com o burnout comum, também conhecido como síndrome do esgotamento profissional. É uma resposta ao estresse prolongado e normalmente envolve esgotamento emocional, cinismo ou desinteresse e sensação de ineficiência.
Os seis principais fatores de risco para o esgotamento profissional são a sobrecarga de trabalho, o controle limitado, a falta de recompensas, situações de injustiça, conflito de valores e a falta de senso de comunidade no ambiente de trabalho.
Indivíduos que precisam navegar em ambientes complexos, contraditórios e às vezes hostis são vulneráveis ao esgotamento. Se os millennials estão apresentando índices mais altos de burnout, isso pode indicar que eles enfrentam ambientes mais problemáticos.
É basicamente o que estressa todo mundo, mas está ocorrendo de maneira nova, inesperada ou até mais intensa com os millennials, e não estamos prestando atenção.
Sabemos, por exemplo, que a comparação social tem influência no burnout profissional. Para a geração millennial, a competição social e a comparação são continuamente reforçadas online, o que já se mostrou associado a sintomas de depressão entre os jovens.
Mesmo que você evite as redes sociais, estar conectado pode ser fisicamente e emocionalmente desgastante.
Essas são apenas algumas maneiras pelas quais os millennials estão cada vez mais expostos aos mesmos fatores de estresse que podem afetar negativamente os profissionais no ambiente de trabalho.
Sabemos muito pouco sobre como os millennials lidam com o burnout. Pesquisas iniciais indicam que há diferenças geracionais. Especificamente, a geração millennial responde à exaustão emocional (geralmente o primeiro estágio do esgotamento) de maneira diferente dos baby boomers (pessoas nascidas entre 1946 e 1964).
Quando se sentem emocionalmente esgotados, os millennials são mais propensos a ficar insatisfeitos e a querer deixar o emprego em comparação com os baby boomers.
As pesquisas sobre burnout apontam que ambientes complexos e fatores de pressão, aliados a altas expectativas, criam as condições para a síndrome do esgotamento profissional. O mesmo pode ser dito em relação ao esgotamento dos millennials, que se baseia em noções semelhantes de perfeccionismo que trazem mais risco de esgotamento.

RESILIÊNCIA COMO PROTEÇÃO

Uma abordagem recente para combater o esgotamento profissional é treinar as pessoas para serem mais resilientes. Esse tratamento é baseado na suposição de que indivíduos altamente competentes podem aprimorar seus métodos de trabalho para evitar o esgotamento.
No entanto, como argumentei recentemente em um editorial da revista científica BMJ, profissionais muito competentes, psicologicamente saudáveis e aparentemente resilientes são mais suscetíveis ao burnout.

Controladores de tráfego aéreo e millennials enfrentam tensões semelhantes
Controladores de tráfego aéreo e millennials enfrentam tensões semelhantes - Getty Images
Parece contraditório, mas um dos primeiros estudos sobre burnout no ambiente de trabalho mostrou que os profissionais mais felizes, menos ansiosos e mais capazes de aliviar o estresse eram mais propensos a apresentar esgotamento do que os participantes do grupo de controle que não tinham essas características.
Este estudo, que acabou esquecido, envolveu controladores de tráfego aéreo nos EUA na década de 1970 - mais de 400 deles foram monitorados por três anos. A maioria (99%) havia servido nas Forças Armadas, portanto, é de se esperar que tivessem experiência com situações de estresse extremo e, provavelmente, desenvolvido resiliência.
A pesquisa revela algumas condições para desenvolvimento do burnout dentro de um grupo aparentemente funcional e resiliente. O trabalho deles estava se tornando cada vez mais complexo, com novas tecnologias sendo introduzidas e sem o treinamento necessário para usá-las. Eles trabalhavam em um ambiente precário - em turnos longos e sem intervalos. As escalas eram desafiadoras e imprevisíveis.
Essa descrição soa provavelmente muito familiar à geração millennial e a qualquer pessoa que trabalhe na chamada "gig economy" - baseada em trabalhos temporários e sem vínculo empregatício.

EFEITO OPOSTO

A abordagem recente de treinar profissionais para evitar o burnout, encorajando-os a serem mais resilientes, pode acabar se tornando outro fator de estresse, pressão ou expectativa elevada. É possível que aumente o risco de esgotamento, especialmente entre os perfeccionistas autocríticos.
O que podemos aprender com o avanço do burnout é que o mercado de trabalho está se tornando rapidamente e incrivelmente mais difícil e complexo. Isso está levando a níveis mais altos de esgotamento em muitas profissões e trabalhos informais.
A solução passa por simplificar ambientes pessoais e de trabalho complexos, contraditórios e hostis, em vez de nos dar a tarefa de treinar para ser mais resistentes a esses ambientes.
*Este artigo, de autoria de Rajvinder Samra, professora de saúde da Open Universit, foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado na BBC News Brasil sob uma licença Creative Commons
BBC NEWS BRASIL

A história apresenta a conta, FSP

As façanhas do passado são vistas hoje com outros olhos

Em 1900, na festa dos 400 anos da descoberta do Brasil, o Rio iria inaugurar, no largo da Glória, seu monumento a Pedro Álvares Cabral. A estátua, de Rodolpho Bernardelli, tinha um pedestal de 10 m de altura. Sobre este, desfraldando a bandeira portuguesa, um Cabral de 3,5 m, secundado por Pero Vaz de Caminha, nosso primeiro historiador, e frei Henrique, celebrante da primeira missa. Tudo coberto pelo véu a ser descerrado pelo presidente da República, Campos Salles, quando este proferisse a frase “Viva a pátria brasileira!” e puxasse o cordão.
Pois foi o que Campos Salles fez. Proferiu, puxou o cordão —e nada. O véu não se mexeu. Proferiu de novo, puxou —e, mais uma vez, neca. Tentativas seguintes de proferir e puxar resultaram debalde. Vexame total. Campos Salles, furioso; o embaixador português, a ponto de se retirar; a comissão da estátua, saindo de fininho.
A estátua em homenagem ao bandeirante Borba Gato
A estátua em homenagem ao bandeirante Borba Gato - Eduardo Anizelli/Folhapress
Foi quando alguém na multidão —um homem depois identificado como Martim Francisco de Paula, cearense, soldado— pediu licença. Escalou o pedestal, subiu pelo que deviam ser o Caminha e o Henrique, e desatou o nó que impedia o Cabral de vir a nu. E, então, isso gloriosamente aconteceu. Ovação popular. Campos Salles, com suas mãos enluvadas, bateu discretas palmas silenciosas para aquele brasileiro que lhe salvara o dia, mas lhe roubara o show. Brasileiro —e, por acaso, negro.
A Associação dos 400 Anos, ao descrever o fato, omitiu o detalhe da cor. Por sorte, os jornais o registraram. Hoje, em tempos de revisionismo histórico —vide o vitorioso enredo da Mangueira—, este seria um episódio a explorar no Carnaval: Cabral descobriu o Brasil, mas foi um negro brasileiro que descobriu o Cabral.
O Borba Gato, em São Paulo, e outros monumentos da história oficial que se cuidem. As façanhas que lhes eram atribuídas passaram a ser vistas com outros olhos. A história apresenta a conta.
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.