terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O País do carnaval - ELIANE CANTANHÊDE, OESP


ESTADÃO - 06/02

Os milhões que não vão às ruas por Lula e pela política se esbaldam no carnaval


Dois milhões de brasileiros foram às ruas de São Paulo no sábado e, no domingo, um milhão invadiu a Rua da Consolação, no centro da capital paulista. As fotos são impressionantes e dão muito o que falar e o que pensar. O “povo” não quer só desgraça, o “povo” quer festa e carnaval!

Eles protestavam contra ou a favor da condenação do ex-presidente Lula na Justiça? Ou da ameaça de prisão do maior líder popular do Brasil? Ou seria contra ou a favor do governo Michel Temer? Da reforma da Previdência? Da reforma trabalhista? Da privatização da Eletrobrás ou da combinação da Embraer com a Boeing dos Estados Unidos?

Seria então contra ou a favor da posse da deputada Cristiane Brasil no Ministério do Trabalho? Do auxílio-moradia de juízes, procuradores e parlamentares? Ou da falta de julgamento dos políticos com mandato pelo Supremo?

Ah! Foi por causa do aquecimento global, da crise hídrica, das peripécias de Donald Trump, da implosão da Venezuela? Senão, foi contra o Aedes aegypti, que continua dando um banho nas autoridades brasileiras? Ou diretamente contra as doenças transmissíveis? Num ano, zika, chikungunya, H1N1. No outro, febre amarela. Febre amarela, que se combate com vacina???

Não, nada disso. Milhões de pessoas estão indo às ruas de São Paulo, do Rio, de Salvador, do Recife... para pular o carnaval e mostrar que o Brasil é muito maior do que sua corrupção e seus poderosos. Aliás, uma semana antes de o carnaval começar, como os deputados e senadores, que abriram o Ano Legislativo ontem já com um pé no avião para a folia nos seus Estados ou para uma “folga” numa cidade bem bacana ou em praias paradisíacas.

O fato é que, como a gente sempre fala aqui neste espaço, tem sempre alguém prevendo protestos, quebra-quebras, incêndios e mortes se Dilma Rousseff cair, se mudarem as regras do pré-sal, se o Congresso derrubar as denúncias da PGR contra Temer, se a reforma isso ou aquilo passar, se...

Nada disso aconteceu, nem mesmo quando o TRF-4, de Porto Alegre, não apenas manteve a condenação de Lula como aumentou a pena imposta pelo juiz Sérgio Moro, de 9 anos e meio para 12 anos e 1 mês, pedindo cumprimento de pena após tramitação dos recursos no próprio tribunal. Um punhado de militantes desfilava com suas bandeiras vermelhas, enquanto a Bovespa batia recorde e o dólar caía. Tudo dentro dos conformes.

O presidente do TRF-4 circulou por gabinetes de Brasília, o ministro da Justiça foi a Porto Alegre, o centro da capital gaúcha foi isolado, atiradores de elite foram acionados. Muito ruído por nada. Nem os apoiadores de Lula nem os críticos de Lula queriam guerra nem “mortes”.

O povo brasileiro está cansado de escândalos, de roubos, de crises, de cortes, de todos os partidos embolados numa grande nuvem de confusões. Mas o povo brasileiro nunca se cansa de carnaval.

Aliás, não apenas nos tradicionais Rio, Salvador, Recife, porque o carnaval de rua cresce, ano a ano, em São Paulo e as fotos do Estado de ontem mostram a força não só dos blocos de rua, mas também da alegria e da disposição do brasileiro para a folia, para as festas populares.

Se houve fotos impactantes assim na política foi nas Diretas-Já e em junho de 2013, quando um aumento de centavos nas passagens urbanas detonou um protesto gigantesco, surpreendente, sem lideranças, partidos, alvos diretos. Mas que continua provocando efeito.

Aquela manifestação foi apartidária e um alerta geral aos poderosos. E é altamente improvável que se repita contra a prisão de condenados por corrupção, mesmo que esse condenado seja Lula. O “povo” é anticorrupção e pró-carnaval!

Muito além da corrupção - FABIO GIAMBIAGI, O Globo (definitivo)

O Globo - 06/02

A despesa exceto juros do governo federal passou de 14% do PIB em 1991 para 24% do PIB em 2016, antes de ceder um pouco em 2017


É famosa a frase do jornalista americano Henry Louis Mencken de que “para todo problema complexo, há uma solução que é simples, elegante e errada”. A frase me veio à memória tempos atrás quando estava aguardando o elevador, carregando um livro que discutia por que a economia brasileira crescia tão pouco. Uma pessoa leu o título do livro e comentou: “Por que o Brasil cresce pouco? Ora, é simples: pela corrupção!”.

Não há dúvida de que a corrupção é uma chaga. Ela castiga o país de três formas. Primeiro, pela drenagem de recursos públicos que provoca. Segundo, porque devemos ser um dos países com a maior proporção de pessoas no mundo dedicadas a “esquemas”, sejam municipais, estaduais ou federais, o que é uma distorção alocativa dramática comparativamente às riquezas genuínas que esses indivíduos poderiam gerar caso se dedicassem a atividades legais e produtivas. E terceiro, o que talvez seja o mais grave, pelo efeito moral deletério sobre a cidadania.

Num país normal, as autoridades deveriam dar o exemplo e ser o espelho no qual cada habitante deveria se olhar procurando fazer o melhor para o seu país. No Brasil, porém, quando o indivíduo olha para a realidade que o cerca, é inescapável se lembrar, para quem a conhece, da frase de Rui Barbosa, de que “de tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra; de tanto ver crescer a injustiça; de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

Dito isso, porém, e ressalvados o mal que os problemas desvendados pela Lava-Jato causaram e o papel positivo que a ação da Polícia Federal, do Ministério Público e da Justiça tem tido para construir um país melhor, a ideia de que a causa principal dos males do Brasil é a corrupção é um equívoco. Insisto com três dados que nunca me canso de repetir. O primeiro, que a despesa exceto juros do governo federal passou de 14% do PIB em 1991 para 24% do PIB em 2016, antes de ceder um pouco em 2017. O segundo, que a idade em que as pessoas se aposentam por tempo de contribuição no Brasil é de 53 anos para as mulheres e 55 para os homens. E o terceiro, que a preços de 2018, deflacionada pelo deflator do PIB com uma estimativa para o ano em curso, a despesa do INSS, que foi de R$ 190 bilhões no começo da estabilização, em 1995, será de mais de R$ 580 bilhões em 2018. Mais um dado para informação do leitor: o que se gasta com benefícios assistenciais de um salário mínimo é equivalente a seis vezes o total do investimento do governo federal. Nada disso tem a ver com corrupção, e sim com um país onde muitas pessoas se aposentam cedo, os recursos públicos são pessimamente utilizados e que é pouco propenso a aceitar as regras da competição como algo associado ao sucesso dos indivíduos, das empresas e dos países.

Tomemos um exemplo prosaico. Pensemos no João, um caso de trabalhador comum. Tendo sido um aluno fraco, abandonou há pouco mais de dez anos o ensino médio com notas baixas. Aos 30 anos, não consegue se firmar em empresa alguma e já acumula dois períodos de recebimento do seguro-desemprego durante alguns meses. A essa idade, já tem dois filhos de dois casamentos, e sua atual namorada está esperando o terceiro. O trabalho que fazia já passou a ser feito por máquinas em duas oportunidades. No primeiro caso, porque lançava dados como digitador de informações numa empresa que hoje captura as informações no sistema. No segundo, porque o trabalho manual como operário numa planta, agora é feito por um pequeno robô.

Sem maiores qualificações, vive pulando entre uma ocupação e outra, com salários que variam de R$ 1.500 a R$ 2.000. Provavelmente, ele se indigna, com razão, ao ler o noticiário sobre a profusão de escândalos do país. Infelizmente, porém, mesmo que tivéssemos padrões escandinavos de gestão da coisa pública, a realidade nua e crua é que João está desaparelhado para enfrentar a competição no mundo de hoje. Isso requer uma macroeconomia saudável, uma educação de qualidade e um ambiente econômico onde, como diz um amigo economista, a empresa invista no empregado, e o empregado invista na empresa. E isso vai muito além da corrupção. Não há saídas fáceis para o Brasil.

O mistério da Lava-Jato - CARLOS ANDREAZZA, O Globo


O GLOBO - 06/02

Dúvidas derivam da falta de transparência dos segredos da Odebrecht. MPF recebeu material em agosto de 2017. Nunca se falou da impossibilidade de ser lido


O ótimo repórter Thiago Herdy, neste O GLOBO, publicou — no último 29 de janeiro — matéria cujo teor, importantíssimo e escandaloso, é tão eloquente sobre o estado de coisas no Brasil quanto o fato de haver pouco repercutido é representativo do espírito do tempo em que vivemos. Chama-se “Chaves para abrir segredos da Odebrecht estão perdidas” e dá conta de que o cidadão brasileiro provavelmente jamais saberá o que abriga um dos sistemas usados pelo setor de Operações Estruturadas da empreiteira para organizar a distribuição de propina. A trama se complica quando somos lembrados de que a entrega dos dados reunidos no programa — Mywebday é o nome do troço — compõe o acordo de leniência firmado pela empresa.

Há seis meses, cinco discos rígidos com cópia das informações — e dois pen drives que deveriam dar acesso ao software — chegaram ao Ministério Público Federal. Desde então, porém, nada. Nem MPF nem Polícia Federal conseguiram restaurar-lhe o conteúdo. De consistente mesmo, a respeito, apenas o movimento — em curso — para abafar a história e deixar tudo como está, e a desconfiança de que o trabalho por quebrar os códigos do programa foi deliberadamente negligenciado. Um exemplo, na melhor das hipóteses, da profundidade da incompetência em questão: o MPF simplesmente não testou as chaves de acesso no momento da entrega do material. Hoje, suspeita-se — tudo, claro, sob investigação — de que os dispositivos tenham sido apagados e reescritos.

Que tal?

Respire fundo, leitor, para lidar com a declaração a seguir: “O sistema está criptografado, com duas chaves perdidas. Não houve meio de recuperar. Nem sei se haverá. Não houve qualquer avanço nisso.”

Oi? O quê? Como é? A coisa fica especialmente confusa quando revelado o autor dessa fala — que seria blasé não fosse irresponsável: Carlos Fernando dos Santos, um dos coordenadores da Lava-Jato em Curitiba, cujo tom francamente despreocupado com o interesse público é inconsistente com o histórico sempre tão indignado do doutor, embora exato em expressar o modelo de atuação escolhido pelos procuradores da força-tarefa.

São muitas as dúvidas. Todas derivam da falta de transparência acerca do conteúdo do Mywebday. O Ministério Público Federal recebeu o material — extraído de servidor na Suíça — em agosto de 2017. Nunca se falou sobre a impossibilidade de ser lido. Desde então, conforme noticiado, a única restrição de acesso — muito problemática — tinha origem contratual: segundo uma das cláusulas estabelecidas no acordo com a Odebrecht, só os procuradores poderiam analisar os dados — em detrimento, claro, da Polícia Federal, o órgão investigador por excelência. Algumas reportagens, entre agosto e novembro do ano passado, registraram o motivo da seletividade: o MPF zelava pela exclusividade — e aqui o colunista tenta não rir — para evitar que os documentos vazassem.

Paralelamente, fontes da PF faziam circular na imprensa a avaliação de que o Ministério Público Federal — também como componente da briga corporativa por poder entre as duas instituições — impunha-se como único a custodiar as informações porque desejava o monopólio para manuseá-las, e porque a empreiteira teria receio de que temas não abordados nas colaborações premiadas de seus executivos pudessem ser explorados pelos policiais. Em setembro, em resposta a pedido da defesa do ex-presidente Lula, o juiz Sergio Moro determinou que o sistema fosse periciado pela Polícia Federal — mas também sobre os desdobramentos dessa decisão prevaleceu a desinformação.

Não daria outra. A falta de clareza a respeito do Mywebday e as legítimas desconfianças decorrentes do que é obscuro criaram as condições para a ascensão influente de narrativas falaciosas como a do petismo — e ofereceram elementos para que a defesa de Lula acusasse o MPF de tratar o software como inviolável para esconder a ausência de provas, nos documentos, que sustentassem a palavra de delatores da Odebrecht contra o ex-presidente.

Incontroverso é que o episódio — o descaso para com a substância do sistema — evidencia mais uma vez a distorção no modo como o Ministério Público Federal compreende e usa o instituto da colaboração premiada. Essa deturpação de finalidade autoriza algumas reflexões. Por exemplo: se o MPF tivesse priorizado o ingresso ao programa, talvez encontrasse conjunto de informações capaz de tornar prescindíveis os acordos de delação (ou boa parte deles) firmados com quase 80 executivos da Odebrecht. Se tivesse se dedicado, antes de tudo, a decifrar o sistema (ou a comprovar a impossibilidade de fazê-lo), quem sabe o Estado brasileiro se livrasse de ter de oferecer tantos benefícios a tanta gente; e quem sabe a colaboração premiada deixasse de ser muleta para investigadores incompetentes (e/ou apaixonados pelo palanque) e se tornasse o que é: recurso complementar. Nesse caso, é provável, teríamos mais provas e menos heróis.

Uma pergunta final e urgente: se a entrega do conteúdo codificado no Mywebday integra o acordo de leniência da empresa, e se, afinal, sua leitura for mesmo inexpugnável, isso não significará comprometer gravemente o contrato firmado entre empreiteira e Estado brasileiro? Ficará por isso mesmo?

Tem caroço a ser pescado nesse angu.

Carlos Andreazza é editor de livros